quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

O Atentado Contra o Rei de Portugal

 

Artigo escrito por Lenine a propósito do atentado perpetrado contra o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro, publicado no jornal clandestino Prolétari a 03 de Março de 1908, revelando o significado político deste acto conspirativo e a situação de extrema decadência e isolamento político em que se encontrava a monarquia portuguesa.

A imprensa burguesa, mesmo a de tendência mais liberal e mais “democrática”, não poderia deixar de cair na moral dos Cem-Negros (1) nas suas considerações sobre o homicídio do aventureiro português.

Veja-se, por exemplo, o que a propósito do assunto diz o enviado especial de um dos melhores jornais democráticos burgueses da Europa, o “Jornal de Frankfurt”. Começa ele por descrever, num tom meio sério meio prazenteiro, de que maneira a matilha dos jornalistas, tal como cães farejando a presa, se precipitaram sobre Lisboa a partir do anúncio dessa notícia sensacional. “Encontrei-me de súbito” – escreve o nosso personagem – “numa carruagem-cama em companhia dum célebre jornalista de Londres, que se pôs logo a perorar sobre a sua experiência em tais matérias. De resto, era por virtude dessa mesma experiência que ele tinha já sido enviado a Belgrado, pelo que podia muito justamente considerar-se como um correspondente especial de casos de regicídio”.

Sim, porque o que acaba de acontecer ao rei de Portugal é, com toda a propriedade, um “acidente de trabalho”...

Mas que possa haver correspondentes profissionais para descrever as “desventuras” profissionais de Suas Majestades, os reis, isso não deve de modo algum surpreender-nos...

Porém, por mais obsessivo que seja em tais correspondentes o aspecto sensacionalista, vulgar e barato, a verdade nem por isso deixa de abrir frequentemente o seu caminho. “Um negociante, com loja no mais movimentado bairro comercial da cidade” contou ao correspondeste do “Jornal de Frankfurt” a coisa seguinte:

– “Desde que tive conhecimento do sucedido, pus a bandeira a meia-haste. Mas imediatamente os meus clientes e as pessoas das minhas relações acorreram a interpelar-me sobre se eu tinha perdido o juízo ou se queria liquidar as minhas amizades. Perguntei-lhes se eles não achavam que as pessoas, de qualquer maneira, experimentavam um sentimento de comiseração. Você, meu caro senhor, não pode imaginar as coisas que eu ouvi! Não tive outro remédio senão esconder a bandeirinha”.

Ao reproduzir este relato, o correspondente liberal especulava da seguinte maneira:

“Um povo por natureza tão bondoso e tão gentil como o povo português passou aparentemente por uma péssima escola, para que tivesse podido aprender a odiar tão sem piedade e até ao túmulo. E se isto é a verdade – e é indubitavelmente a verdade, pelo que, se eu a calasse, estaria a deformar uma verdade histórica –, se não são apenas semelhantes manifestações mudas que condenam a vítima coroada. Se qualquer pessoa pode escutar a cada passo, mesmo entre os defensores da ordem, injúrias dirigidas ao morto, é natural que se queira ir ao fundo deste raro encadeamento de circunstâncias que tornaram a tal ponto anormal a mentalidade do povo. Porque um povo que denega mesmo à morte o velho direito sagrado de resgatar todos os pecados terrestres, ou já degenerou moralmente ou está em presença de condições susceptíveis de provocar um sentimento incomensurável de ódio, capazes de obscurecer toda a tentativa de uma apreciação justa e imparcial”.

Oh, senhores hipócritas liberais! Por que não proclamais vós, então, a degenerescência moral desses sábios e escritores franceses que continuam a adiar e a insultar freneticamente não só os homens que fizeram o Comuna de 1871, mas inclusive os que fizeram 1793; não apenas os combatentes da revolução proletária, mas mesmo os combatentes de revolução burguesa? Que o povo suporte com bonomia todos os excessos, infâmias e brutalidades de que é vítima por parte dos meliantes coroados, eis o que parece “normal” e “moral” aos olhos dos “democratas” lacaios da burguesia “actual”.

De outro modo – continua o correspondente (quer dizer, de outro modo que não em razão de condições excepcionais) – “não poderia compreender-se o facto de que um jornal monárquico, logo sobre o acontecimento, use para falar das vítimas populares inocentes palavras impregnadas de um sentimento de tristeza que não usa para falar do próprio rei. Assiste-se desde já à nítida criação de legendas que envolverão os assassinos numa auréola de glória. Enquanto que, em quase todos os atentados, os partidos políticos se apressam geralmente em desembaraçar-se dos assassinos, os republicanos portugueses não dissimulam a honra e glória que sentem por que tenham saído das suas fileiras os mártires e os heróis do 1º de Fevereiro”...

O democrata burguês, sob o efeito de um zelo excessivo, mostra-se pronto a qualificar de “legenda revolucionária” o respeito que os cidadãos portugueses experimentam por aqueles que se sacrificaram para fazer desaparecer um rei que escarnecia da Constituição!

O correspondente de um outro jornal burguês, o “Corriere della Sera” de Milão, relata a ferocidade da censura portuguesa depois do regicídio. O governo não deixa passar os telegramas das agências noticiosas. Vê-se que os ministros e os reis, afinal, não se distinguem absolutamente nada por aquela “bonomia” que os honestos burgueses tanto gostariam de ver nas massas populares! Pois se é a guerra, utilizemos métodos militares – raciocinam com correcção os meliantes portugueses que ocuparam o lugar do rei assassinado. As dificuldades de comunicação não são inferiores às do tempo de guerra. É-se obrigado a expedir as notícias por uma outra via que não a telegráfica, primeiro pelo correio até Paris (talvez para um endereço particular) e, dai fazê-las seguir depois para Milão. “Mesmo na própria Rússia – escreve o correspondente a 7 de Fevereiro – a censura nunca foi, ainda que nos períodos revolucionários mais ardentes, tão apertada quanto o é em Portugal na hora actual”.

“Certos jornais republicanos – dá a saber o mesmo correspondente a 9 de Fevereiro – escrevem hoje, dia dos funerais do rei, tais coisas que eu definitivamente não ouso reproduzir no meu telegrama”.

A comunicação do dia 8 de Fevereiro, chegada ao seu destino já depois da correspondência precedente, reproduzia no entanto o que o jornal “O País” escrevia a propósito dos funerais:

“São levados hoje a enterrar os restos mortais de dois monarcas, vã poeira de uma monarquia em ruínas, monarquia que só se tem mantido pelos privilégios e pela traição, e que através dos seus crimes desonrou e manchou dois séculos da nossa História”.

“Evidentemente, é um jornal republicano que escreve isto – esclarece o correspondente – mas o aparecimento de um artigo comportando semelhantes termos no dia das exéquias do rei, é suficientemente eloquente”.

Por nossa parte, limitar-nos-emos a salientar que há apenas uma única coisa a lamentar: o facto de que o movimento republicano em Portugal não tenha, de modo suficientemente resoluto e público, feito justiça em relação a todos os patifes. Lastimamos que o assassinato do rei de Portugal testemunhe ainda a existência manifesta dum traço de terror conspirativo, isto é, impotente, que pela sua própria natureza não permite atingir o seu objectivo final, enquanto o terror autêntico, nacional, verdadeiramente regenerador, aquele terror que tornou a revolução francesa célebre, se revelou por agora extremamente fraco. Não é impossível, porém, que o movimento republicano português venha ainda a adquirir uma grande amplitude. As simpatias do proletariado socialista sempre irão para o lado dos republicanos contra a monarquia. Todavia, não se conseguiu até agora em Portugal mais que assustar a monarquia pelo assassinato de dois monarcas, quando a questão está em aniquilá-la.

Em todos os parlamentos da Europa, os socialistas exprimiram, cada um à sua maneira e na medida das suas possibilidades, a sua simpatia pelo povo e pelos republicanos portugueses, assim como os representantes das classes dirigentes expressaram o seu desgosto, reprovaram o assassinato do aventureiro e comunicaram a sua simpatia aos sucessores dele. Certos socialistas expuseram sem ambiguidades a sua opinião no seio dos parlamentos, e outros abandonaram as salas das sessões no momento em que eram proferidas declarações de simpatia para com a monarquia “atingida na sua carne”. No parlamento belga, Vandervelde (2), escolheu uma via “intermédia”, que é a pior, obrigando-se a dizer que honrava “todos os mortos”, isto é, tanto o rei como os assassinos. Estamos convencidos que Vandervelde será, entre os socialistas do mundo inteiro, o único a proceder assim.

A tradição republicana enfraqueceu-se consideravelmente entre os socialistas da Europa. Compreende-se que assim seja e, até certo ponto, justifica-se, precisamente na medida em que a proximidade da revolução socialista retira todo o significado prático à luta por uma república burguesa. Não obstante, sucede frequentemente que o abrandamento da propaganda republicana não tem como contrapartida o reforço da aspiração à vitória total do proletariado, mas sim um abaixamento da compreensão das tarefas revolucionárias da classe operária em geral. Não era sem fundada razão que Engels, ao criticar em 1891 o Projecto de Programa de Erfurt mostrava, com todas as suas últimas energias, aos operários alemães a importância da luta pela República, a necessidade de que esta luta se inscrevesse igualmente na ordem do dia do proletariado na Alemanha (3).

Quanto a nós, na Rússia, a luta pela República tem um alcance prático imediato. Só os mais desprezíveis dos oportunistas pequeno-burgueses, do género dos socialistas-populistas ou do “social-democrata” Malichevski (consultar, a este propósito, o “Prolétari” (4) nº 7) podiam extrair da experiência da revolução russa a conclusão de que a luta pela República tenha sido na Rússia relegada para segundo plano. Muito pelo contrário, a experiência da nossa revolução provou precisamente que a luta pelo aniquilamento da monarquia está na Rússia indissoluvelmente ligada à luta pela terra para os camponeses e pela liberdade para todo o povo. Por seu lado, a experiência da contra-revolução russa precisamente provou que, se a luta pela liberdade não tiver por alvo a monarquia, não chega sequer a ser uma luta, mas cobardia e inconsistência pequeno-burguesas ou, para dizer tudo e sem rodeios, um logro do povo por parte dos patifes do parlamentarismo burguês.

Notas:

1) Cem-Negros – bandos monárquicos criados na Rússia pela polícia czarista, destinados a combater o movimento revolucionário. Os Cem-Negros assassinaram operários e outros revolucionários das massas, atacaram intelectuais progressistas e organizaram perseguições contra os judeus.

2) Emilio Vandervelde (1866-1938) – revisionista e oportunista, que foi um dos dirigentes do Partido Operário belga e presidente do bureau político da II Internacional. Durante a Primeira Guerra Mundial imperialista defendeu posições social-chauvinistas e fez parte do Governo burguês da Bélgica.

3) Ver a obra de Engels “Crítica do Projecto de Programa Social-democrata de 1891” e a obra de Marx e Engels “Crítica dos Programas de Gotha e de Erfurt”.

4) Prolétari (O Proletário) – jornal clandestino bolchevique, órgão central do Partido Operário Social-democrata Russo, fundado e dirigido por Lenine. O artigo de Lenine “O Atentado Contra o Rei de Portugal” saiu no número 22, segunda série, de 3 de Março de 1908, numa altura em que o jornal era impresso em Genebra, na Suíça, e, depois introduzido na Rússia. Por essa época, Lenine vivia no exílio em Genebra.

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