Artigo escrito por Lenine a propósito do atentado perpetrado contra o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro, publicado no jornal clandestino Prolétari a 03 de Março de 1908, revelando o significado político deste acto conspirativo e a situação de extrema decadência e isolamento político em que se encontrava a monarquia portuguesa.
A imprensa burguesa, mesmo a de tendência mais
liberal e mais “democrática”, não poderia deixar de cair na moral dos
Cem-Negros (1) nas suas considerações sobre o homicídio do
aventureiro português.
Veja-se, por exemplo, o que a propósito do
assunto diz o enviado especial de um dos melhores jornais democráticos
burgueses da Europa, o “Jornal de Frankfurt”. Começa ele por descrever, num tom
meio sério meio prazenteiro, de que maneira a matilha dos jornalistas, tal como
cães farejando a presa, se precipitaram sobre Lisboa a partir do anúncio dessa
notícia sensacional. “Encontrei-me de súbito” – escreve o nosso
personagem – “numa carruagem-cama em companhia dum célebre jornalista de
Londres, que se pôs logo a perorar sobre a sua experiência em tais matérias. De
resto, era por virtude dessa mesma experiência que ele tinha já sido enviado a
Belgrado, pelo que podia muito justamente considerar-se como um correspondente
especial de casos de regicídio”.
Sim, porque o que acaba de acontecer ao rei de
Portugal é, com toda a propriedade, um “acidente de trabalho”...
Mas que possa haver correspondentes
profissionais para descrever as “desventuras” profissionais de Suas Majestades,
os reis, isso não deve de modo algum surpreender-nos...
Porém, por mais obsessivo que seja em tais
correspondentes o aspecto sensacionalista, vulgar e barato, a verdade nem por
isso deixa de abrir frequentemente o seu caminho. “Um negociante, com loja
no mais movimentado bairro comercial da cidade” contou ao correspondeste
do “Jornal de Frankfurt” a coisa seguinte:
– “Desde que tive conhecimento do
sucedido, pus a bandeira a meia-haste. Mas imediatamente os meus clientes e as
pessoas das minhas relações acorreram a interpelar-me sobre se eu tinha perdido
o juízo ou se queria liquidar as minhas amizades. Perguntei-lhes se eles não
achavam que as pessoas, de qualquer maneira, experimentavam um sentimento de
comiseração. Você, meu caro senhor, não pode imaginar as coisas que eu ouvi!
Não tive outro remédio senão esconder a bandeirinha”.
Ao reproduzir este relato, o correspondente
liberal especulava da seguinte maneira:
“Um povo por natureza tão bondoso e tão gentil
como o povo português passou aparentemente por uma péssima escola, para que
tivesse podido aprender a odiar tão sem piedade e até ao túmulo. E se isto é a
verdade – e é indubitavelmente a verdade, pelo que, se eu a calasse, estaria a
deformar uma verdade histórica –, se não são apenas semelhantes manifestações
mudas que condenam a vítima coroada. Se qualquer pessoa pode escutar a cada
passo, mesmo entre os defensores da ordem, injúrias dirigidas ao morto, é
natural que se queira ir ao fundo deste raro encadeamento de circunstâncias que
tornaram a tal ponto anormal a mentalidade do povo. Porque um povo que denega
mesmo à morte o velho direito sagrado de resgatar todos os pecados terrestres,
ou já degenerou moralmente ou está em presença de condições susceptíveis de
provocar um sentimento incomensurável de ódio, capazes de obscurecer toda a
tentativa de uma apreciação justa e imparcial”.
Oh, senhores hipócritas liberais! Por que não
proclamais vós, então, a degenerescência moral desses sábios e escritores
franceses que continuam a adiar e a insultar freneticamente não só os homens
que fizeram o Comuna de 1871, mas inclusive os que fizeram 1793; não apenas os
combatentes da revolução proletária, mas mesmo os combatentes de revolução
burguesa? Que o povo suporte com bonomia todos os excessos, infâmias e
brutalidades de que é vítima por parte dos meliantes coroados, eis o que parece
“normal” e “moral” aos olhos dos “democratas” lacaios da burguesia “actual”.
De outro modo – continua o correspondente
(quer dizer, de outro modo que não em razão de condições excepcionais)
– “não poderia compreender-se o facto de que um jornal monárquico, logo
sobre o acontecimento, use para falar das vítimas populares inocentes palavras
impregnadas de um sentimento de tristeza que não usa para falar do próprio rei.
Assiste-se desde já à nítida criação de legendas que envolverão os assassinos
numa auréola de glória. Enquanto que, em quase todos os atentados, os partidos
políticos se apressam geralmente em desembaraçar-se dos assassinos, os
republicanos portugueses não dissimulam a honra e glória que sentem por que
tenham saído das suas fileiras os mártires e os heróis do 1º de
Fevereiro”...
O democrata burguês, sob o efeito de um zelo
excessivo, mostra-se pronto a qualificar de “legenda revolucionária” o respeito
que os cidadãos portugueses experimentam por aqueles que se sacrificaram para
fazer desaparecer um rei que escarnecia da Constituição!
O correspondente de um outro jornal burguês, o
“Corriere della Sera” de Milão, relata a ferocidade da censura portuguesa
depois do regicídio. O governo não deixa passar os telegramas das agências
noticiosas. Vê-se que os ministros e os reis, afinal, não se distinguem
absolutamente nada por aquela “bonomia” que os honestos burgueses tanto
gostariam de ver nas massas populares! Pois se é a guerra, utilizemos métodos
militares – raciocinam com correcção os meliantes portugueses que ocuparam o
lugar do rei assassinado. As dificuldades de comunicação não são inferiores às
do tempo de guerra. É-se obrigado a expedir as notícias por uma outra via que
não a telegráfica, primeiro pelo correio até Paris (talvez para um endereço
particular) e, dai fazê-las seguir depois para Milão. “Mesmo na própria
Rússia – escreve o correspondente a 7 de Fevereiro – a censura nunca
foi, ainda que nos períodos revolucionários mais ardentes, tão apertada quanto
o é em Portugal na hora actual”.
“Certos jornais republicanos – dá a saber
o mesmo correspondente a 9 de Fevereiro – escrevem hoje, dia dos funerais
do rei, tais coisas que eu definitivamente não ouso reproduzir no meu
telegrama”.
A comunicação do dia 8 de Fevereiro, chegada
ao seu destino já depois da correspondência precedente, reproduzia no entanto o
que o jornal “O País” escrevia a propósito dos funerais:
“São levados hoje a enterrar os restos mortais
de dois monarcas, vã poeira de uma monarquia em ruínas, monarquia que só se tem
mantido pelos privilégios e pela traição, e que através dos seus crimes
desonrou e manchou dois séculos da nossa História”.
“Evidentemente, é um jornal republicano que
escreve isto – esclarece o correspondente – mas o aparecimento de um
artigo comportando semelhantes termos no dia das exéquias do rei, é
suficientemente eloquente”.
Por nossa parte, limitar-nos-emos a salientar
que há apenas uma única coisa a lamentar: o facto de que o movimento
republicano em Portugal não tenha, de modo suficientemente resoluto e público,
feito justiça em relação a todos os patifes. Lastimamos que o assassinato do
rei de Portugal testemunhe ainda a existência manifesta dum traço de terror
conspirativo, isto é, impotente, que pela sua própria natureza não permite
atingir o seu objectivo final, enquanto o terror autêntico, nacional,
verdadeiramente regenerador, aquele terror que tornou a revolução francesa
célebre, se revelou por agora extremamente fraco. Não é impossível, porém, que
o movimento republicano português venha ainda a adquirir uma grande amplitude.
As simpatias do proletariado socialista sempre irão para o lado dos
republicanos contra a monarquia. Todavia, não se conseguiu até agora em
Portugal mais que assustar a monarquia pelo assassinato de dois monarcas,
quando a questão está em aniquilá-la.
Em todos os parlamentos da Europa, os
socialistas exprimiram, cada um à sua maneira e na medida das suas
possibilidades, a sua simpatia pelo povo e pelos republicanos portugueses,
assim como os representantes das classes dirigentes expressaram o seu desgosto,
reprovaram o assassinato do aventureiro e comunicaram a sua simpatia aos
sucessores dele. Certos socialistas expuseram sem ambiguidades a sua opinião no
seio dos parlamentos, e outros abandonaram as salas das sessões no momento em
que eram proferidas declarações de simpatia para com a monarquia “atingida na
sua carne”. No parlamento belga, Vandervelde (2), escolheu uma via
“intermédia”, que é a pior, obrigando-se a dizer que honrava “todos os mortos”,
isto é, tanto o rei como os assassinos. Estamos convencidos que Vandervelde
será, entre os socialistas do mundo inteiro, o único a proceder assim.
A tradição republicana enfraqueceu-se
consideravelmente entre os socialistas da Europa. Compreende-se que assim seja
e, até certo ponto, justifica-se, precisamente na medida em que a proximidade
da revolução socialista retira todo o significado prático à luta por uma
república burguesa. Não obstante, sucede frequentemente que o abrandamento da
propaganda republicana não tem como contrapartida o reforço da aspiração à
vitória total do proletariado, mas sim um abaixamento da compreensão das
tarefas revolucionárias da classe operária em geral. Não era sem fundada razão
que Engels, ao criticar em 1891 o Projecto de Programa de Erfurt mostrava, com
todas as suas últimas energias, aos operários alemães a importância da luta
pela República, a necessidade de que esta luta se inscrevesse igualmente na
ordem do dia do proletariado na Alemanha (3).
Quanto a nós, na Rússia, a luta pela República
tem um alcance prático imediato. Só os mais desprezíveis dos oportunistas
pequeno-burgueses, do género dos socialistas-populistas ou do
“social-democrata” Malichevski (consultar, a este propósito, o “Prolétari” (4) nº
7) podiam extrair da experiência da revolução russa a conclusão de que a luta
pela República tenha sido na Rússia relegada para segundo plano. Muito pelo
contrário, a experiência da nossa revolução provou precisamente que a luta pelo
aniquilamento da monarquia está na Rússia indissoluvelmente ligada à luta pela
terra para os camponeses e pela liberdade para todo o povo. Por seu lado, a
experiência da contra-revolução russa precisamente provou que, se a luta pela
liberdade não tiver por alvo a monarquia, não chega sequer a ser uma luta, mas
cobardia e inconsistência pequeno-burguesas ou, para dizer tudo e sem rodeios,
um logro do povo por parte dos patifes do parlamentarismo burguês.
Notas:
1) Cem-Negros – bandos monárquicos
criados na Rússia pela polícia czarista, destinados a combater o movimento
revolucionário. Os Cem-Negros assassinaram operários e outros revolucionários
das massas, atacaram intelectuais progressistas e organizaram perseguições
contra os judeus.
2) Emilio Vandervelde (1866-1938) –
revisionista e oportunista, que foi um dos dirigentes do Partido Operário belga
e presidente do bureau político da II Internacional. Durante a
Primeira Guerra Mundial imperialista defendeu posições social-chauvinistas e
fez parte do Governo burguês da Bélgica.
3) Ver a obra de Engels “Crítica do
Projecto de Programa Social-democrata de 1891” e a obra de Marx e Engels
“Crítica dos Programas de Gotha e de Erfurt”.
4) Prolétari (O Proletário) – jornal clandestino bolchevique, órgão central do Partido Operário Social-democrata Russo, fundado e dirigido por Lenine. O artigo de Lenine “O Atentado Contra o Rei de Portugal” saiu no número 22, segunda série, de 3 de Março de 1908, numa altura em que o jornal era impresso em Genebra, na Suíça, e, depois introduzido na Rússia. Por essa época, Lenine vivia no exílio em Genebra.
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