Nustérze o poscrà
Aion cercado pelo zodíaco (wikipedia)
"Não acredito no amanhã, talvez depois de
amanhã", escreveu Joseph Roth. Em que eu acredito? Nem amanhã,
nem depois de amanhã – talvez in poscrà ou pescridde, como acho
que dizem em apuliano no dia seguinte ao dia depois de amanhã. Mas na
verdade eu prefiro acreditar em nustérze (na vanguarda) ou no dia antes
da vanguarda. É a compreensão e o conhecimento do passado que faltam hoje,
e não só para os mais novos. Mas talvez seja o tempo que falta, em todos
os seus êxtases e formas, porque o futuro que os devorou está vazio e já ninguém acredita
nele, enquanto o presente é por definição inviável. O tempo de que
precisamos, porém, não é nenhum dos dois: é aionou aeon, que os
antigos retratavam como um jovem com asas nos pés apoiado em uma roda, que só
pode ser agarrado por um tufo na frente da testa – a oportunidade – e, se você
deixá-lo passar, você está perdido para sempre.
Aion é a cor
do tempo, o tempo da vida e, como diz um provérbio mexicano, esse tempo
especial nunca falha, ay mas tiempo que vida – talvez porque este tempo e
a vida sejam a mesma coisa. É um tempo que não pode ser contado, que só
pode ser expresso com advérbios e nunca com números: agora, já, sempre, agora,
logo, tarde, ainda, nunca, poscrà… O problema é que não estamos mais
vivos e a ocasião é precisamente aquela de tornar-se de novo ou tornar-se vivo
("tornar-se vivo", como dizem), para voltar no tempo, não importa
como ou quando, se não hoje antes de ontem do que depois. À nossa volta
existem apenas múmias, cadáveres que pretendem dirigir a sua própria exumação e
atormentar-nos com decretos e notícias para nos fazer participar na sua
sinistra cerimónia. É com essas múmias que temos que romper, só se as
deixarmos para trás é possível que, nustérze o poscrà, o jovem alado
venha em nossa direção com seu topete – e desta vez não, não vamos deixá-lo escapar.
2 de março de 2023
Na anarquia, hoje
Se para quem se propõe a pensar a política, da qual ela é de algum modo o foco extremo ou o ponto de fuga, a anarquia nunca deixou de ser atual, assim também o é hoje também para a injusta e feroz perseguição a que um anarquista nas prisões italianas. No entanto, falar de anarquia, como também tem de ser feito, no plano da lei implica necessariamente um paradoxo, porque é no mínimo contraditório pedir que o Estado reconheça o direito de negar o Estado, tal como, se se pretende para levar o direito de resistência às suas últimas consequências, não se pode razoavelmente exigir que a possibilidade de guerra civil seja legalmente protegida.
Para pensar a anarquia hoje, será melhor nos
colocarmos em uma perspectiva completamente diferente e questionarmos a maneira
como Engels a concebia, quando censurava os anarquistas por quererem substituir
o Estado pela administração. Na verdade, esta acusação esconde um problema
político decisivo, que nem os marxistas nem talvez os próprios anarquistas
colocaram corretamente. Um problema tanto mais urgente quanto
testemunhamos hoje a tentativa de realizar de alguma forma paródica o que era
para Engels o objetivo declarado da anarquia – e, isto é, não tanto a simples
substituição da administração pelo estado, mas sim a identificação de Estado e
administração numa espécie de Leviatã, que assume a máscara bem-humorada do
administrador. Isso é o que Sunstein e Vermeule teorizam em um livro (Lei
e Leviatã, Redimindo o Estado Administrativo) em que a governança,
o exercício do governo, ultrapassando e contaminando os poderes tradicionais
(legislativo, executivo, judiciário), exerce em nome da administração e de
forma discricionária as funções e poderes que eles eram devidos.
O que é administração? Ministro,
de onde deriva o termo, é o servo ou ajudante em oposição ao magister,
o mestre, o detentor do poder. A palavra vem da raiz *men, que
significa diminuição e pequenez. O ministro está para
o magister como o menos está para o magis,
o menos para o mais, o pequeno para o grande, o que diminui para o que
aumenta. A ideia de anarquia consistiria, pelo menos segundo Engels, na
tentativa de pensar um ministro sem magister, um
servo sem mestre. Certamente uma tentativa interessante, pois pode ser
taticamente vantajoso jogar o servo contra o mestre dessa forma, menos contra
mais e pense em uma sociedade em que todos são ministros e ninguém é magister
ou chefe. Em certo sentido, foi isso que Hegel fez, mostrando em sua
notória dialética que o servo, em última análise, domina o mestre. No
entanto, é inegável que as duas figuras-chave da política ocidental permanecem
assim ligadas uma à outra numa relação incansável, da qual é impossível chegar
ao fundo de uma vez por todas.
Uma ideia radical de anarquia só pode,
portanto, libertar-se da dialética incessante do servo e do escravo, do ministro e
do magister, para se colocar resolutamente na brecha que os
divide. O tertium que aparece nessa lacuna não será mais
administração ou estado, menos ou magis: será
antes entre eles como um resto, o que expressa sua impossibilidade de
coincidir. A anarquia é, antes de tudo, a negação radical não tanto do
Estado, nem simplesmente da administração, mas da reivindicação do poder de
fazer coincidir o Estado e a administração no governo dos homens. É contra
essa pretensão que o anarquista luta, em última análise, em nome desse
ingovernável, que é o ponto de fuga de toda comunidade entre os homens.
26 de Fevereiro de 2023
Giorgio Agamben
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