sábado, 9 de julho de 2022

O Velho e o Mar

 

Ernest Hemingway

O Velho e o Mar é, seguramente, o livro mais poético de todos os que Hemingway escreveu, o mundo de O Velho e o Mar é o mundo da reconciliação e da amizade, da luta contra a adversidade e o destino. Nas palavras de Jorge de Sena, no prólogo da edição portuguesa de 1956, “é um breve poema em prosa, uma epopeia de trama simples, singelamente narrada. Mas é, por outro lado, muito mais do que isso: um breviário nobilíssimo da dignidade humana, escrito com a mais requintada das artes. Poucas vezes, no nosso tempo, terá sido concebida e realizada uma obra tão pura, em que a natureza e a humanidade sejam, frente a frente, tão verdade”. 

*

Já não podia ver o verde da costa, apenas avistava os cumes das colinas azuis, esbranquiçadas como se estivessem cobertas de neve e as nuvens, que pareciam grandes montanhas brancas por cima das colinas. O mar estava muito escuro e a luz formava prismas na água. Os milhões de reflexos na água eram agora anulados pelo sol, que estava alto, e o velho só via os prismas muito profundos na água azul e as linhas a cair verticalmente para o fundo do mar, que naquela zona tinha mais de uma milha de profundidade.

Os atuns – os pescadores chamavam assim a todos os peixes daquela espécie e só os diferenciavam pelos seus nomes próprios quando os vendiam ou os trocavam por isca – haviam de novo mergulhado e não mais eram vistos em nenhum lugar. O sol estava muito mais quente e o velho o sentiu na parte posterior do pescoço, de onde o suor lhe escorria pelas costas enquanto remava.

“Podia ir à deriva”, pensou ele, “e dormir um pouco com aponta da linha atada no pé, para me acordar se algum peixe mordesse. Mas hoje é o octogésimo quinto dia e devo pescar o melhor possível.”

Neste momento, quando examinava as linhas, viu uma das varas verdes dobrar-se violentamente.

– Pronto, disse o velho. Pronto, e arrumou os remos, fazendo por não estremecer o barco. Agarrou na linha e segurou-a suavemente entre o polegar e o indicador da mão direita. Não sentiu nenhuma força nem peso e continuou a segurar na linha com suavidade. Depois, sentiu outro puxão. Desta vez era um puxão ligeiro, quase suave, e ele sabia exactamente o que era. A uns cento e cinquenta metros de profundidade, um espadarte estava comendo as sardinhas que cobriam a ponta do anzol que se projectava da cabeça do atum-isca. O velho tinha a linha suavemente presa nos dois dedos e, delicadamente, com a mão esquerda, a desprendeu da vara. Agora podia deixá-la correr pelos dedos sem que o peixe sentisse qualquer tensão.

– Assim tão longe de terra, e neste mês, deve ser enorme. Coma a isca, peixe! Coma. Coma, por favor. São tão frescas e você está aí tão fundo, a cento e cinquenta metros, nessa água fria da escuridão. Dê uma volta no escuro e depois volte para comer toda a isca.

Sentiu um puxão muito ligeiro e depois um esticão mais violento, possivelmente devido a uma cabeça de sardinha ter-se tomado mais difícil de arrancar do anzol. Depois não sentiu mais nada.

– Vamos! exclamou o velho em voz alta. Dê outra volta. Cheire-as. Não é verdade que são deliciosas? Coma-as todas agora e depois ainda lhe restará o atum. Duro e frio e saboroso. Não seja tímido, meu peixe. Coma-as.

Ficou à espera, com a linha segura entre o polegar e o dedo indicador, observando alinha e também as outras ao mesmo tempo, pois o peixe podia ter nadado por outro nível, mais acima ou mais abaixo. Depois, tomou a sentir o mesmo puxão delicado.

– Vai comê-las, falou o velho pescador. Deus o ajude a comê-las.

Mas o peixe não trincou. Afastou-se de novo e o velho não sentiu mais nada.

– Não é possível que tenha ido embora, murmurou o velho. Deus sabe que não pode ter ido embora. Está dando uma volta. Talvez já tenha alguma vez mordido algum anzol e esteja agora a lembrar-se disso.

Mas, pouco depois, voltou a sentir o peixe. Sentiu-se muito feliz.

-Tinha ido dar uma volta, disse o velho. Não tarda a morder.

Estava radiante com aquela pressão suave na linha e, passados poucos segundos, sentiu um esticão violento e incrivelmente forte. Era o peso do peixe, e deixou a linha correr para baixo, para baixo, para baixo, desenrolando os dois primeiros rolos de reserva. À medida que ia descendo, deslizando ligeiramente pelos seus dedos, podia ainda perceber o grande peso, embora a pressão no polegar e no indicador fosse quase imperceptível.

-Mas que peixe! exclamou. Agarrou o atum e está afastando-se com ele na boca.

“Depois há de parar, dar uma reviravolta e engoli-lo”, pensou o velho pescador. Não disse isto em voz alta, porque sabia que, se dissesse uma coisa boa, talvez ela não acontecesse. Estava certo de que se tratava de um peixe enorme e imaginou-o a mover-se na escuridão com o atum atravessado na boca. Sentiu-o parar, mas o peso ainda continuava presente. Depois o peso aumentou e deu-lhe mais linha. Apertou a pressão do polegar e do indicador durante um momento e o peso tornou a aumentar, afastando-se rapidamente para baixo.

– Já trincou a isca! exclamou o velho, muito feliz. Agora tenho de deixá-lo comer a isca em paz.

Soltou a linha de forma que um bom pedaço deslizasse para a água e com a mão esquerda ligou a ponta dos rolos de reserva à ponta dos dois rolos de reserva as outras linhas. Agora estava pronto. Tinha duzentos e vinte metros de linha de reserva, além do rolo em uso.

– Coma um pedaço mais, pediu ele. Coma bem.

“Coma-a de maneira que a ponta do anzol lhe espete o coração e o mate”, pensou o pescador. “Venha à tona sem grandes dificuldades e deixe-me agarrá-lo com o arpão. Pronto. Está pronto? Já comeu bastante?”

– Agora! exclamou em voz alta, agarrando na linha com as duas mãos e começando a puxar com força. Recuperou um metro de linha e depois puxou e tornou a puxar, estendendo cada braço alternadamente sobre a linha com toda a força dos músculos e todo o peso de seu corpo bem equilibrado no banco.

Não aconteceu nada. O peixe deslocou-se lentamente e o pescador não conseguiu içá-lo nem um centímetro. A linha era forte e feita especialmente para suportar o peso de peixes grandes. O velho passou-a pelas costas e aguentou o peso do peixe, esticando-a tanto, que começaram a escorrer-lhe gotas de água pelas costas abaixo. Depois a corda começou a produzir uma espécie de assobio na água e ele continuou a segurá-la, esforçando-se para não ser cuspido do barco e inclinando-se para trás a fim de resistir à pressão. O barco principiou então a mover-se lentamente para nordeste.

O peixe avançava regularmente e foram-se afastando lentamente sobre a água calma do mar. O resto da isca ainda estava na água, mas era impossível puxá-la para o barco.

– Gostaria de ter aqui comigo o rapaz, falou o velho em voz alta. Estou sendo rebocado por um peixe e sou eu o poste ao qual está preso o reboque. Podia puxar mais a linha. Mas ela podia partir-se. Preciso aguentar enquanto puder e dar-lhe linha quando for preciso. Graças a Deus que está avançando a direito em vez de ir para o fundo.

“Que fazer se ele for para o fundo, é que não sei. O que hei, de fazer se ele mergulhar ou partir disparado, não sei. Mas farei qualquer coisa. Há uma porção de coisas que possa fazer.”

Continuou com a linha às costas e observou-lhe o declive na água enquanto a canoa não cessava de se mover lenta mas regularmente, para nordeste.

“Isto acabará por matá-lo”, pensou o velho. “Não pode continuar assim toda a vida.” Mas quatro horas depois o peixe ainda continuava a nadar compassadamente para o largo, rebocando a canoa, e o velho continuava firmemente instalado com a linha pelas costas e as duas mãos a segurá-la com quanta força tinham ainda seus velhos músculos.

– Era meio-dia quando o pesquei, disse. E ainda nem sequer o vi.

Puxara o chapéu de palha dura para a frente antes de agarrar o peixe e agora estava a cortar-lhe a testa. Tinha sede também e ajoelhou-se, com cuidado para não abanar a linha, movendo-se dificilmente para onde estava a garrafa de água que finalmente conseguiu agarrar com uma mão. Abriu-a e bebeu um trago. Depois encostou-se ao mastro. Ficou sentado, descansando, e tentou não pensar: apenas aguentar.

Depois olhou para trás e verificou que já não via terra. “Não faz diferença”, pensou. “Para voltar posso sempre guiar-me pelo resplendor de Havana. Ainda faltam duas horas para o pôr do sol e pode ser que ele venha à tona antes disso. Se assim não for, pode ser que venha para cima com a lua. E se isso também não acontecer, pode ser que se decida a vir à tona com o nascer do sol. Não tenho cãibras e sinto-me forte. Quem tem o anzol na boca é ele. Mas que peixe deve ser para puxar desta maneira! Deve ter a boca fechada sobre o anzol. Gostaria de poder vê-lo. Gostaria de ver uma só vez para saber o que tenho pela frente.”

O peixe não mudou de rumo ou de direcção durante toda a noite, ou, pelo menos, que o pescador, pelo que lhe diziam as estrelas, tivesse notado. Fizera muito frio depois do pôr do sol e o suor secara-lhe nas costas, nos braços e nas velhas pernas, arrefecendo-o ainda mais. Durante o dia tirara o saco que cobria a caixa da isca e estendera-o ao sol para secar. Depois que o sol desaparecera no horizonte, atara-o à volta do pescoço, de forma a cair-lhe sobre as costas, e colocara cuidadosamente um pedaço de pano debaixo da linha, que agora levava presa ao ombro. O saco servia de almofada à linha e o velho descobrira uma maneira de se curvar para a frente de encontro ao mastro, de modo que chegava a ser quase confortável. Na realidade a posição era um pouco mais tolerável mas ele a considerava quase confortável.

“Não posso fazer nada com ele, e ele não pode fazer nada comigo”, pensou o velho pescador. “Ou pelo menos, enquanto continuar com este andamento.”

Teve de se levantar uma vez para fazer suas necessidades pela borda fora e aproveitou a ocasião para olhar para as estrelas e saber o rumo que levavam. A linha parecia um raio de luz fosforescente na água que lhe nascia nos ombros. Agora iam mais devagar e era menor o clarão da cidade de Havana que se via ao longe. Por isso o velho sabia que a corrente os devia estar levando para leste. “Se o clarão de Havana desaparecer de todo, quer dizer que estamos indo para leste”, pensou ele. “Mas se a direcção que o peixe leva, continuara mesma, deverei avistar o resplendor da cidade durante muitas horas ainda. Quais teriam sido hoje os resultados do baseball nas Ligas principais? Seria maravilhoso se eu tivesse um aparelho de rádio.” Depois disse de si para si: “Pense constantemente no peixe. Pense no que está fazendo. Você não deve distrair-se nem um minuto.”

E em voz alta:

– Gostaria tanto de ter aqui o rapaz! Para me ajudar e para ver isto.

“Pessoas da minha idade nunca deviam estar sozinhas", pensou ele. “Mas é inevitável. Tenho de comer aquele atum antes que comece a luta, para estar forte. Lembre-se de que, mesmo que não tenha fome, você precisa comer de manhãzinha. Lembre-se”, repetiu-o em pensamento.

Durante a noite dois porcos-marinhos aproximaram-se do barco e o velho ouviu-os a rolar na água e a soprar com força. Notou a diferença entre o soprar do macho e o da fêmea.

– São bons, murmurou o velho. Brincam e fazem partidas um ao outro e amam-se. São nossos irmãos, tal como os peixes-voadores.

Depois começou a ter pena do enorme peixe que agarrara. “É maravilhoso e estranho e quem saberá que idade tem?!” pensou o velho. “Nunca pesquei um peixe tão pesado e tão estranho. Talvez seja demasiadamente inteligente para saltar. Podia acabar comigo se saltasse ou se se lançasse numa disparada louca. Mas talvez já tenha sido engodado mais vezes e saiba que é assim que deve levar a cabo a sua luta. Não tem meios de saber que sou apenas um homem contra ele, nem que sou apenas um velho. Mas que grande peixe que é ele e que fortuna deve valer no mercado, se tiver boa carne. Agarra na isca como um macho e puxa como um macho e na sua luta não há pânico. Terá algum plano ou estará tão desesperado como eu?”

Lembrou-se do tempo em que pescara um casal de espadartes. O peixe macho deixa sempre que a fêmea se alimente primeiro e de fato assim fora: a fêmea mordeu a isca e, sentindo-se presa, encheu-se de medo, lançando-se numa luta selvagem e desesperada que depressa a cansou. E durante todo esse tempo o macho ficou ao lado dela, atravessando a linha e circundando-lhe em volta à tona da água. Andara tão perto, que o velho chegara a ter medo que ele cortasse a linha com a cauda, tão aguçada e quase tão grande como uma foice das maiores. Quando o velho a enganchou e lhe deu uma série de pancadas que a deixaram quase morta e, depois, com a ajuda do rapaz, a içou para bordo, o macho ainda continuou junto ao barco. Depois, quando o velho estava limpando as linhas e preparando o arpão, deu um grande salto no ar mesmo ao lado do barco, para ver onde estava a fêmea, e voltou a mergulhar nas profundezas, com as asas brancas, as barbatanas peitorais, completamente abertas. E ficou imóvel nessa posição. Era lindo, lembrava-se o velho pescador. E assim permanecera durante muito tempo, de barbatanas abertas, numa posição majestosa e dolorida.

“Foi a coisa mais triste que vi desde que ando a pescá-los”, pensou o velho. “O rapaz também ficou triste e pedimos desculpas ao peixe fêmea e cortamo-lo muito depressa.”

– Gostaria tanto que o rapaz estivesse aqui, disse em voz alta. Ajeitou-se de encontro à madeira arredondada do barco, sentindo o peso do grande peixe na linha que aguentava aos ombros, a afastar-se regularmente em direcção de fosse qual fosse o lugar que havia escolhido.

“Porque, afinal, foi por causa da minha traição que ele se viu obrigado a escolher um local para onde fugir”, pensou o velho.

“A sua escolha inicial fora a de se esconder nas águas escuras e profundas, para além de todos os laços, armadilhas e traições. A minha escolha fora a de ir procurá-lo onde jamais alguém ousara ir. Sim, onde alguém jamais ousara ir. E agora estavam juntos um ao outro e assim se encontravam desde o meio-dia. E não havia ninguém para ajudar nem a um nem a outro.”

“Talvez eu não devesse ter escolhido a vida de pescador", pensou o velho. “Mas foi para isso que eu nasci. Não posso esquecer-me de comer a albacora logo que amanhecer.”

Um pouco antes do nascer do dia alguma coisa mordeu a isca de uma das outras linhas que vinham sendo arrastadas pelo barco. Ouviu avara partir-se e a linha começar a correr sobre a amurada do barco. Na escuridão tirou a faca da bainha e, com o peso todo do peixe aos ombros, dobrou-se para trás num esforço enorme e cortou a outra linha contra a madeira da amurada. Depois cortou a linha que estava mais perto dele e na escuridão ligou as pontas soltas dos rolos de reserva das duas linhas que cortara. Trabalhava habilidosamente apenas com uma mão pondo o pé sobre os rolos enquanto apertava os nós com força. Agora tinha seis rolos de reserva que poderia usar na linha que segurava o peixe. Quatro dos rolos eram das linhas que cortara e os outros dois eram da linha que agora usava e estavam todos ligados entre si.

“Quando amanhecer”, pensou o velho, “tenho de alcançar aquela outra linha de setenta metros, cortá-la também e ligar mais esses dois rolos de reserva. Perderei ao todo uns cento e oitenta metros de bom cordel catalão além dos anzóis. Mas tudo isso pode ser substituído. E o que poderia substituir este peixe, se outros peixes mordessem o anzol e se enredassem todas as linhas? Não sei que peixe terá há pouco mordido a isca. Podia ter sido um atum ou um golfinho ou então um tubarão. Nem o cheguei a sentir. Tive de soltá-lo depressa demais.”

– Gostaria tanto de ter aqui o rapaz.... disse em voz alta.

“Mas o rapaz não está aqui”, pensou. “Você só tem a você mesmo e agora o melhor que tem a fazer é chegar àquela outra linha, escuro ou não escuro, cortá-la e depois ligar os dois rolos de reserva.”

E assim fez. Na escuridão era difícil fazê-lo e a certa altura O peixe deu um salto que esticou a corda e o atirou ao fundo do barco, ocasionando-lhe um talho debaixo do olho. O sangue correu-lhe pelo rosto abaixo, embora não fosse um ferimento muito grande, e coagulou mesmo antes de chegar ao queixo. O velho ergueu-se, voltou para o banco e encostou-se de encontro à madeira da amurada. Ajustou o saco e, cuidadosamente, moveu a linha de maneira que passasse para o outro lado do ombro e, com ela atravessada pelas costas, sentiu o peso do peixe, que corria cada vez mais depressa. Meteu a mão dentro da água e calculou a velocidade que a canoa levava.

“Gostaria de saber por que é que ele deu aquele salto”, pensou o velho. A linha deve ter escorregado no seu enorme dorso. Mas certamente que as minhas costas estão mais doridas do que as dele. É impossível que possa continuar a arrastar assim o barco. Mesmo que seja um gigante, não poderá continuar assim durante muito mais tempo. Agora já eliminei tudo que poderia trazer complicações e tenho uma grande reserva de linha; um pescador não precisa de mais.”

– Peixe, falou ele, não o largo enquanto viver.

"E ele também não me abandonará, suponho”, pensou o velho, esperando ansiosamente que o dia nascesse. Agora, antes do alvorecer, fazia muito frio e ele encostou-se mais ao banco para se aquecer. “Posso aguentar tanto tempo como ele”, pensou o velho.

Com a primeira luz da madrugada viu a linha que se estendia sobre a água e mergulhava obliquamente

a poucos metros da canoa. O barco movia-se muito regularmente e quando o sol apareceu veio-lhe aquecer o ombro direito.

– Vai com rumo norte, disse o pescador. “A corrente, ter-nos-ia levado mais para o nascente”, pensou. “Gostaria mais que ele fosse ao sabor da corrente. Isso significaria que já está cansado.”

Quando o sol se levantou mais no horizonte, o velho Santiago compreendeu que o peixe ainda não estava cansado. Só havia uma indicação favorável. A inclinação da linha mostrava que ele estava nadando mais à tona. Isso não queria necessariamente dizer que ele fosse saltar ou lutar. Mas podia ser que sim.

– Deus queira que ele salte, disse o velho. Tenho bastante linha para dar-lhe.

“Talvez, se eu aumentar um pouco a pressão, ele se magoe e se decida a saltar. Agora que já está dia claro tenho que o fazer saltar, para que os sacos da espinha dorsal se encham de ar e ele não possa ir para o fundo e lá morrer.”

Tentou aumentar a pressão, mas a linha fora esticada ao máximo desde que agarrara o peixe e ele sentiu a aspereza quando puxou, percebendo que não poderia esticá-la mais. “Não posso agitar a linha”, pensou ele. “Cada sacudidela alarga a ferida do anzol que poderá desprender-se quando ele começar a saltar. De todos os modos sinto-me agora melhor com o sol a aquecer-me e sem ter que olhá-lo de frente.”

Viam-se algas amarelas agarradas à linha, mas o velho sabia que apenas representavam mais peso para o peixe puxar e este pensamento lhe foi agradável. Eram algas amarelas do Gulf Stream , daquelas que produziam tanta fosforescência durante a noite.

– Peixe, disse o velho, eu gosto muito de você e o respeito muito. Mas vou matá-lo antes do fim do dia.

“Ou pelo menos assim espero”, completou em pensamento.

Um pequeno pássaro, vindo do Norte, veio em direcção ao barco. Era uma ave canora e voava muito baixo, quase à tona da água. O velho compreendeu que ela estava muito cansada.

O pássaro conseguiu chegar ao barco e pousou na proa. Depois esvoaçou à volta da cabeça do velho e foi pousar na linha, onde estava mais confortável.

– Que idade você tem? perguntou o velho à avezinha. Será esta a sua primeira viagem?

O pássaro olhou para ele quando ouviu a voz. Estava tão cansado que nem olhou para a linha e ali ficou a tremer, com as delicadas patas agarradas nervosamente à linha.

– Não tenha medo, a linha está segura, bem segura, disse-lhe o velho. Demasiado segura e quieta. Você não devia estar assim tão cansado depois de uma noite sem vento. Por que será que os pássaros vêm para aqui?

“Para alimentar os falcões”, pensou ele, “que vêm para o mar procurá-los.” Mas não disse nada disto à avezinha, que de qualquer modo não podia compreender e que depressa travaria conhecimento com os falcões.

– Repouse bem, pequena ave, aconselhou-lhe o velho. Depois siga viagem e arrisque-se como qualquer homem, pássaro ou peixe.

O velho sentia-se melhor conversando com o pássaro, pois as costas lhe tinham endurecido durante a noite e agora doíam de verdade.

– Fique aqui na minha casa se quiser, avezinha. Lamento não poder içar a vela e levá-la para terra com a pequena brisa que está soprando. Mas agora estou com um amigo.

Nesse momento o peixe deu um esticão que atirou o velho para a proa e o teria lançado ao mar se ele não se tivesse agarrado com força e dado mais linha rapidamente.

O pássaro levantara voo quando a linha estremeceu o velho nem sequer o viu desaparecer no céu. Com muito cuidado apalpou a linha com a mão direita e notou que ela estava sangrando.

– Alguma coisa o magoou naquele momento, disse em voz alta, e puxou a linha para ver se o peixe continuava a oferecer a mesma resistência. Mas quando a linha tornou a esticar-se ao ponto máximo, em que bastava uma pressão um pouco maior para parti-la, o velho tornou a sentar-se e a aguentá-la como até então.

– Já a está sentindo, meu peixe, disse o velho, e eu, Deus o sabe, também estou.

Voltou à procura do pássaro porque gostava da sua companhia. Mas o pássaro tinha desaparecido.

“Você não ficou muito tempo”, pensou o pescador. “Mas antes de chegar à costa vai apanhar mau tempo todo o caminho. Como é que eu deixei que o peixe me cortasse a mão com aquele esticão súbito? Devo estar ficando muito estúpido. Ou talvez estivesse a olhar para o pássaro e a pensar nele. Agora tenho de prestar toda atenção ao que estou fazendo; preciso também comer o atum para que as forças não me faltem.”

– Gostaria tanto que o rapaz estivesse aqui e também de ter um pouco de sal...

Mudando o peso da linha para o ombro esquerdo e ajoelhando-se cautelosamente, lavou a mão no oceano e deixou-a ficar, submersa, durante mais de um minuto, observando o sangue que se espalhava pela água e o movimento da água de encontro à mão à medida que o barco avançava.

- Já vai muito mais devagar, disse o velho pescador.

Teria gostado de conservar mais tempo a mão na água salgada, mas tinha medo de que o peixe desse outro esticão inesperado e levantou-se a custo, erguendo a mão para o sol. Fora apenas a fricção da linha que lhe ferira a carne. Mas era na parte mais necessária da mão. Sabia que precisaria usar as duas mãos antes de tudo acabar e não gostava de se ferir antes do começo do fim.

– Agora, murmurou, quando a mão, aquecida pelo sol, secou completamente, tenho de comer o pequeno atum. Posso puxá-lo com o gancho e comê-lo aqui sem ter de me levantar de novo.

Pegou no gancho, estendeu-o para a popa onde estava o atum e puxou-o para junto de si, tendo cuidado em não embaraçar os rolos de linha. Tornando a colocar a linha sobre o ombro esquerdo e usando o braço esquerdo, tirou o peixe do gancho e tornou a arrumá-lo no seu lugar. Pôs um joelho sobre o atum e começou a cortar desde a cabeça à cauda, tiras longitudinais de carne vermelho-escura. Cortava-as do começo da espinha dorsal até a ourela da barriga. Depois de cortar seis tiras, estendeu-se no fundo da proa, limpou a faca nas calças, pegou na carcaça do peixe pela cauda e atirou-a na água.

– Não me parece que possa comer o peixe todo, disse em voz alta, e passou a faca por uma das tiras. Sentia a pressão contínua da linha e tinha cãibras na mão esquerda. Tinha a mão agarrada à volta da linha, rígida e inerte, e olhou-a com uma expressão aborrecida.

-Que espécie de mão é esta? perguntou com desprezo. Toda cheia de cãibras. Até parece uma garra sem vida. Não presta para nada.

“Vamos”, pensou, olhando para o declive da linha a mergulhar obliquamente nas escuras águas. “Coma o atum agora para dar mais força às mãos. Aquela mão não tem culpa e já se passaram muitas horas desde que senti o peixe pela primeira vez. Mas, se calhar, terei de andar atrás dele a vida toda. Coma agora.”

Pegou numa das tiras e levou-a à boca, mastigando-a lentamente. Não era desagradável.

“Mastigue bem”, pensou o velho, “saboreie o suco. Não seria nada mau se pudesse comê-lo acompanhado de limão e sal.”

– Como é que você se sente, mão? perguntou ele à mão tomada de cãibras, tão inerte que parecia de uma rigidez cadavérica. Vou comer mais por sua causa.

Comeu a outra parte do pedaço que cortara em dois. Mastigou lentamente e depois cuspiu a pele no mar.

– E agora está melhor, mão? Ou ainda é muito cedo para o sentir.

Pegou noutra tira e meteu-a toda na boca, mastigando-a cuidadosamente.

– Era um peixe forte e saudável, disse ele. Tive sorte em o apanhar, em vez de um golfinho. Os golfinhos são demasiado doces. Este quase não é doce e tem um sangue fresco e forte.

“Não é bom pensar no que não é possível nem razoável, mas gostaria tanto de ter aqui um pouco de sal! Não sei se o sol secará ou apodrecerá o resto do peixe e o melhor é que eu acabe de comê-lo apesar de não ter fome nenhuma: O peixe agora está mais calmo, nadando mais devagar. Vou acabar de comer e depois terei mais forças para a luta final.”

– Tenha paciência, mão, disse ele. Estou comendo isto para lhe dar forças.

“Gostaria de poder alimentar o peixe”, pensou. “Ele é como se fosse meu irmão. Mas tenho de matá-lo e ganhar forças para o fazer.”

Lenta e conscienciosamente comeu todas as tiras de peixe que restavam.

Endireitou-se, limpando a mão nas calças.

– E agora, mão, você pode largar a linha, que vou usar apenas o braço direito até que passe essa estúpida cãibra.

Pôs o pé esquerdo na pesada linha que estivera segura pela mão esquerda e dobrou-se para trás a fim de resistir melhor à sua pressão.

– Deus ajude essa cãibra a ir-se embora, pois não sei o que o peixe vai fazer e como é que hei de combatê-lo.

“Mas agora parece calmo”, pensou o velho, “e dir-se-ia seguir um plano bem definido. Que plano será esse?” continuou o velho a pensar. “E qual é o meu plano? O meu terá de ser improvisado conforme ele agir, pois é um peixe muito grande. Se ele saltar, posso matá-lo. Mas ainda nem sequer veio à tona. Por isso melhor é continuar a pensar que não virá para cima tão depressa.”

Esfregou a mão da cãibra nas calças, e tentou mover os dedos. Mas a mão não queria abrir-se. “Talvez se abra com o sol”, pensou. “Talvez se abra quando a carne forte do atum cru for digerida. Se não puder prescindir dela, tenho de abri-la, custe o que custar. Mas por enquanto não quero abri-la à força. Esperarei que se abra naturalmente e recupere a mobilidade por si própria. Afinal de contas, devo reconhecer que abusei dela durante a noite, quando foi necessário desprender e atar as diversas linhas.”

Olhou para o mar que se perdia no horizonte e verificou quão só estava agora. Só podia ver os prismas na água profunda e alinha estendendo-se à frente do barco e a estranha ondulação calma do mar. As nuvens estavam subindo cada vez mais, por causa da mudança do vento. O velho olhou para o norte e viu um bando de patos bravos a delinear-se no céu sobre o mar. Depois desapareceu e tornou a aparecer ao longe. Na verdade, no mar alto, nunca se está completamente só.

Pensou naqueles homens que temiam afastar-se muito da costa num barco pequeno e sabia que eles tinham razão nos meses de mau tempo. Mas agora estava-se em mês de ciclones e, quando não há ciclones, estes meses são os melhores do ano.

“Quando há um ciclone, vêem-se sempre sinais no céu alguns dias antes, se se estiver no mar, naturalmente. Em terra firme não os sabem prever porque não conhecem os sinais”, pensou ele. “A forma das nuvens também deve ser diferente; em terra firme. Mas agora não há o menor sinal de tempestade ou ciclone.”

Olhou para o céu e viu os brancos cúmulos amontoados como agradáveis pilhas de sorvetes e, mais para cima, as frágeis plumas dos cirros distinguiam-se nitidamente no céu límpido de Setembro.

-Brisa ligeira, disse o velho. Melhor tempo para mim do que para você, peixe.

Ainda tinha a maldita cãibra na mão esquerda, mas ia recuperando os movimentos lentamente.

“Detesto as cãibras”, pensou o velho pescador. “É uma traição do corpo. É humilhante ser atacado de diarreia devido a um envenenamento de ptomaínas ou, pela mesma causa, nos vermos obrigados a vomitar.” Mas uma cãibra, se não era humilhante ante os outros, era-o sobretudo perante ele mesmo, muito especialmente quando estava sozinho.

“Se o rapaz estivesse aqui podia friccionar-me a mão e aliviar-me o antebraço”, pensou. “Mas espero que isto logo fique bom.”

De repente, sentiu na mão direita uma diferença na pressão da linha, antes de ver a mudança de declive na água. Depois, à medida que se curvava para aguentar melhor a linha e dava socos violentos com a mão esquerda na perna, viu a linha subir lentamente para a tona da água.

– Está subindo! exclamou o velho. Vamos mão. Acorde, por favor.

A linha começou a erguer-se lenta e cautelosamente e pouco depois a superfície do oceano agitou-se à proa do barco e o peixe apareceu. Apareceu à tona d'água e parecia nunca acabar. A água deslizava-lhe mansamente pelo enorme dorso. Brilhou à luz do sol. A cabeça e o dorso eram purpúreos, e as barbatanas abriram-se, imensas, cor de violeta pálida. Tinha a espádua mais comprida do que um bat de baseball, rematada com um estoque, e saiu da água completamente, tomando depois a mergulhar, suavemente, como um mergulhador. O velho viu a cauda em forma de foice desaparecer e começou a dar-lhe linha

– Tem pelo menos mais setenta centímetros do que o comprimento da canoa, murmurou o velho. A linha estava correndo veloz mas bem firme, e o peixe não parecia aterrorizado. O velho procurava, com as duas mãos, conservar a linha o mais esticada possível mas sem atingir o limite. Sabia que, se não pudesse diminuir a velocidade do peixe com uma pressão regular, este podia levar toda a linha atrás de si e parti-la.

“É um peixe enorme e tenho de dominá-lo. Não posso deixar que ele compreenda a força que possui, nem o que poderia fazer se aumentasse a velocidade. Se eu fosse ele, reuniria agora todas as minhas forças e começaria a correr com toda a velocidade até que qualquer coisa se partisse. Mas, graças a Deus, não são tão inteligentes como nós, nós que os matamos, embora sejam mais nobres e mais valiosos.”

(O Velho e o Mar, Ernest Hemingway. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1985)

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