sábado, 18 de março de 2023

A COMUNA DE PARIS

 

(escrito em 2006 mas actual)

«...o velho mundo torce-se com convulsões de raiva à vista da bandeira vermelha, símbolo da República de Trabalho, a drapejar sobre os Paços do Conselho».

(Karl Marx, a Guerra Civil em França, 1871)

Passam 135 anos sobre a primeira experiência da classe operária na tomada do poder político à velha classe exploradora, a burguesia. E a melhor, com certeza a única, forma de conhecer o que foi a Comuna de Paris e a sua importância para o proletariado moderno é ler a obra de Marx, a "Guerra Civil em França", escrita dois dias após o esmagamento dos revoltosos pelas tropas pretorianas do governo de Versalhes.

Por parte dos comunistas, e possivelmente outros revolucionários que têm a Comuna por referência, e por parte de intelectuais marxistas tem sido norma retirar da experiência da Comuna de Paris as ilações, e salientá-las com particular ênfase, da tomada do poder político e a destruição da velha máquina do estado burguesa e a sua substituição por uma outra diferente. Achamos nós que também é de interesse expor mais à luz outros aspectos um pouco mais esquecidos.

A abolição do exército permanente e da polícia, a dissolução e a expropriação das igrejas, a abertura gratuita das escolas ao povo, libertando-as da ingerência da Igreja e do Estado, o despojamento das prerrogativas e privilégios de todos os funcionários públicos que passaram a ser eleitos e revogáveis a qualquer momento (e não "num curto prazo de tempo" como refere um autor revisionista do sitio do PCP sobre a Comuna), sendo responsáveis perante o povo e auferindo um salário de operário, se são medidas usualmente enaltecidas pelos marxistas, a pouca violência que acompanhou a tomada do poder político, em contraste com a selvajaria praticada pelo governo de Versalhes, e o carácter abertamente internacionalista da Comuna deverão ser postas em relevo.

Marx não se cansa de referir que a Comuna derramou pouco sangue dos seus inimigos e que foi quase constante a sua posição defensiva perante os ataques da burguesia reaccionária francesa que não hesitou em aliar-se ao invasor prussiano para esmagar a revolução e destruir Paris. Marx não deixa de exclamar a sua indignação: «mas a execução pela Comuna dos sessenta e quatro reféns, com o arcebispo de Paris à cabeça!», para logo denunciar a barbárie: «a burguesia e o seu exército tinham restabelecido um costume que tinha já há muito desaparecido da prática da guerra, a execução dos prisioneiros desarmados; este hábito brutal foi depois mais ou menos seguido aquando da repressão de todos os levantamentos populares na Europa…!»).

Contabilizaram-se 30 mil fuzilados, 100 mil prisioneiros, 36 mil revoltosos julgados em conselho de guerra, 13440 condenações, 270 a pena de morte e os restantes deportados, a burguesia não teve contemplações perante os que ousaram «tocar no privilégio governamental» e tal como Sila na velha Roma: «o mesmo massacre em massa, executado a sangue frio; a mesma negligência no massacre, quanto à idade e sexo; o mesmo sistema de tortura dos prisioneiros as mesmas proscrições mas desta vez de uma classe inteira; a mesma caça selvagem aos chefes refugiados, com receio que um só possa escapar; as mesmas denúncias por inimigos políticos e particulares; a mesma indiferença perante o massacre de pessoas inteiramente estranhas à luta…».

Se a burguesia não olhou a meios na perfídia, na mentira e na intriga para derrotar a Comuna, ela, burguesia, fez uma coisa que muitos comunistas e alguns "teóricos da revolução" esqueceram, foi internacionalista. A burguesia, ou Thiers e “seus cachorros”, como diz Marx, recorreu à traição aliando-se abertamente ao inimigo do povo francês: a Prússia. «A capitulação de Paris, entregando à Prússia não só Paris mas toda a França, encerrou a longa série de intrigas e de traições que os usurpadores do 4 de Setembro, tinham iniciado com o inimigo, como Trochu em pessoa o dissera na mesma tarde; por outro lado, ela dava o sinal para a guerra civil que com a ajuda da Prússia eles iam agora iniciar contra a República e Paris...».

Mas a este internacionalismo da burguesia, em que uma das burguesias nacionais não tem pejo em alienar a independência do seu país a uma outra (o que demonstra que a verdadeira pátria do burguês, já na segunda metade do século dezanove, é a do dinheiro) para esmagar o seu verdadeiro inimigo que é classe operária revoltosa, o proletariado francês opôs um internacionalismo que constitui engulho aos actuais "partidos comunistas" e outras pretensas "vanguardas" e "educadores" dos operários.

«Se a Comuna era, pois, a representação verdadeira de todos: os elementos sãos da sociedade francesa – Marx não deixa de afirmar –, ela era ao mesmo tempo um governo operário, e, a este título, na sua qualidade de audacioso campeão da emancipação do trabalho, internacional no pleno sentido da palavra, aos olhos do exército prussiano que tinha anexado à Alemanha duas províncias francesas, a Comuna anexava à França os trabalhadores todo o mundo». São numerosos os cidadãos estrangeiros, operários, revolucionários, que lutam na barricada da Comuna de Paris, oferecendo abnegadamente o seu esforço e a sua vida, polacos, russos, húngaros e alemães; destacando-se, entre outras, figuras como Elizabeth Dmitrieff, uma das grandes mulheres revolucionárias do século XIX, que tem 20 anos quando está a lutar de fuzil na mão nas barricadas das ruas de Paris, regressando mais tarde à Rússia e depois injustamente esquecida, ou Frank Keller, mais tarde dirigente importante do movimento operário húngaro. «A Comuna fez dum operário alemão o seu ministro do trabalho», coisa impensável para os nossos nacionalistas partidos ditos “comunistas”.

Mais do que nunca que os comunistas neste início de século, contrariando frontalmente a prática instituída em todo o século XX, terão que cultivar, em teoria e em prática, o mais aberto e acérrimo internacionalismo proletário, unindo numa mesma luta os operários de todo o mundo, porque esta será indubitavelmente uma das condições essenciais para derrotar uma classe exploradora que há muito vem praticando o seu internacionalismo e numa época em que a globalização capitalista terá atingido praticamente o seu fim. Esta é uma das ilações a retirar do sacrifício do proletariado e do povo de Paris.

Sacrifício que nunca terá sido em vão, «... este espantoso acontecimento prova não, como o pensa Bismarck, o esmagamento definitivo duma nova sociedade ascendente, mas a desagregação completa da velha sociedade burguesa; o mais alto esforço de heroísmo de que a velha sociedade ainda é capaz é uma guerra nacional; e está agora provado que ela é uma pura mistificação dos governos, destinada a retardar a luta das classes, e que é posta de lado, logo que esta luta de classe desencadeia uma guerra civil»; e pondo a claro o carácter internacionalista deste confronto entre as duas classe mais importantes da sociedade, Marx conclui: «o domínio da classe não pode pois dissimular-se sob um uniforme nacional, os governos nacionais não são senão um só contra o proletariado!».

A Comuna de Paris foi derrotada há 135 anos, mas o seu exemplo deixou um rasto indelével que permitiu mais tarde um salto ainda maior na luta emancipador do Trabalho contra o Capital que foi a Revolução Bolchevique na Rússia; mesmo derrotada, os seus efeitos foram devastadores por toda a Europa, a consciência de classe dos operários e dos revolucionários teve um enorme avanço, países fechados no seu conservadorismo e sem uma classe operária numerosa e aguerrida, como Portugal, não conseguiram fugir à sua influência: a "Geração de Setenta" e as "Conferências do Casino" são o exemplo e o resultado directo de tal acontecimento.

As experiências posteriores da classe operária para manter o poder político na Rússia e na China, e no sentido de impedir que novas burguesias o usurpassem, fracassaram igualmente; o que não impede, bem pelo contrário, atendendo ao fosso cada vez maior entre a classe capitalista e a classe dos produtores, de considerarmos como inteiramente válidas e actuais as palavras de Marx: «A Paris operária, com a sua Comuna, será sempre celebrada como o glorioso intróito duma sociedade nova; a recordação dos seus mártires conservar-se-á piedosamente no grande coração da classe operária; aos seus exterminadores, a história pregou-os já ao eterno pelourinho, e nem sequer todas as preces dos seus padres os conseguirão remir».

28 de Maio 2006

www.jornalcomunista.org

 

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