segunda-feira, 16 de maio de 2022

No Reino da Dinamarca

 

João Botelho em entrevista ao jornal “Eco”, na apresentação do seu último filme, “Um Filme em Forma de Assim”, diz que “os portugueses ainda são piores do que a Pide” e que “este é um país de chibos”, referindo-se ao medo pelo Outro facilmente aceite aquando dos estados de emergência, impostos com o pretexto do combate à pandemia, chegando a citar o poeta Alexandre O’Neill. Para o cineasta, as pessoas habituadas às maneiras de vida exibicionista perderam não só a coragem mas igualmente a capacidade de viver de forma clandestina, aceitando pacificamente as regras que a partir de agora se impõem em todo o lado, lembrando o fascismo de antes de 25 de Abril. Assim, “a liberdade será coisa muito difícil de se achar, até na noite”, e “o desejo de liberdade” terá sido convertido na facilidade da vida fútil; ou seja, terá acabado na prática e muito por iniciativa dos portugueses. Este pessimismo reflecte a impotência de alguma pequena-burguesia intelectual perante o processo de fascização a ocorrer neste momento em Portugal; processo este que não deixa de ter inspiração europeia.

Estado de direito e democrático… mas pouco

O governo PS do mister Costa, gelatinoso perante todos os ditames de Bruxelas e mais recentemente da Nato (Otan) a propósito da guerra da Ucrânia, tem discretamente tentado em colocar em forma lei a situação de facto criada em nome da pandemia Covid-19 e a bem daquilo que antes do 25 de Abril se convencionava por “nação”. São diversos os exemplos. É a Lei dos Metadados cuja revisão é considerada insustentável porque violará direitos da União Europeia, segundo opinião do bastonário da Ordem dos Advogados, como a própria lei é tida como ilegal desde 2009, ano em que foi criada, pelo Tribunal Constitucional. Ora como o sapato não cabe no pé, vamos então cortar o pé e não modificar o sapato, tendo de imediato surgido alguém a sugerir a necessidade de se rever a Constituição. O primeiro-ministro teve a ideia, a segunda figura do estado, para não deixar os pergaminhos de caceteiro por mão alheias, também já alvitrara que o combate à desinformação requer revisão constitucional. O PR Marcelo, parecendo gostar mais da Constituição de 1933 e sem abrir por completo a alma, responde a Costa, afiançando que as revisões cirúrgicas da Lei Fundamental são impossíveis, elas terão de ser mais gerais e profundas.

Costa, em suprema hipocrisia, não deixou de declarar ainda há pouco que sobre a gestão da pandemia: “as medidas não foram sempre coerentes”, e talvez para estabelecer a coerência perdida vem desta vez com a Lei de Emergência Sanitária, teoricamente para lidar com futuras pandemias sem ferir a Constituição, e cujo projecto já foi considerando “aberrante e inconstitucional” por diversos juristas, e Marcelo, sempre em cima dos acontecimentos, já prometeu enviar a futura lei para o Tribunal Constitucional, adivinhando-se facilmente mais um chumbo e não tardando que aquele órgão institucional venha a ser considerado mais uma “força de bloqueio”, à semelhança do que acontecera com o governo de má memória PSD/PP/Coelho/Portas. Parece-nos que será mais um motivo para a revisão da Constitucional tão reclamada pelos partidos colocados formalmente mais à direita no sentido da fascização.

O governo PS/Costa já ensaiara, em termos legislativos, outras manobras para fazer retroceder os direitos e liberdades dos cidadãos, mais concretamente em relação às mulheres. A inclusão do aborto e das doenças sexualmente transmissíveis como critérios na avaliação dos médicos de família tinha por objectivo mais atacar as mulheres do que propriamente exigir uma medicina preventiva de qualidade. E foi a forte e justamente indignada reacção da quase totalidade da classe médica, bem como de outros sectores da dita sociedade civil, que fez com que o governo recuasse, com a retirada imediata de tais incompreensíveis critérios, e obrigasse a que a ministra Marta Temido, como porta-voz e relações públicas de Costa, viesse a terreiro justificar-se com o “sentir social” (ao que parece só acontece às vezes) e de longe a ideia “de estar em causa o direito das mulheres”. Para se ficar com alguma luz sobre a natureza e o que move esta gente que gere a máquina do estado, soube-se que o candidato a juiz do TC, António Almeida Costa, recusa a legalização do aborto; o homenzinho, que terá sido indicado pela "ala direita" (não se diz fascista porque é feio!), escreveu em 1984 que “as mulheres violadas raramente engravidam”. Os fascistas não terão acabado no 25 de Abril.

O aparelho de estado é um instrumento de domínio de uma classe por outra

Esta fascização do país, através do reforço do figurino legislativo e aparelho judiciário, não será tarefa muito difícil atendendo à distracção e alguma indiferença dos cidadãos, que nunca confiaram nesta justiça, e ao facto do 25 de Abril jamais ter passado por este sector da máquina do estado; lembremo-nos que os juízes do antigo tribunal político da Boa Hora, que sentenciavam os presos políticos pelas indicações directas da Pide e de Salazar, não foram sequer sancionados criminalmente pelo regime democrático, saído da dita revolução, como ainda foram agraciados com chorudas reformas e deixados viver em feliz e bonançosa velhice. A justiça que se herdou do fascismo sempre foi fascista e a democratização nem de adorno chegou a ser; os juízes consideram-se acima da plebe… e da lei, jamais escrutinados pelo voto do cidadão e funcionam em perfeita sintonia, senão simbiose, com o poder político, quer executivo quer legislativo, tornando a tão incensada “separação de poderes” uma rematada mentira, uma autêntica fraude.

É possível que a questão da Lei dos Metadados provoque alguma confusão, especialmente entre a nossa temerosa classe média, já que se ameaça com a possibilidade de muitos criminosos condenados e com os processos transitados em julgado possam vir a ser libertados e os processos considerados nulos, mas a razão é outra e perfeitamente clara: usar as escutas telefónicas como principal meio de prova, aliviar o trabalho de investigação e, quiçá, alguma incompetência das polícias que são responsáveis por este trabalho, e, fundamentalmente, usar esses dados para espiolhar todo o inocente e incauto cidadão em verdadeiro e mundo kafkiano de controlo social. Vem isto também a propósito da questão levantada pelo jornal “Expresso” quanto à utilização de dois cidadãos russos na recepção dos refugiados ucranianos na Câmara de Setúbal e de hipoteticamente terem fornecido os dados à embaixada da Rússia; fica-se com a ideia de que há boas relações entre os media do grupo Impresa/Balsemão e as secretas portuguesas e que para bufos chegam os portugueses, não sendo necessário cidadãos estrangeiros porque até daria mais nas vistas. Será bom relembrar que a Pide possuía 50 mil informadores e muitos deles eram-no por iniciativa própria e não renumerados, umas das razões pela qual o regime durou quase meio século. A pequena burguesia teme mais a revolução proletária do que o fascismo… até um dia.

O aparelho de estado é um instrumento de domínio de uma classe por outra, tem sempre um carácter de classe, e não é neutro, embora pareça; o seu objectivo e natureza é a repressão das classes subjugadas, em relação ao qual o povo português sempre teve uma profunda e antiga aversão, para não dizer ódio. A História diz-nos de inúmeras revoltas ao longo do tempo, desde que o estado moderno foi instituído a partir dos meados do século XIX, logo após as lutas liberais quando a domínio político da burguesia se torna efectivo, passando pelo fascismo, até aos dias de hoje. E a luta tem sido sempre contra as tentativas desse estado em extorquir os diversos estratos da classe trabalhadora, incluindo pequenos proprietários e camponeses. Neste momento assiste-se ao repor a recapitalização de empresas nacionais, nomeadamente as ligadas à saúde e as estrangeiras do negócio das vacinas, justificando com o aparente inusitado aumento do número de casos de covid-19, mas que mais não são do que “casos” de testes positivos, na enorme maioria falsos positivos. É a quarta dose para os idosos com mais de 80 anos e para os trabalhadores da saúde; e a quinta dose está prometida para o final do Verão. Há quem, com as mãos bem untadas pelo governo e farmacêuticas, defenda o retrocesso no aliviar das restrições e… mais vacinas numa população, segundo dizem as entidades oficiais, está quase 90% vacinada, o que é um paradoxo. Mas alguém mais avisado já alertou: "Se houver recuo nas restrições, não sei como as pessoas reagirão" (psiquiatra Júlio Machado Vaz). O Costa não se acautele, porque o cocktail é perigoso: restrições+estados de emergência+inflação+escassez de alimentos+desemprego….

Este Portugal é um país muito pouco recomendável

No país onde campeia a corrupção e a impunidade, possa não parecer porque o povo é até de brandos costumes (como dizia o “botas”), a revolta poderá estar ao virar da esquina. E não é para mais no país onde: «Tribunal Europeu vem a Portugal preocupado com "escassez" na produção de lítio» visto que foi um dos que mais financiamento recebeu para a exploração do dito; «MP arquiva processo contra Eduardo Cabrita no caso do atropelamento. A justiça mantém apenas a acusação ao motorista do veículo que seguia na A6 e que vitimou mortalmente um funcionário de uma empresa que fazia limpeza de bermas»; «Abusos na Igreja: Comissão já recolheu 326 testemunhos, mas o número de potenciais vítimas pode chegar às “muitas centenas”»; «PJ deteve filho de Marco ‘Orelhas’, suspeito da morte de um jovem na noite dos festejos do título do FC Porto»; «Adiado julgamento de casal acusado de sujeitar 14 pessoas a trabalho escravo»; «"Patrão dos patrões" analisa salários: "Portugal está a pagar cada vez melhor"» quando se sabe que «Mercado de trabalho: Não trabalhávamos tanto há mais de uma década. Salários já estão a travar. Com o emprego a bater recordes, está também em máximos o número daqueles que acumulam mais do que um trabalho»; e para cúmulo da desfaçatez e da provocação «Berardo avança contra bancos e pede 900 milhões de indemnização. Queixa recai sobre BCP, CGD, BES e NB, que acusa de terem lesado a Fundação e a Metalgest ao não terem dado informação sobre o risco real das instituições…».

Para se dizer: se nada mudar, este Portugal é um país muito pouco recomendável; e quanto ao tão propalado “estado de direito”, estamos conversados.

Título: empréstimo sem pedir de Alexandre O'neill 

Imagem: do blog mirante

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