Crónicas do jornalista e escritor Baptista Bastos, publicadas no jornal “Diário de Notícias”, abordando a política de austeridade e fome imposta ao povo português pelo governo do PSD/CDS-PP e a conciliação, para não se dizer colaboração, do outro partido principal do establishment. Juntamos uma outra, escrita um pouco antes sobre o apelo à docilidade do povo, para a não revolta, por parte do responsável máximo da Igreja Católica (ICAR) portuguesa, D. José Policarpo. Crónicas oportunas atendendo ao tempo que atravessamos de promessas de mundos e fundos a metro, escondendo os partidos do regime que a política económica, e não só, é ditada inteiramente por Bruxelas.
Os dois do nosso drama
O chá das cinco de segunda-feira, entre Passos
Coelho e António José Seguro, resultou no baço espectáculo
"mediático" que tudo abrevia e a nada chega. O importante passou ao
lado: o facto de a pontuação que separa o PS do PSD estar cada vez mais
minguada, atentando-se, até, que, se a coligação continuar, registar-se-á
"empate técnico", rigorosamente a derrota do socialismo chilre do
triste Seguro. Não se exige, bem entendido, que o PS seja o que nunca foi, um
partido "revolucionário"; mas assim, como está, também é de mais.
Desesperantemente de mais.
Que separa ou diferencia o PS do PSD, neste
momento crucial para a própria existência de Portugal como nação? Sem quase
termos dado por isso, os dois partidos abreviaram, ou liquidaram por completo,
os projectos iniciais, marcados por um conceito "reformista" da
sociedade. O PSD, então PPD, demoliberal, desejava que se mexesse em alguma
coisa, para que tudo ficasse mais ou menos na mesma. Não foi admitido na
Internacional Socialista, et pour cause. O PS cantarolava o estribilho
"partido socialista, partido marxista", até que Willy Brandt deu
instruções para que a casa fosse posta em ordem. Apagaram-se símbolos (como o
do punho esquerdo erguido, que cedeu o lugar à imagem da rosa) e desapareceram
dos discursos oficiais expressões como "trabalhadores", "classe
operária", substituídas por "classe média" e afins.
Seguro e Passos provêm de idêntica fornada.
Este último ainda andou pelos comunistas pequeninos, mas pirou-se quando
percebeu que não estava ali para mudar o mundo, sim para organizar a vidinha. O
Seguro navegou nas águas mansas da jota, precavido, sempre sorrateiro e de
soslaio, emboscado para quando a oportunidade surgisse. É um embuste de si
próprio, porque produto de uma época que se ludibria a si mesma. Ambos nascidos
da "era do vazio" ou da "insignificância." Passos
muitíssimo mais perigoso porque muito astuto e obcecado. Seguro mais tolo
porque mais claramente vaidoso e irresoluto.
A política, quando o é, e estes dois
senhoritos nada têm que ver com ela - a política é constituída por todas as
formas de filiação social. Não se reduz, como os dois senhoritos, e outros mais
o fazem, à prática de mero exercício de poder, cujo valor intrínseco está
associado a zonas de interesses. A política, na expressão mais nobre,
corresponde a conveniências comuns, que apenas divergem nos modos de acção.
Finalmente, a política é um acto de cultura porque acto de relacionamento. Se
submetêssemos tanto Passos como Seguro à mais modesta sabatina de conhecimento
geral, talvez não ficássemos muito surpreendidos com o grau de ignorância
revelado. Não é grave por aí além; só o é porque ambos governam ou ambicionam
governar um povo. Neste caso, infelizmente, nós. O nosso drama reside nos dois.
Original no "DN",
24 de Março de 2014
Limpa, suja ou encardida?
Uma pessoa de recta consciência não pode
deixar de se indignar, com nojo e abominação, ante o cerimonial em que o
inexcedível Passos Coelho anunciou a "saída limpa" da nossa
subalternidade. A comunicação social e os comentadores estipendiados usaram,
como na Idade Média, tubas e atabales de regozijo perante tão fausto
acontecimento. E o primeiro-ministro, useiro e vezeiro em manter com a verdade
uma relação conflituosa, disse a um país perplexo a seguinte bojarda: "A
liberdade de decisão foi reconquistada."
A simulação da realidade brada aos céus.
Portugal continuará, por mais algumas décadas, sob vigilância apertada, e a
gulodice daqueles indicados nossos "credores" não se apaziguará. Os
portugueses não sabem a quem devem dinheiro; mas, parafraseando a frase imortal
daquele banqueiro impante, agressivo e tolo, lá que devem, devem.
Continuamos, pois, imersos na miséria, na fome
e no desespero sem esperança. Um pequeno grupo de burocratas ignorantes
prosseguirá na tarefa infame de dar ordens a quem quer que esteja no Governo.
Nada sabe da nossa história, da nossa cultura, das idiossincrasias que, apesar
de tudo, nos diferenciam. Um deles fez uma declaração comovente: iria voltar a
Portugal, como turista, por causa dos pastéis de nata de Belém! A rede foi
estendida com sagaz competência, e as estruturas do capitalismo tornaram-se cada
vez mais vorazes, porque não confrontadas com um antagonismo competente e
sólido. O "socialismo democrático" é uma desgraça por toda a Europa;
há governos que o são sem estar avalizados pelo voto, como acontece em Itália.
A indigência moral, política e ideológica da "esquerda moderada"
abriu caminho à avalancha da extrema-direita, cuja soberba começa a ser
assustadora.
Os partidários desta política, caso de Passos
Coelho e dos que tais, presos na insanidade de um suicídio colectivo, já não
constituem uma decepção permanente porque tornaram "natural" a
aberração histórica sob a qual vivemos. Manifesta--se uma ofensiva ampliada
contra o ideal democrático, e a sub-reptícia proposta de despersonalização
ética, substituída pela ordem que inculca a ideia da desnecessidade de governos
eleitos. O "Estado mínimo" e a entrega da representatividade política
e social aos privados, tão do agrado da catequese neoliberal, não encontra
resposta nos partidos "socialistas", os mais próximos de uma
confrontação urgente e fundamental.
Hollande é um desgraçado sem tino, que colocou
nas funções de primeiro-ministro um direitinha contumaz. Nós, por cá, tudo mal
ou embezerrado. Os reforços de Jorge Coelho e José Sócrates, assomados para
socorrer António José Seguro da flexibilidade demonstrada, não chegam para
"dar a volta" a um partido que perdeu há muito as distintivas de
"esquerda."
(Por decisão pessoal, o autor do texto não
escreve segundo o novo acordo ortográfico)
DN, 11 de Maio de 2014
D. Policarpo não está cá
D. José Policarpo, cardeal-patriarca de
Lisboa, disse, em Fátima, ser contra as manifestações populares, as quais,
assim como as revoluções, nada resolvem. A frase é inquietante, proferida por
quem é: um homem culto, conhecedor da História e dos movimentos sociais que
explicam e justificam as modificações políticas. Mais: numa altura em que o
País vive uma crispação inédita, onde a fome, a miséria e a angústia estão
generalizadas, as palavras de D. Policarpo não são, somente, insensatas -
colocam o autor no outro lado do coração das coisas.
Diz, ainda, o solene purpurado: "Até que
ponto é que nós construímos uma saúde democrática, com a rua a dizer como se
deve governar?" Não contente com a afirmação adianta, sem hesitar e sem
pejo: "O que está a acontecer é uma corrosão da harmonia democrática,
[sic] da nossa Constituição e do nosso sistema constitucional."
D. Policarpo deve saber que a legalidade do
voto não legitima acções de dissolução, como as praticadas, diariamente, por
este Governo, contra as populações, contra a Constituição, contra as normas
mais elementares do viver democrático. Deve também saber que a rua possui o
poder de corrigir, com o protesto, a insolência de quem se julga detentor do
direito absoluto. "Vamos cumprir o nosso rumo, custe o que custar",
na expressiva vocação totalitária do primeiro-ministro, é, isso sim, "uma
corrosão da harmonia democrática." E D. Policarpo, que parece crer em
alguns absurdos, acredita, seriamente, que os portugueses vivem, mesmo, nessa
benfazeja e bendita concórdia? Só assim se justificaria a enormidade das suas
declarações.
O pacifismo e a magnitude das últimas
manifestações podem e devem ser interpretados como uma insubmissão de
dissidência, e repúdio pela maneira como somos conduzidos e governados. No
fundo, a rua é o lógico prolongamento de um mal-estar que o cardeal parece
dramaticamente ignorar ou omitir. Ele não gosta da rua, e está no seu direito.
Mas já não é de seu direito condenar aqueles que recusam a servidão imposta por
esta "harmonia democrática", quando ela é tripudiada por um Governo
que exerce o poder nas raias da ilegalidade, como o asseveram o Tribunal
Constitucional e muitos outros constitucionalistas.
Sabe-se que D. Policarpo sempre foi muito
recatado em condenar os desmandos do poder. Ele é mais das meigas coisas
celestinas do que das asperezas terrenas. Assim, serviu-se, acaso
excessivamente, ao longo dos anos, de metáforas mimosas para não dizer o que
dele se esperava: a clareza do verbo e a argumentação qualitativa do
requisitório evangélico. Desta vez, porém, a frase foi desprovida de adornos.
E, com irada exacerbação, deu amparo e continuidade às ideias e aos processos
do poder, vituperando aqueles que, legitimamente, o contestam.
Valha-o Deus!
DN, 12 Outubro de 2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário