Bento de Espinosa
[I] Havendo-me a
experiência ensinado que tudo quanto na vida corrente sucede é com frequência
vão e fútil, e tendo eu observado que nada do que directa ou indirectamente me
provocava temor era em si mesmo bom ou mau, a não ser enquanto afectava o espírito,
decidi por fim inquirir se haveria algo que constituísse o verdadeiro bem,
susceptível de se comunicar, e pelo qual exclusivamente, rejeitando tudo o mais,
o ânimo fosse afectado; mais ainda, se haveria algo que, uma vez encontrado e
adquirido, proporcionasse a fruição eterna da suprema e contínua alegria.
[2] Digo que decidi por fim: de facto, à primeira
vista, parecia despropositado querer renunciar ao certo pelo ainda incerto.
Via, com efeito, as vantagens que as honras e riquezas nos alcançam e de cuja
demanda me seria forçoso desistir se quisesse empenhar-me seriamente neste novo
empreendimento e se a felicidade suprema nelas se contivesse, via nitidamente
que eu teria de ficar dela privado; e se, pelo contrário, nelas não residisse,
e eu as procurasse de modo exclusivo, ficaria igualmente privado da felicidade
suprema.
[3] Revolvia então
o ânimo sobre a possibilidade de realizar o novo empreendimento ou de, ao menos,
atingir a certeza a seu respeito, sem alterar a ordem e a conduta comum da
minha vida – o que em vão repetidamente tentei. Na verdade, o que mais frequentemente
ocorre na vida e se considera como bem supremo entre os homens -como das suas
acções se pode depreender – resume-se a três coisas: riquezas, honras e prazer.
Por elas de tal modo se dispersa a mente que mal pode pensar em qualquer outro
bem.
[4] Quanto ao
prazer, o espírito agarra-se a ele como se descansasse em algo de bom; e assim
fica em extremo impedido de pensar noutra coisa; mas da fruição do prazer segue-se
uma profunda tristeza que, se não suspende a mente, perturba-a, no entanto, e a
entorpece. Com a busca de honras e riquezas, não pouco se distrai também a
mente, sobretudo, onde elas se buscam apenas por si mesmas 1, pois se supõem
então como o sumo bem;
[5] Muito mais
ainda se distrai a mente com as honras, que se supõem sempre como um bem em si
mesmas, como se fossem o fim último, para o qual tudo converge. Além disso,
estas não arrastam consigo a punição, como é o caso da voluptuosidade; pelo contrário,
quanto mais de umas e de outras se possui tanto maior é o gozo que provocam;
consequentemente, somos cada vez mais incitados a incrementá-las: se, porém, em
algum caso nos sai frustrada a expectativa, sobrevém então uma extrema
tristeza. Por fim, as honras constituem um grande estorvo porque, para as alcançarmos,
temos necessariamente de orientar a vida de acordo com a opinião dos homens.
Isto é, temos de evitar o que as pessoas vulgarmente evitam e de buscar o que
elas buscam.
[6] Ora, vendo eu
que tudo isto de tal forma impedia de me entregar a qualquer novo projecto,
mais, que de tal forma se lhe opunha que tinha necessariamente de renunciar a
uma coisa ou outra, vi-me forçado a questionar-me sobre qual delas me seria mais
útil; na verdade, como disse, parecia querer perder o certo pelo incerto. Mas,
após brevíssimo exame desta questão, descobri primeiro que se, renunciando
àquelas coisas (que vulgarmente se buscam), me empenhasse no novo projecto,
perderia um bem incerto por sua natureza, (como claramente se conclui do que ficou
dito) por outro bem incerto, não já por sua natureza (pois eu buscava um bem
estável), mas apenas quanto ao modo de o alcançar .
[7] À custa de aturada
reflexão, consegui ver que então, suposto que me pudesse aplicar totalmente,
renunciava a males certos por um bem certo. Com efeito, correndo extremo
perigo, via-me obrigado a procurar, com todas as forças, um remédio, ainda que incerto;
assim como o paciente de doença mortal, ao prever a morte certa se não aplicar
um remédio, mesmo incerto, é urgido a buscá-lo com todas as forças, pois nele
reside toda a sua esperança. Tudo quanto o comum das pessoas persegue não só
não traz nenhum remédio para nos conservar o ser, mas o impede até e é
frequentemente causa da perdição de quem o possui 2, e é sempre a causa da
ruína dos que por tal se deixam possuir.
[8] Abundam, com
efeito, os exemplos dos que, por causa das próprias riquezas, padeceram
perseguição até à morte, e também dos que, a fim de adquirirem bens, se
expuseram a tantos perigos que acabaram por pagar com a vida o preço da
estultícia. Não menos numerosos são os exemplos dos que, em vista da consecução
ou da defesa das honras, sofreram atrozmente. Finalmente, são incontáveis os
exemplos daqueles que apressaram a própria morte devido a excessos de prazer.
[9] Pareciam tais
males advir do facto de que toda a felicidade ou infelicidade consiste apenas
na qualidade do objecto, ao qual aderimos por amor. Com efeito, jamais se
levantarão contendas por um objecto que não se ama; não haverá tristeza por se
perder, nem inveja por estar na posse de outrem; nem temor nem ódio; numa
palavra, não haverá agitação de espírito: Tudo isso sobrevém com o amor das coisas
perecíveis, como são aquelas de que acabamos de falar.
[10] Mas o amor de
uma coisa eterna e infinita alimenta a alma de pura alegria, isenta de toda a
tristeza; ora, isso é o que a todo o transe se há-de desejar e buscar com todas
as forças. Não foi, entretanto, sem razão que empreguei estas palavras;
"suposto que me pudesse aplicar totalmente..." Com efeito, por maior
que fosse a clareza com que apreendia tudo isso intelectualmente, não podia
contudo desfazer-me de toda a avareza, voluptuosidade e gIória.
[11] Via apenas
que, ocupando-se a mente em tais cogitações, eIa afastava as demais, para
reflectir seriamente no novo projecto. Ora, isto trouxe-me grande consolação,
pois via que aqueles males não eram de tal condição que resistissem tenazmente
aos remédios. E muito embora fossem inicialmente raros esses intervalos durassem
um espaço de tempo sumamente breve, contudo, depois que o verdadeiro bem se me
tornou cada vez mais conhecido, mais frequentes e dilatados foram esses
intervalos; sobretudo desde que reparei que a aquisição do dinheiro, o prazer e
a glória prejudicam tanto mais quanto mais eram procurados por terão uso
moderado e não trarão qualquer obstáculo; pelo contrário, como em seu lugar demonstraremos,
prestam grande contributo em relação ao fim por que são procurados.
[12 Direi aqui
brevemente o que entendo por verdadeiro bem e que coisa seja o bem supremo. Para
que se entenda isto correctamente, há-de notar-se que só relativamente se fala
de bem e de mal; de tal modo que a mesmíssima coisa pode, segundo pontos de
vista diferentes, dizer-se boa e má, o mesmo se passando com a designação de
perfeito e imperfeito.
Nada, com efeito,
considerado na sua natureza, se dirá perfeito
ou imperfeito; mormente depois de
reconhecermos que tudo quanto se faz é de acordo com a ordem eterna e com
determinadas leis da natureza que se leva cabo.
[13] Como, porém,
a humana fraqueza não alcança com o pensamento aquela ordem, e como, por outro
lado, o homem concebe uma certa natureza humana, muito mais consistente do que
a sua, vendo ao
mesmo tempo que nada o impede de atingir essa natureza, é incitado a buscar os
meios que o conduzam a tal perfeição; e tudo o que pode constituir meio para lá
chegar, chama-se verdadeiro bem. O bem supremo é, para ele, chegar – juntamente
com os outros indivíduos, se possível –, a fruir dessa natureza. De que
natureza se trata, mostraremos no seu lugar mais não ser 3 do que o
conhecimento da união que a mente possui com a Natureza na sua totalidade.
[14] Eis, pois, o fim
para que tendo, a saber, adquirir uma tal natureza e esforçar-me por que muitos
a adquiram juntamente comigo; isto é, à minha felicidade pertence empenhar-se
para que muitos outros entendam o mesmo que eu, afim de que o seu entendimento
e os seus desejos coincidam perfeitamente com o meu entendimento e desejo; para
isso 4, é necessário ter da Natureza a compreensão suficiente para adquirir
essa tal natureza; em seguida, é necessário formar uma sociedade como é de
desejar, de modo que o maior número chegue a esse ponto com maior facilidade e segurança.
[15] Em seguida,
importa aplicar-se à Filosofia Moral, bem como à Ciência de Educação das
crianças; e, como a saúde não é um meio insignificante em ordem à consecução
desse fim, impõe-se a elaboração de uma Medicina honesta; e porque muitas coisas,
que por si são difíceis, pela arte se tomam fáceis e com sua ajuda podemos
ganhar muito tempo e bem-estar na vida, de nenhum modo se há-de menosprezar a
Mecânica.
[16] Mas, acima de
tudo, é necessário descobrir um modo de sanar o entendimento e, na medida em
que se tome possível, de o qualificar, para que facilmente compreenda as coisas
sem erro e o melhor possível. De onde se poderá já ver que pretendo dirigir todas
as ciências para um fim único 5, isto é, atingir a já mencionada suprema
perfeição humana; assim, tudo o que nas ciências nos não faz avançar para o
nosso fim, deve rejeitar-se como inútil; isto é, numa palavra, todas as nossas
acções, juntamente com todos os nossos pensamentos, se devem dirigir a este
fim.
[17] Como, porém,
enquanto nos ocupamos da sua obtenção e nos empenhamos em reconduzir o
entendimento ao caminho recto, é preciso viver, somos obrigados, antes de mais,
a aceitar como boas algumas regras de vida, a saber:
I. Falar de acordo
com a capacidade do comum das pessoas e fazer tudo o que em nada nos impeça de
alcançar o nosso objectivo. São, com efeito, grandes as vantagens que podemos
obter em condescendermos, na medida do possível, com o seu nível; além disso,
se assim for, darão ouvidos benévolos para escutar a verdade.
II. Gozar dos
prazeres apenas tanto quanto baste à conservação da saúde.
III. Finalmente,
procurar o dinheiro ou qualquer outro bem, tanto quanto baste para sustentar a
vida e a saúde, e em conformidade com os costumes da sociedade que não se
oponham ao nosso fim.
[18] Estabelecidas
estas regras, aplicar-me-ei primeiro àquilo que, antes de tudo, se deve fazer:
reformar o entendimento e tomá-lo apto a compreender as coisas do modo
necessário à consecução do nosso fim. Para isso, a ordem natural exige que eu
retome aqui todos o modos de percepção que, até ao momento, tenho usado para
afirmar ou negar algo sem nenhuma dúvida, a fim de escolher o melhor deles e, ao
mesmo tempo, começar a conhecer as minhas forças e a natureza (humana), que
desejo levar a efeito.
[19] Vendo com
rigor, podem todos basicamente reduzir-se a quatro:
I. A percepção que
temos pelo ouvir dizer ou por qualquer sinal arbitrariamente designado.
II. A percepção,
que adquirimos por uma experiência vaga, isto é, uma experiência não
determinada pelo entendimento; e designa-se assim só porque se dá ao acaso e,
não havendo nenhum outro experimento que se lhe oponha, mantém-se para nós
inabalável.
III. A percepção,
onde a essência de uma coisa se infere de outra, embora inadequadamente. É o
que acontece 6 quando de um efeito inferimos a causa ou quando uma conclusão se
tira de algum universal, que é sempre acompanhado de alguma propriedade.
IV. Por último, a
percepção em que uma coisa é percebida apenas mediante a sua essência, ou
mediante o conhecimento da sua causa próxima.
[20] Vou ilustrar
tudo com exemplos. De ouvir-dizer conheço somente o dia do meu nascimento, que
tive tais pais e outras coisas semelhantes, das quais nunca duvidei. Por experiência
vaga, sei que hei-de morrer: afirmo isto porque vi que outros, meus semelhantes,
morreram, embora nem todos tenham vivido o mesmo tempo nem tenham sucumbido à
mesma doença.
Depois, sei também
por experiência vaga que o azeite é um alimento próprio para ter a chama e que
a água é boa para a apagar; sei também que o cão é um animal que ladra e o
homem, um animal racional, e conheço deste modo quase tudo o que é necessário à
vida.
(continua)
Notas:
1- Poder-se-ia
explicar isto mais longamente e em pormenor, distinguindo, entre as riquezas,
as que se procuram, ou por si mesmas, ou pelas honras, prazer, saúde e
progresso das ciências e das artes; mas isto fica para o seu lugar próprio,
pois não é este o momento adequado de o analisar com cuidado devido.
2- Isto há-de
demonstrar-se com mais exactidão.
3- Isto
explicar-se-á em seu lugar com mais detenção.
4- Note-se que
trato aqui apenas de enunciar as ciências necessárias ao nosso fim, embora não
me prenda com a sua articulação.
5- O fim das
ciências é um só, para o qual todas se devem dirigir.
6- Neste caso,
nada compreendemos da causa além do que observamos no efeito. É o que bastante
claramente decorre do facto de, em tais circunstâncias, se designar a causa
apenas nos termos mais gerais, como, portanto, dá-se alguma coisa, também
portanto, dá-se alguma potência, etc.; ou também do facto de se designar
negativamente: portanto, não é isto ou aquilo, etc. No segundo caso, atribui-se
alguma coisa à causa em virtude do efeito, que se concebe claramente, como
demonstraremos pelo exemplo; no entanto, nada [afirmamos] para além do que é
próprio, e não a essência particular da coisa.
Textos Filosóficos, Edições 70. 1987
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