Neste quase meio século de democracia parlamentar burguesa, e acentuamos a adjectivação pela simples razão de que a sociedade em que viemos é uma sociedade dividida em classes e cujos interesses são diversos e antagónicos, uma das questões que têm assombrado a festa da democracia é a vontade presidencial de dissolução do Parlamento, será a segunda levada a cabo pela mão de Marcelo, com a destituição do governo e realização de novas eleições legislativas. Contudo, o Presidente da República hesita e acobarda-se: “Não faz sentido falar em dissolução” porque reconhece que na oposição não há “alternativa óbvia”. Dissolver ou não dissolver, é a questão que nem Marcelo nem oposição conseguem desenvencilhar.
Um outro ensombramento do governo, mas igualmente
para a putativa oposição, é a questão da TAP, com os milhares de milhões ali
enfiados e com as peripécias da indemnização de uma gestora e do despedimento
pouco cortês da CEO, e de eventual indemnização que lhe poderá ser devida; daí
a polémica acrescida do “parecer jurídico” que ao princípio era existente e
certo, mas depois da negação feita pelo ministro das Finanças, mais não era que
uma questão “puramente semântica”; afinal, será um conjunto de documentos
avulso que justificarão o despedimento a frio da empresária francesa.
Para quem esteja menos familiarizado com estes
subtilezas político-semânticas, deve-se esclarecer que, segundo o dicionário da
língua portuguesa: dissolvente é o que ou o que tem a propriedade de
dissolver, ou, em sentido figurado, o que ou aquilo que desorganiza ou corrompe;
isto é, corruptor, desorganizador. Semântico refere-se à semântica, ao
significado das palavras, à interpretação das frases, das orações. De um lado, teremos o populista e agitador, embora afirme o
contrário; de outro, teremos o que se esconde atrás da semântica para
dissimular as contradições entre ministros que, nesta e em outras questões,
mostram que não passam de meros moços de recados – à semelhança, diga-se de
passagem, do porta-voz de Bruxelas que é o governo Costa/PS.
Ao falarmos dos 49 anos de democracia
parlamentar burguesa temos forçosamente de falar dos cinquenta anos do PS, o
partido que se arvora de “charneira” do regime e que durante este tempo todo
foi o instrumento seguro de salvação do capitalismo nacional e da defesa dos
interesses da Alemanha e do grande capital a ela associado. Não é despiciendo
relembrar que o PS foi fundado na Alemanha e com os dinheiros da social
democracia de Willy Brandt, o homem que foi agente da CIA durante mais de uma
década e com pagamento certo ao fim do mês.
O PS, logo que foi poder, trouxe de novo para
o país os patrões que tinham fugido do país, deixando as empresas na falência,
recebendo-as de novo já limpas de passivo. O melhor exemplo foi o BES,
recapitalizado com dinheiros públicos, devolvido a Ricardo Salgado da família dos
Espírito Santo, os banqueiros de Salazar, não tendo gastado um único escudo do
seu bolso, obteve o empréstimo da banca francesa por influência de Soares, e
com o final que todos nós conhecemos. Ricardo Salgado beneficia da liberdade do
25 de Abril de não ser preso, apesar de estar indiciado como o maior gatuno do
país.
A paz social como seguro de vida do PS
O PS manter-se-á no poder, com a sua maioria
absoluta, porque sabe que nem Marcelo nem a oposição, incluindo a mais
trauliteira, desejam outras eleições antecipadas. Quanto à oposição dita de “esquerda”,
essa, devido ao processo rápido e auto-infligido de social-democratização, reza
a todos os santos que as eleições se façam na devida altura, ou seja, só daqui
a três anos, esperando o desgaste inevitável do governo e o simultâneo
afundanço do PS. Este sabe que se conseguir manter a paz social terá sempre a
confiança do patrão alemão e, para tal, está disposto a cumprir com todos os ditames
de Bruxelas. Honrará o papel de brioso lacaio.
Quanto à questão da TAP, o governo PS tem os
sindicatos no bolso, estes sabem perfeitamente quais os projectos para a
companhia aérea nacional, melhor do que o novo CEO, se fizermos fé nas recentes
palavras do dirigente do SITAVA. Depois do presidente não executivo da TAP ter
afirmado que o corte nos trabalhadores “foi até ao osso”, isto é, despedimentos
em barda, cortes salariais até doer, liquidação de serviços essenciais, abate
de aviões, os sindicatos exigem “medidas sérias” ao novo presidente que
“garantam a paz social”. Parece ser esta a condição essencial para que,
finalmente, a empresa seja entregue aos alemães da Lufthansa – o plano imposto
por Bruxelas e que qualquer outro partido da oposição que fosse governo teria
aplicado, sem tugir nem mugir.
Liberdades assimétricas
Costa foi logo acusado de estar a fazer
campanha eleitoral quando anunciou o aumento adicional das pensões e o apoio a
um milhão de famílias, em princípio as mais pobres e que totalizarão uns 3
milhões de pessoas; ou seja, cerca de um terço da população em Portugal é pobre
e se não fossem os apoios sociais esse número seria capaz de duplicar. Esta
terá sido mais uma “conquista de Abril”: liberdade para empobrecer. Assim se
percebe que um CEO das empresas cotadas na bolsa (PSI) ganhe, em média, 36
vezes mais do que um trabalhador; fosso que se agravou na última década, previsível
resultado da política dita “socialista” e de “liberdade” deste e do anterior
governo.
Os factos comprovam que os ricos têm toda a
liberdade de ficarem mais ricos enquanto os pobres ficam mais pobres, a uma
escala que poderá ser superior à existente no tempo do fascismo se tivermos em
conta a desvalorização do dinheiro e as diferenças que haviam entre nós e os
outros países na altura e agora. Voltando ao exemplo dos CEO do PSI: Remuneração
média bruta anual aumentou 47% desde 2012, enquanto o vencimento médio
bruto anual dos trabalhadores recuou 0,7%: Pedro Soares dos Santos (Jerónimo
Martins) recebeu remuneração de 3,7 milhões, 186 vezes superior à média dos
seus trabalhadores; Cláudia Azevedo (Sonae/Continente) uma remuneração anual
que supera em 82 vezes o salário médio dos trabalhadores. E a lista prossegue, referimo-nos
somente à burguesia emergente pós-25 de Abril e não se contabilizam os lucros
das empresas.
A saúde foi outro bem que em determinado
momento melhorou para o povo português com a criação do SNS, no entanto, depressa
entrou em degradação a partir dos governos do PSD/Cavaco Silva. Primeiro, foi
em modo lento e discreto, para passar em modo acelerado quando o país entrou no
euro e com os governos do PS, nomeadamente, com a pandemia que serviu de
pretexto para o encerramento do SNS para dar lugar ao negócio privado da
doença. Mas sempre com a alegação de defesa do dito, ora se não fosse! Nestes
49 anos de democracia, podemos “orgulhar-nos” de que há cerca de 1 milhão e
meio de portugueses sem médico de família e as listas de espera para cirurgias,
consultas ou exames complementares de diagnóstico são infindáveis. Não é por
acaso que Portugal é dos países europeus com menos anos de vida saudáveis.
Degradação económica e falta de confiança no regime
O tal “principal partido” da oposição vem criticar o "crescimento medíocre" da economia nacional nos últimos 25 anos, mas não responsabiliza a entrada no euro como umas das causas pela simples razão de que é corresponsável. Os miseráveis salários, cuja redução nominal foi imposta brutalmente pelo seu governo Coelho/Portas, não foram valorizados depois pelos governos PS/Costa, ambos os partidos são responsáveis. É o Instituto Sindical Europeu que afirma: “A escassez recorde de mão de obra na União Europeia (UE) deve-se aos baixos salários e condições de trabalho e não à falta de competências dos trabalhadores”. Não basta subir o salário mínimo, como realça a ministra, será necessário subir, e substancialmente, o rendimento de quem trabalha em geral, mas já houve um aviso: com o aumento das pensões, a subida da despesa com os salários da Função Pública terá de ser ponderada.
Não será motivo de admiração que as sondagens mostrem a descida eleitoral e de popularidade do PS e a subida dos partidos de direita, incluindo os ultramontanos, à medida que cresce a insatisfação popular com o estado da democracia (responsável pelo empobrecimento) e com a maioria das instituições que deveriam garantir o seu funcionamento. E a maior desconfiança vai não só para o governo como para a dita “justiça”, que é distante, arbitrária, morosa e cara. O sector da justiça terá sido o único em que não houve qualquer reestruturação de fundo após o 25 de Abril, os juízes mantiveram o seu estatuto de privilégio, beneficiando de salários inexplicáveis e em parte isentos de IRS, e livres do escrutínio do voto. A maior inutilidade da área da justiça, mas considerada uma importante conquista de Abril, é o Tribunal Constitucional, que para eleger o seu presidente demorou 17 horas e com interferência do PS. Tribunal cujas considerações de inconstitucionalidade das medidas tomadas por Costa durante a pandemia foram por este mandadas às urtigas.
A liberdade é uma liberdade de classe como já referimos. Liberdade para o enriquecimento para os detentores do capital e empobrecimento de quem trabalha. Nem o direito à propriedade da casa é garantida aos trabalhadores, atendendo ao preço exorbitante e especulativo da habitação e dos arrendamentos fazendo com que muitos jovens ou fiquem mais tempo em casa dos pais ou, então, já que não há habitação, nem emprego e nem garantia de futuro, o melhor é emigrar. O BCE vai subir juros mais três vezes com pico a chegar em Julho, o que reforça a ideia de que, após 49 anos da revolução de Abril, a liberdade para emigrar é um direito com futuro. Os apoios prometidos pelo governo ao arrendamento jovem e ao pagamento das prestações ao banco dos casais mais vulneráveis servirão mais para manter os rendimentos dos senhorios e os lucros dos bancos do que propriamente para resolver o problema da falta de habitação.
Liberdade de expressão e populismos
Nas manifestações que se realizaram no dia 25, onde foi exaltada a liberdade de expressão e de reunião, um direito que existe mais para as elites, basta olhar para quem são os proprietários dos media, do que para os cidadãos de baixo que, por enquanto, possuem apenas as redes sociais para poderem manifestar-se, e já com algumas limitações devido à acusação de serem fonte de notícias falsas; mas, quando comparadas com os media mainstream, fica-se com a certeza que afinal as fake news vêm precisamente destes últimos.
O que se assiste também é a uma
auto-censura voluntariamente assumida por alguns daqueles que andam por aí de
cravo ao peito: um cartoon de autoria de Onofre Varela foi retirado da Bienal
de Gaia por pressão da Comunidade Israelita de Lisboa por o considerar que
“banaliza o Holocausto cometido pelo regime nazi e diaboliza os judeus na sua
relação com a Palestina”. O cartoonista e a câmara socialista de Gaia
ajoelharam e o governo não interveio, e nas redes sociais também não se notou
grande indignação.
O regime apodrece a par do governo. O caricato incidente com o navio Mondego, a insubordinação dos marinheiros que se recusaram a sair para o mar nas péssimas condições que mais tarde vieram a confirmar-se, é bem o símbolo da decadência desta democracia burguesa. A reacção do almirante das vacinas, misto de arrogância e incompetência, tendo aproveitado a ocasião para promover uma possível candidatura a Belém, dá igualmente a imagem dos putativos salvadores da Pátria. Os populismos são protagonizados mais pelos que descredibilizam o regime do que pelos dirigentes políticos fascistóide e arruaceiros promovidos pelos media.
Todos fazem parte
do establishment, todos são coniventes e nenhum corporiza alternativa. Esta democracia
não chegou sequer à idade madura, ela saltou directamente para a senilidade
precoce, e é por já estar velha antes do tempo que os populismos vão medrando.
O problema do 25 de Abril foi ter sido, do ponto de vista popular, uma revolução frustrada. Uma Nova
Revolução é necessária, e quanto mais se adiar, mais dolorosos serão os custos
para o lado do Trabalho.
Imagem de destaque: na net
Bartoon no "Público"
Nenhum comentário:
Postar um comentário