Ernest Hemingway
O Velho e o Mar é, seguramente, o
livro mais poético de todos os que Hemingway escreveu, o mundo de O Velho
e o Mar é o mundo da reconciliação e da amizade, da luta contra a
adversidade e o destino. Nas palavras de Jorge de Sena, no prólogo da edição
portuguesa de 1956, “é um breve poema em prosa, uma epopeia de trama simples,
singelamente narrada. Mas é, por outro lado, muito mais do que isso: um
breviário nobilíssimo da dignidade humana, escrito com a mais requintada das
artes. Poucas vezes, no nosso tempo, terá sido concebida e realizada uma obra
tão pura, em que a natureza e a humanidade sejam, frente a frente, tão
verdade”.
*
Já não podia ver o verde da costa, apenas
avistava os cumes das colinas azuis, esbranquiçadas como se estivessem cobertas
de neve e as nuvens, que pareciam grandes montanhas brancas por cima das colinas.
O mar estava muito escuro e a luz formava prismas na água. Os milhões de
reflexos na água eram agora anulados pelo sol, que estava alto, e o velho só
via os prismas muito profundos na água azul e as linhas a cair verticalmente
para o fundo do mar, que naquela zona tinha mais de uma milha de profundidade.
Os atuns – os pescadores chamavam assim a
todos os peixes daquela espécie e só os diferenciavam pelos seus nomes próprios
quando os vendiam ou os trocavam por isca – haviam de novo mergulhado e não
mais eram vistos em nenhum lugar. O sol estava muito mais quente e o velho o
sentiu na parte posterior do pescoço, de onde o suor lhe escorria pelas costas
enquanto remava.
“Podia ir à deriva”, pensou ele, “e dormir um
pouco com aponta da linha atada no pé, para me acordar se algum peixe mordesse.
Mas hoje é o octogésimo quinto dia e devo pescar o melhor possível.”
Neste momento, quando examinava as linhas, viu
uma das varas verdes dobrar-se violentamente.
– Pronto, disse o velho. Pronto, e arrumou os remos,
fazendo por não estremecer o barco. Agarrou na linha e segurou-a suavemente
entre o polegar e o indicador da mão direita. Não sentiu nenhuma força nem peso
e continuou a segurar na linha com suavidade. Depois, sentiu outro puxão. Desta
vez era um puxão ligeiro, quase suave, e ele sabia exactamente o que era. A uns
cento e cinquenta metros de profundidade, um espadarte estava comendo as
sardinhas que cobriam a ponta do anzol que se projectava da cabeça do
atum-isca. O velho tinha a linha suavemente presa nos dois dedos e,
delicadamente, com a mão esquerda, a desprendeu da vara. Agora podia deixá-la
correr pelos dedos sem que o peixe sentisse qualquer tensão.
– Assim tão longe de terra, e neste mês, deve
ser enorme. Coma a isca, peixe! Coma. Coma, por favor. São tão frescas e você
está aí tão fundo, a cento e cinquenta metros, nessa água fria da escuridão. Dê
uma volta no escuro e depois volte para comer toda a isca.
Sentiu um puxão muito ligeiro e depois um
esticão mais violento, possivelmente devido a uma cabeça de sardinha ter-se
tomado mais difícil de arrancar do anzol. Depois não sentiu mais nada.
– Vamos! exclamou o velho em voz alta. Dê
outra volta. Cheire-as. Não é verdade que são deliciosas? Coma-as todas agora e
depois ainda lhe restará o atum. Duro e frio e saboroso. Não seja tímido, meu
peixe. Coma-as.
Ficou à espera, com a linha segura entre o
polegar e o dedo indicador, observando alinha e também as outras ao mesmo
tempo, pois o peixe podia ter nadado por outro nível, mais acima ou mais abaixo.
Depois, tomou a sentir o mesmo puxão delicado.
– Vai comê-las, falou o velho pescador. Deus o
ajude a comê-las.
Mas o peixe não trincou. Afastou-se de novo e
o velho não sentiu mais nada.
– Não é possível que tenha ido embora,
murmurou o velho. Deus sabe que não pode ter ido embora. Está dando uma volta.
Talvez já tenha alguma vez mordido algum anzol e esteja agora a lembrar-se
disso.
Mas, pouco depois, voltou a sentir o peixe.
Sentiu-se muito feliz.
-Tinha ido dar uma volta, disse o velho. Não
tarda a morder.
Estava radiante com aquela pressão suave na
linha e, passados poucos segundos, sentiu um esticão violento e incrivelmente
forte. Era o peso do peixe, e deixou a linha correr para baixo, para baixo,
para baixo, desenrolando os dois primeiros rolos de reserva. À medida que ia
descendo, deslizando ligeiramente pelos seus dedos, podia ainda perceber o
grande peso, embora a pressão no polegar e no indicador fosse quase
imperceptível.
-Mas que peixe! exclamou. Agarrou o atum e
está afastando-se com ele na boca.
“Depois há de parar, dar uma reviravolta e
engoli-lo”, pensou o velho pescador. Não disse isto em voz alta, porque sabia
que, se dissesse uma coisa boa, talvez ela não acontecesse. Estava certo de que
se tratava de um peixe enorme e imaginou-o a mover-se na escuridão com o atum
atravessado na boca. Sentiu-o parar, mas o peso ainda continuava presente.
Depois o peso aumentou e deu-lhe mais linha. Apertou a pressão do polegar e do
indicador durante um momento e o peso tornou a aumentar, afastando-se rapidamente
para baixo.
– Já trincou a isca! exclamou o velho, muito
feliz. Agora tenho de deixá-lo comer a isca em paz.
Soltou a linha de forma que um bom pedaço
deslizasse para a água e com a mão esquerda ligou a ponta dos rolos de reserva
à ponta dos dois rolos de reserva as outras linhas. Agora estava pronto. Tinha
duzentos e vinte metros de linha de reserva, além do rolo em uso.
– Coma um pedaço mais, pediu ele. Coma bem.
“Coma-a de maneira que a ponta do anzol lhe
espete o coração e o mate”, pensou o pescador. “Venha à tona sem grandes
dificuldades e deixe-me agarrá-lo com o arpão. Pronto. Está pronto? Já comeu
bastante?”
– Agora! exclamou em voz alta, agarrando na
linha com as duas mãos e começando a puxar com força. Recuperou um metro de
linha e depois puxou e tornou a puxar, estendendo cada braço alternadamente
sobre a linha com toda a força dos músculos e todo o peso de seu corpo bem
equilibrado no banco.
Não aconteceu nada. O peixe deslocou-se
lentamente e o pescador não conseguiu içá-lo nem um centímetro. A linha era
forte e feita especialmente para suportar o peso de peixes grandes. O velho
passou-a pelas costas e aguentou o peso do peixe, esticando-a tanto, que
começaram a escorrer-lhe gotas de água pelas costas abaixo. Depois a corda
começou a produzir uma espécie de assobio na água e ele continuou a segurá-la,
esforçando-se para não ser cuspido do barco e inclinando-se para trás a fim de
resistir à pressão. O barco principiou então a mover-se lentamente para
nordeste.
O peixe avançava regularmente e foram-se
afastando lentamente sobre a água calma do mar. O resto da isca ainda estava na
água, mas era impossível puxá-la para o barco.
– Gostaria de ter aqui comigo o rapaz, falou o
velho em voz alta. Estou sendo rebocado por um peixe e sou eu o poste ao qual
está preso o reboque. Podia puxar mais a linha. Mas ela podia partir-se.
Preciso aguentar enquanto puder e dar-lhe linha quando for preciso. Graças a
Deus que está avançando a direito em vez de ir para o fundo.
“Que fazer se ele for para o fundo, é que não
sei. O que hei, de fazer se ele mergulhar ou partir disparado, não sei. Mas
farei qualquer coisa. Há uma porção de coisas que possa fazer.”
Continuou com a linha às costas e observou-lhe
o declive na água enquanto a canoa não cessava de se mover lenta mas
regularmente, para nordeste.
“Isto acabará por matá-lo”, pensou o velho.
“Não pode continuar assim toda a vida.” Mas quatro horas depois o peixe ainda
continuava a nadar compassadamente para o largo, rebocando a canoa, e o velho
continuava firmemente instalado com a linha pelas costas e as duas mãos a
segurá-la com quanta força tinham ainda seus velhos músculos.
– Era meio-dia quando o pesquei, disse. E
ainda nem sequer o vi.
Puxara o chapéu de palha dura para a frente
antes de agarrar o peixe e agora estava a cortar-lhe a testa. Tinha sede também
e ajoelhou-se, com cuidado para não abanar a linha, movendo-se dificilmente
para onde estava a garrafa de água que finalmente conseguiu agarrar com uma
mão. Abriu-a e bebeu um trago. Depois encostou-se ao mastro. Ficou sentado,
descansando, e tentou não pensar: apenas aguentar.
Depois olhou para trás e verificou que já não
via terra. “Não faz diferença”, pensou. “Para voltar posso sempre guiar-me pelo
resplendor de Havana. Ainda faltam duas horas para o pôr do sol e pode ser que
ele venha à tona antes disso. Se assim não for, pode ser que venha para cima
com a lua. E se isso também não acontecer, pode ser que se decida a vir à tona
com o nascer do sol. Não tenho cãibras e sinto-me forte. Quem tem o anzol na
boca é ele. Mas que peixe deve ser para puxar desta maneira! Deve ter a boca
fechada sobre o anzol. Gostaria de poder vê-lo. Gostaria de ver uma só vez para
saber o que tenho pela frente.”
O peixe não mudou de rumo ou de direcção
durante toda a noite, ou, pelo menos, que o pescador, pelo que lhe diziam as
estrelas, tivesse notado. Fizera muito frio depois do pôr do sol e o suor
secara-lhe nas costas, nos braços e nas velhas pernas, arrefecendo-o ainda
mais. Durante o dia tirara o saco que cobria a caixa da isca e estendera-o ao
sol para secar. Depois que o sol desaparecera no horizonte, atara-o à volta do
pescoço, de forma a cair-lhe sobre as costas, e colocara cuidadosamente um
pedaço de pano debaixo da linha, que agora levava presa ao ombro. O saco servia
de almofada à linha e o velho descobrira uma maneira de se curvar para a frente
de encontro ao mastro, de modo que chegava a ser quase confortável. Na
realidade a posição era um pouco mais tolerável mas ele a considerava quase
confortável.
“Não posso fazer nada com ele, e ele não pode
fazer nada comigo”, pensou o velho pescador. “Ou pelo menos, enquanto continuar
com este andamento.”
Teve de se levantar uma vez para fazer suas
necessidades pela borda fora e aproveitou a ocasião para olhar para as estrelas
e saber o rumo que levavam. A linha parecia um raio de luz fosforescente na
água que lhe nascia nos ombros. Agora iam mais devagar e era menor o clarão da
cidade de Havana que se via ao longe. Por isso o velho sabia que a corrente os
devia estar levando para leste. “Se o clarão de Havana desaparecer de todo,
quer dizer que estamos indo para leste”, pensou ele. “Mas se a direcção que o
peixe leva, continuara mesma, deverei avistar o resplendor da cidade durante
muitas horas ainda. Quais teriam sido hoje os resultados do baseball nas
Ligas principais? Seria maravilhoso se eu tivesse um aparelho de rádio.” Depois
disse de si para si: “Pense constantemente no peixe. Pense no que está fazendo.
Você não deve distrair-se nem um minuto.”
E em voz alta:
– Gostaria tanto de ter aqui o rapaz! Para me
ajudar e para ver isto.
“Pessoas da minha idade nunca deviam estar
sozinhas", pensou ele. “Mas é inevitável. Tenho de comer aquele atum antes
que comece a luta, para estar forte. Lembre-se de que, mesmo que não tenha
fome, você precisa comer de manhãzinha. Lembre-se”, repetiu-o em pensamento.
Durante a noite dois porcos-marinhos
aproximaram-se do barco e o velho ouviu-os a rolar na água e a soprar com
força. Notou a diferença entre o soprar do macho e o da fêmea.
– São bons, murmurou o velho. Brincam e fazem
partidas um ao outro e amam-se. São nossos irmãos, tal como os peixes-voadores.
Depois começou a ter pena do enorme peixe que
agarrara. “É maravilhoso e estranho e quem saberá que idade tem?!” pensou o
velho. “Nunca pesquei um peixe tão pesado e tão estranho. Talvez seja
demasiadamente inteligente para saltar. Podia acabar comigo se saltasse ou se
se lançasse numa disparada louca. Mas talvez já tenha sido engodado mais vezes
e saiba que é assim que deve levar a cabo a sua luta. Não tem meios de saber
que sou apenas um homem contra ele, nem que sou apenas um velho. Mas que grande
peixe que é ele e que fortuna deve valer no mercado, se tiver boa carne. Agarra
na isca como um macho e puxa como um macho e na sua luta não há pânico. Terá
algum plano ou estará tão desesperado como eu?”
Lembrou-se do tempo em que pescara um casal de
espadartes. O peixe macho deixa sempre que a fêmea se alimente primeiro e de
fato assim fora: a fêmea mordeu a isca e, sentindo-se presa, encheu-se de medo,
lançando-se numa luta selvagem e desesperada que depressa a cansou. E durante
todo esse tempo o macho ficou ao lado dela, atravessando a linha e
circundando-lhe em volta à tona da água. Andara tão perto, que o velho chegara
a ter medo que ele cortasse a linha com a cauda, tão aguçada e quase tão grande
como uma foice das maiores. Quando o velho a enganchou e lhe deu uma série de
pancadas que a deixaram quase morta e, depois, com a ajuda do rapaz, a içou
para bordo, o macho ainda continuou junto ao barco. Depois, quando o velho
estava limpando as linhas e preparando o arpão, deu um grande salto no ar mesmo
ao lado do barco, para ver onde estava a fêmea, e voltou a mergulhar nas
profundezas, com as asas brancas, as barbatanas peitorais, completamente abertas.
E ficou imóvel nessa posição. Era lindo, lembrava-se o velho pescador. E assim
permanecera durante muito tempo, de barbatanas abertas, numa posição majestosa
e dolorida.
“Foi a coisa mais triste que vi desde que ando
a pescá-los”, pensou o velho. “O rapaz também ficou triste e pedimos desculpas
ao peixe fêmea e cortamo-lo muito depressa.”
– Gostaria tanto que o rapaz estivesse aqui,
disse em voz alta. Ajeitou-se de encontro à madeira arredondada do barco,
sentindo o peso do grande peixe na linha que aguentava aos ombros, a afastar-se
regularmente em direcção de fosse qual fosse o lugar que havia escolhido.
“Porque, afinal, foi por causa da minha
traição que ele se viu obrigado a escolher um local para onde fugir”, pensou o
velho.
“A sua escolha inicial fora a de se esconder
nas águas escuras e profundas, para além de todos os laços, armadilhas e
traições. A minha escolha fora a de ir procurá-lo onde jamais alguém ousara ir.
Sim, onde alguém jamais ousara ir. E agora estavam juntos um ao outro e assim se
encontravam desde o meio-dia. E não havia ninguém para ajudar nem a um nem a
outro.”
“Talvez eu não devesse ter escolhido a vida de
pescador", pensou o velho. “Mas foi para isso que eu nasci. Não posso
esquecer-me de comer a albacora logo que amanhecer.”
Um pouco antes do nascer do dia alguma coisa
mordeu a isca de uma das outras linhas que vinham sendo arrastadas pelo barco.
Ouviu avara partir-se e a linha começar a correr sobre a amurada do barco. Na
escuridão tirou a faca da bainha e, com o peso todo do peixe aos ombros,
dobrou-se para trás num esforço enorme e cortou a outra linha contra a madeira
da amurada. Depois cortou a linha que estava mais perto dele e na escuridão
ligou as pontas soltas dos rolos de reserva das duas linhas que cortara. Trabalhava
habilidosamente apenas com uma mão pondo o pé sobre os rolos enquanto apertava
os nós com força. Agora tinha seis rolos de reserva que poderia usar na linha
que segurava o peixe. Quatro dos rolos eram das linhas que cortara e os outros
dois eram da linha que agora usava e estavam todos ligados entre si.
“Quando amanhecer”, pensou o velho, “tenho de
alcançar aquela outra linha de setenta metros, cortá-la também e ligar mais
esses dois rolos de reserva. Perderei ao todo uns cento e oitenta metros de bom
cordel catalão além dos anzóis. Mas tudo isso pode ser substituído. E o que
poderia substituir este peixe, se outros peixes mordessem o anzol e se
enredassem todas as linhas? Não sei que peixe terá há pouco mordido a isca.
Podia ter sido um atum ou um golfinho ou então um tubarão. Nem o cheguei a
sentir. Tive de soltá-lo depressa demais.”
– Gostaria tanto de ter aqui o rapaz.... disse
em voz alta.
“Mas o rapaz não está aqui”, pensou. “Você só
tem a você mesmo e agora o melhor que tem a fazer é chegar àquela outra linha,
escuro ou não escuro, cortá-la e depois ligar os dois rolos de reserva.”
E assim fez. Na escuridão era difícil fazê-lo
e a certa altura O peixe deu um salto que esticou a corda e o atirou ao fundo
do barco, ocasionando-lhe um talho debaixo do olho. O sangue correu-lhe pelo
rosto abaixo, embora não fosse um ferimento muito grande, e coagulou mesmo
antes de chegar ao queixo. O velho ergueu-se, voltou para o banco e encostou-se
de encontro à madeira da amurada. Ajustou o saco e, cuidadosamente, moveu a
linha de maneira que passasse para o outro lado do ombro e, com ela atravessada
pelas costas, sentiu o peso do peixe, que corria cada vez mais depressa. Meteu
a mão dentro da água e calculou a velocidade que a canoa levava.
“Gostaria de saber por que é que ele deu
aquele salto”, pensou o velho. A linha deve ter escorregado no seu enorme
dorso. Mas certamente que as minhas costas estão mais doridas do que as dele. É
impossível que possa continuar a arrastar assim o barco. Mesmo que seja um gigante,
não poderá continuar assim durante muito mais tempo. Agora já eliminei tudo que
poderia trazer complicações e tenho uma grande reserva de linha; um pescador
não precisa de mais.”
– Peixe, falou ele, não o largo enquanto
viver.
"E ele também não me abandonará,
suponho”, pensou o velho, esperando ansiosamente que o dia nascesse. Agora,
antes do alvorecer, fazia muito frio e ele encostou-se mais ao banco para se
aquecer. “Posso aguentar tanto tempo como ele”, pensou o velho.
Com a primeira luz da madrugada viu a linha
que se estendia sobre a água e mergulhava obliquamente
a poucos metros da canoa. O barco movia-se
muito regularmente e quando o sol apareceu veio-lhe aquecer o ombro direito.
– Vai com rumo norte, disse o pescador. “A
corrente, ter-nos-ia levado mais para o nascente”, pensou. “Gostaria mais que
ele fosse ao sabor da corrente. Isso significaria que já está cansado.”
Quando o sol se levantou mais no horizonte, o
velho Santiago compreendeu que o peixe ainda não estava cansado. Só havia uma
indicação favorável. A inclinação da linha mostrava que ele estava nadando mais
à tona. Isso não queria necessariamente dizer que ele fosse saltar ou lutar.
Mas podia ser que sim.
– Deus queira que ele salte, disse o velho.
Tenho bastante linha para dar-lhe.
“Talvez, se eu aumentar um pouco a pressão,
ele se magoe e se decida a saltar. Agora que já está dia claro tenho que o
fazer saltar, para que os sacos da espinha dorsal se encham de ar e ele não
possa ir para o fundo e lá morrer.”
Tentou aumentar a pressão, mas a linha fora
esticada ao máximo desde que agarrara o peixe e ele sentiu a aspereza quando
puxou, percebendo que não poderia esticá-la mais. “Não posso agitar a linha”,
pensou ele. “Cada sacudidela alarga a ferida do anzol que poderá desprender-se
quando ele começar a saltar. De todos os modos sinto-me agora melhor com o sol
a aquecer-me e sem ter que olhá-lo de frente.”
Viam-se algas amarelas agarradas à linha, mas
o velho sabia que apenas representavam mais peso para o peixe puxar e este pensamento
lhe foi agradável. Eram algas amarelas do Gulf Stream , daquelas que
produziam tanta fosforescência durante a noite.
– Peixe, disse o velho, eu gosto muito de você
e o respeito muito. Mas vou matá-lo antes do fim do dia.
“Ou pelo menos assim espero”, completou em
pensamento.
Um pequeno pássaro, vindo do Norte, veio em
direcção ao barco. Era uma ave canora e voava muito baixo, quase à tona da
água. O velho compreendeu que ela estava muito cansada.
O pássaro conseguiu chegar ao barco e pousou
na proa. Depois esvoaçou à volta da cabeça do velho e foi pousar na linha, onde
estava mais confortável.
– Que idade você tem? perguntou o velho à
avezinha. Será esta a sua primeira viagem?
O pássaro olhou para ele quando ouviu a voz.
Estava tão cansado que nem olhou para a linha e ali ficou a tremer, com as
delicadas patas agarradas nervosamente à linha.
– Não tenha medo, a linha está segura, bem
segura, disse-lhe o velho. Demasiado segura e quieta. Você não devia estar
assim tão cansado depois de uma noite sem vento. Por que será que os pássaros
vêm para aqui?
“Para alimentar os falcões”, pensou ele, “que
vêm para o mar procurá-los.” Mas não disse nada disto à avezinha, que de
qualquer modo não podia compreender e que depressa travaria conhecimento com os
falcões.
– Repouse bem, pequena ave, aconselhou-lhe o
velho. Depois siga viagem e arrisque-se como qualquer homem, pássaro ou peixe.
O velho sentia-se melhor conversando com o
pássaro, pois as costas lhe tinham endurecido durante a noite e agora doíam de
verdade.
– Fique aqui na minha casa se quiser,
avezinha. Lamento não poder içar a vela e levá-la para terra com a pequena
brisa que está soprando. Mas agora estou com um amigo.
Nesse momento o peixe deu um esticão que
atirou o velho para a proa e o teria lançado ao mar se ele não se tivesse
agarrado com força e dado mais linha rapidamente.
O pássaro levantara voo quando a linha
estremeceu o velho nem sequer o viu desaparecer no céu. Com muito cuidado
apalpou a linha com a mão direita e notou que ela estava sangrando.
– Alguma coisa o magoou naquele momento, disse
em voz alta, e puxou a linha para ver se o peixe continuava a oferecer a mesma
resistência. Mas quando a linha tornou a esticar-se ao ponto máximo, em que
bastava uma pressão um pouco maior para parti-la, o velho tornou a sentar-se e
a aguentá-la como até então.
– Já a está sentindo, meu peixe, disse o
velho, e eu, Deus o sabe, também estou.
Voltou à procura do pássaro porque gostava da
sua companhia. Mas o pássaro tinha desaparecido.
“Você não ficou muito tempo”, pensou o
pescador. “Mas antes de chegar à costa vai apanhar mau tempo todo o caminho.
Como é que eu deixei que o peixe me cortasse a mão com aquele esticão súbito?
Devo estar ficando muito estúpido. Ou talvez estivesse a olhar para o pássaro e
a pensar nele. Agora tenho de prestar toda atenção ao que estou fazendo;
preciso também comer o atum para que as forças não me faltem.”
– Gostaria tanto que o rapaz estivesse aqui e
também de ter um pouco de sal...
Mudando o peso da linha para o ombro esquerdo
e ajoelhando-se cautelosamente, lavou a mão no oceano e deixou-a ficar,
submersa, durante mais de um minuto, observando o sangue que se espalhava pela
água e o movimento da água de encontro à mão à medida que o barco avançava.
- Já vai muito mais devagar, disse o velho
pescador.
Teria gostado de conservar mais tempo a mão na
água salgada, mas tinha medo de que o peixe desse outro esticão inesperado e
levantou-se a custo, erguendo a mão para o sol. Fora apenas a fricção da linha
que lhe ferira a carne. Mas era na parte mais necessária da mão. Sabia que
precisaria usar as duas mãos antes de tudo acabar e não gostava de se ferir
antes do começo do fim.
– Agora, murmurou, quando a mão, aquecida pelo
sol, secou completamente, tenho de comer o pequeno atum. Posso puxá-lo com o
gancho e comê-lo aqui sem ter de me levantar de novo.
Pegou no gancho, estendeu-o para a popa onde
estava o atum e puxou-o para junto de si, tendo cuidado em não embaraçar os
rolos de linha. Tornando a colocar a linha sobre o ombro esquerdo e usando o
braço esquerdo, tirou o peixe do gancho e tornou a arrumá-lo no seu lugar. Pôs
um joelho sobre o atum e começou a cortar desde a cabeça à cauda, tiras
longitudinais de carne vermelho-escura. Cortava-as do começo da espinha dorsal
até a ourela da barriga. Depois de cortar seis tiras, estendeu-se no fundo da
proa, limpou a faca nas calças, pegou na carcaça do peixe pela cauda e atirou-a
na água.
– Não me parece que possa comer o peixe todo,
disse em voz alta, e passou a faca por uma das tiras. Sentia a pressão contínua
da linha e tinha cãibras na mão esquerda. Tinha a mão agarrada à volta da
linha, rígida e inerte, e olhou-a com uma expressão aborrecida.
-Que espécie de mão é esta? perguntou com
desprezo. Toda cheia de cãibras. Até parece uma garra sem vida. Não presta para
nada.
“Vamos”, pensou, olhando para o declive da
linha a mergulhar obliquamente nas escuras águas. “Coma o atum agora para dar
mais força às mãos. Aquela mão não tem culpa e já se passaram muitas horas
desde que senti o peixe pela primeira vez. Mas, se calhar, terei de andar atrás
dele a vida toda. Coma agora.”
Pegou numa das tiras e levou-a à boca,
mastigando-a lentamente. Não era desagradável.
“Mastigue bem”, pensou o velho, “saboreie o
suco. Não seria nada mau se pudesse comê-lo acompanhado de limão e sal.”
– Como é que você se sente, mão? perguntou ele
à mão tomada de cãibras, tão inerte que parecia de uma rigidez cadavérica. Vou
comer mais por sua causa.
Comeu a outra parte do pedaço que cortara em
dois. Mastigou lentamente e depois cuspiu a pele no mar.
– E agora está melhor, mão? Ou ainda é muito
cedo para o sentir.
Pegou noutra tira e meteu-a toda na boca,
mastigando-a cuidadosamente.
– Era um peixe forte e saudável, disse ele.
Tive sorte em o apanhar, em vez de um golfinho. Os golfinhos são demasiado
doces. Este quase não é doce e tem um sangue fresco e forte.
“Não é bom pensar no que não é possível nem
razoável, mas gostaria tanto de ter aqui um pouco de sal! Não sei se o sol
secará ou apodrecerá o resto do peixe e o melhor é que eu acabe de comê-lo
apesar de não ter fome nenhuma: O peixe agora está mais calmo, nadando mais
devagar. Vou acabar de comer e depois terei mais forças para a luta final.”
– Tenha paciência, mão, disse ele. Estou
comendo isto para lhe dar forças.
“Gostaria de poder alimentar o peixe”, pensou.
“Ele é como se fosse meu irmão. Mas tenho de matá-lo e ganhar forças para o
fazer.”
Lenta e conscienciosamente comeu todas as
tiras de peixe que restavam.
Endireitou-se, limpando a mão nas calças.
– E agora, mão, você pode largar a linha, que
vou usar apenas o braço direito até que passe essa estúpida cãibra.
Pôs o pé esquerdo na pesada linha que estivera
segura pela mão esquerda e dobrou-se para trás a fim de resistir melhor à sua
pressão.
– Deus ajude essa cãibra a ir-se embora, pois
não sei o que o peixe vai fazer e como é que hei de combatê-lo.
“Mas agora parece calmo”, pensou o velho, “e
dir-se-ia seguir um plano bem definido. Que plano será esse?” continuou o velho
a pensar. “E qual é o meu plano? O meu terá de ser improvisado conforme ele
agir, pois é um peixe muito grande. Se ele saltar, posso matá-lo. Mas ainda nem
sequer veio à tona. Por isso melhor é continuar a pensar que não virá para cima
tão depressa.”
Esfregou a mão da cãibra nas calças, e tentou
mover os dedos. Mas a mão não queria abrir-se. “Talvez se abra com o sol”,
pensou. “Talvez se abra quando a carne forte do atum cru for digerida. Se não
puder prescindir dela, tenho de abri-la, custe o que custar. Mas por enquanto
não quero abri-la à força. Esperarei que se abra naturalmente e recupere a
mobilidade por si própria. Afinal de contas, devo reconhecer que abusei dela
durante a noite, quando foi necessário desprender e atar as diversas linhas.”
Olhou para o mar que se perdia no horizonte e
verificou quão só estava agora. Só podia ver os prismas na água profunda e
alinha estendendo-se à frente do barco e a estranha ondulação calma do mar. As
nuvens estavam subindo cada vez mais, por causa da mudança do vento. O velho
olhou para o norte e viu um bando de patos bravos a delinear-se no céu sobre o
mar. Depois desapareceu e tornou a aparecer ao longe. Na verdade, no mar alto,
nunca se está completamente só.
Pensou naqueles homens que temiam afastar-se
muito da costa num barco pequeno e sabia que eles tinham razão nos meses de mau
tempo. Mas agora estava-se em mês de ciclones e, quando não há ciclones, estes
meses são os melhores do ano.
“Quando há um ciclone, vêem-se sempre sinais
no céu alguns dias antes, se se estiver no mar, naturalmente. Em terra firme
não os sabem prever porque não conhecem os sinais”, pensou ele. “A forma das
nuvens também deve ser diferente; em terra firme. Mas agora não há o menor
sinal de tempestade ou ciclone.”
Olhou para o céu e viu os brancos cúmulos amontoados
como agradáveis pilhas de sorvetes e, mais para cima, as frágeis plumas dos
cirros distinguiam-se nitidamente no céu límpido de Setembro.
-Brisa ligeira, disse o velho. Melhor tempo
para mim do que para você, peixe.
Ainda tinha a maldita cãibra na mão esquerda,
mas ia recuperando os movimentos lentamente.
“Detesto as cãibras”, pensou o velho pescador.
“É uma traição do corpo. É humilhante ser atacado de diarreia devido a um
envenenamento de ptomaínas ou, pela mesma causa, nos vermos obrigados a vomitar.”
Mas uma cãibra, se não era humilhante ante os outros, era-o sobretudo perante
ele mesmo, muito especialmente quando estava sozinho.
“Se o rapaz estivesse aqui podia friccionar-me
a mão e aliviar-me o antebraço”, pensou. “Mas espero que isto logo fique bom.”
De repente, sentiu na mão direita uma
diferença na pressão da linha, antes de ver a mudança de declive na água.
Depois, à medida que se curvava para aguentar melhor a linha e dava socos
violentos com a mão esquerda na perna, viu a linha subir lentamente para a tona
da água.
– Está subindo! exclamou o velho. Vamos mão.
Acorde, por favor.
A linha começou a erguer-se lenta e
cautelosamente e pouco depois a superfície do oceano agitou-se à proa do barco
e o peixe apareceu. Apareceu à tona d'água e parecia nunca acabar. A água
deslizava-lhe mansamente pelo enorme dorso. Brilhou à luz do sol. A cabeça e o
dorso eram purpúreos, e as barbatanas abriram-se, imensas, cor de violeta
pálida. Tinha a espádua mais comprida do que um bat de baseball, rematada
com um estoque, e saiu da água completamente, tomando depois a mergulhar,
suavemente, como um mergulhador. O velho viu a cauda em forma de foice
desaparecer e começou a dar-lhe linha
– Tem pelo menos mais setenta centímetros do
que o comprimento da canoa, murmurou o velho. A linha estava correndo veloz mas
bem firme, e o peixe não parecia aterrorizado. O velho procurava, com as duas
mãos, conservar a linha o mais esticada possível mas sem atingir o limite.
Sabia que, se não pudesse diminuir a velocidade do peixe com uma pressão
regular, este podia levar toda a linha atrás de si e parti-la.
“É um peixe enorme e tenho de dominá-lo. Não
posso deixar que ele compreenda a força que possui, nem o que poderia fazer se
aumentasse a velocidade. Se eu fosse ele, reuniria agora todas as minhas forças
e começaria a correr com toda a velocidade até que qualquer coisa se partisse.
Mas, graças a Deus, não são tão inteligentes como nós, nós que os matamos,
embora sejam mais nobres e mais valiosos.”
(O Velho e o Mar, Ernest Hemingway. Civilização
Brasileira. Rio de Janeiro, 1985)
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