(escrito em 2006 mas actual)
«...o velho mundo torce-se com convulsões de
raiva à vista da bandeira vermelha, símbolo da República de Trabalho, a
drapejar sobre os Paços do Conselho».
(Karl Marx, a Guerra Civil em França, 1871)
Passam 135 anos sobre a primeira experiência
da classe operária na tomada do poder político à velha classe exploradora, a
burguesia. E a melhor, com certeza a única, forma de conhecer o que foi a
Comuna de Paris e a sua importância para o proletariado moderno é ler a obra de
Marx, a "Guerra Civil em França", escrita dois dias após o
esmagamento dos revoltosos pelas tropas pretorianas do governo de Versalhes.
Por parte dos comunistas, e possivelmente
outros revolucionários que têm a Comuna por referência, e por parte de
intelectuais marxistas tem sido norma retirar da experiência da Comuna de Paris
as ilações, e salientá-las com particular ênfase, da tomada do poder político e
a destruição da velha máquina do estado burguesa e a sua substituição por uma
outra diferente. Achamos nós que também é de interesse expor mais à luz outros
aspectos um pouco mais esquecidos.
A abolição do exército permanente e da
polícia, a dissolução e a expropriação das igrejas, a abertura gratuita das
escolas ao povo, libertando-as da ingerência da Igreja e do Estado, o
despojamento das prerrogativas e privilégios de todos os funcionários públicos
que passaram a ser eleitos e revogáveis a qualquer momento (e não "num
curto prazo de tempo" como refere um autor revisionista do sitio do PCP
sobre a Comuna), sendo responsáveis perante o povo e auferindo um salário de
operário, se são medidas usualmente enaltecidas pelos marxistas, a pouca
violência que acompanhou a tomada do poder político, em contraste com a
selvajaria praticada pelo governo de Versalhes, e o carácter abertamente
internacionalista da Comuna deverão ser postas em relevo.
Marx não se cansa de referir que a Comuna
derramou pouco sangue dos seus inimigos e que foi quase constante a sua posição
defensiva perante os ataques da burguesia reaccionária francesa que não hesitou
em aliar-se ao invasor prussiano para esmagar a revolução e destruir Paris.
Marx não deixa de exclamar a sua indignação: «mas a execução pela Comuna
dos sessenta e quatro reféns, com o arcebispo de Paris à cabeça!», para logo
denunciar a barbárie: «a burguesia e o seu exército tinham restabelecido um
costume que tinha já há muito desaparecido da prática da guerra, a execução dos
prisioneiros desarmados; este hábito brutal foi depois mais ou menos seguido
aquando da repressão de todos os levantamentos populares na Europa…!»).
Contabilizaram-se 30 mil fuzilados, 100 mil
prisioneiros, 36 mil revoltosos julgados em conselho de guerra, 13440
condenações, 270 a pena de morte e os restantes deportados, a burguesia não
teve contemplações perante os que ousaram «tocar no privilégio
governamental» e tal como Sila na velha Roma: «o mesmo massacre em
massa, executado a sangue frio; a mesma negligência no massacre, quanto à idade
e sexo; o mesmo sistema de tortura dos prisioneiros as mesmas proscrições mas
desta vez de uma classe inteira; a mesma caça selvagem aos chefes refugiados,
com receio que um só possa escapar; as mesmas denúncias por inimigos políticos
e particulares; a mesma indiferença perante o massacre de pessoas inteiramente
estranhas à luta…».
Se a burguesia não olhou a meios na perfídia,
na mentira e na intriga para derrotar a Comuna, ela, burguesia, fez uma coisa
que muitos comunistas e alguns "teóricos da revolução" esqueceram,
foi internacionalista. A burguesia, ou Thiers e “seus cachorros”, como diz
Marx, recorreu à traição aliando-se abertamente ao inimigo do povo francês: a
Prússia. «A capitulação de Paris, entregando à Prússia não só Paris mas
toda a França, encerrou a longa série de intrigas e de traições que os
usurpadores do 4 de Setembro, tinham iniciado com o inimigo, como Trochu em
pessoa o dissera na mesma tarde; por outro lado, ela dava o sinal para a guerra
civil que com a ajuda da Prússia eles iam agora iniciar contra a República e
Paris...».
Mas a este internacionalismo da burguesia, em
que uma das burguesias nacionais não tem pejo em alienar a independência do seu
país a uma outra (o que demonstra que a verdadeira pátria do burguês, já na
segunda metade do século dezanove, é a do dinheiro) para esmagar o seu
verdadeiro inimigo que é classe operária revoltosa, o proletariado francês opôs
um internacionalismo que constitui engulho aos actuais "partidos
comunistas" e outras pretensas "vanguardas" e
"educadores" dos operários.
«Se a Comuna era, pois, a representação
verdadeira de todos: os elementos sãos da sociedade francesa – Marx
não deixa de afirmar –, ela era ao mesmo tempo um governo operário, e, a
este título, na sua qualidade de audacioso campeão da emancipação do trabalho,
internacional no pleno sentido da palavra, aos olhos do exército prussiano que
tinha anexado à Alemanha duas províncias francesas, a Comuna anexava à França
os trabalhadores todo o mundo». São numerosos os cidadãos estrangeiros,
operários, revolucionários, que lutam na barricada da Comuna de Paris, oferecendo
abnegadamente o seu esforço e a sua vida, polacos, russos, húngaros e alemães;
destacando-se, entre outras, figuras como Elizabeth Dmitrieff, uma das grandes
mulheres revolucionárias do século XIX, que tem 20 anos quando está a lutar de
fuzil na mão nas barricadas das ruas de Paris, regressando mais tarde à Rússia
e depois injustamente esquecida, ou Frank Keller, mais tarde dirigente
importante do movimento operário húngaro. «A Comuna fez dum operário
alemão o seu ministro do trabalho», coisa impensável para os nossos
nacionalistas partidos ditos “comunistas”.
Mais do que nunca que os comunistas neste
início de século, contrariando frontalmente a prática instituída em todo o
século XX, terão que cultivar, em teoria e em prática, o mais aberto e acérrimo
internacionalismo proletário, unindo numa mesma luta os operários de todo o
mundo, porque esta será indubitavelmente uma das condições essenciais para
derrotar uma classe exploradora que há muito vem praticando o seu
internacionalismo e numa época em que a globalização capitalista terá atingido
praticamente o seu fim. Esta é uma das ilações a retirar do sacrifício do
proletariado e do povo de Paris.
Sacrifício que nunca terá sido em
vão, «... este espantoso acontecimento prova não, como o pensa Bismarck, o
esmagamento definitivo duma nova sociedade ascendente, mas a desagregação
completa da velha sociedade burguesa; o mais alto esforço de heroísmo de que a
velha sociedade ainda é capaz é uma guerra nacional; e está agora provado que
ela é uma pura mistificação dos governos, destinada a retardar a luta das
classes, e que é posta de lado, logo que esta luta de classe desencadeia uma
guerra civil»; e pondo a claro o carácter internacionalista deste
confronto entre as duas classe mais importantes da sociedade, Marx
conclui: «o domínio da classe não pode pois dissimular-se sob um uniforme
nacional, os governos nacionais não são senão um só contra o proletariado!».
A Comuna de Paris foi derrotada há 135 anos,
mas o seu exemplo deixou um rasto indelével que permitiu mais tarde um salto
ainda maior na luta emancipador do Trabalho contra o Capital que foi a
Revolução Bolchevique na Rússia; mesmo derrotada, os seus efeitos foram
devastadores por toda a Europa, a consciência de classe dos operários e dos
revolucionários teve um enorme avanço, países fechados no seu conservadorismo e
sem uma classe operária numerosa e aguerrida, como Portugal, não conseguiram
fugir à sua influência: a "Geração de Setenta" e as
"Conferências do Casino" são o exemplo e o resultado directo de tal
acontecimento.
As experiências posteriores da classe operária
para manter o poder político na Rússia e na China, e no sentido de impedir que
novas burguesias o usurpassem, fracassaram igualmente; o que não impede, bem
pelo contrário, atendendo ao fosso cada vez maior entre a classe capitalista e
a classe dos produtores, de considerarmos como inteiramente válidas e actuais
as palavras de Marx: «A Paris operária, com a sua Comuna, será sempre
celebrada como o glorioso intróito duma sociedade nova; a recordação dos seus
mártires conservar-se-á piedosamente no grande coração da classe operária; aos
seus exterminadores, a história pregou-os já ao eterno pelourinho, e nem sequer
todas as preces dos seus padres os conseguirão remir».
28 de Maio 2006
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