sábado, 24 de dezembro de 2022

É o bonapartismo, habituem-se!

 

Só o roubo pode salvar a sociedade burguesa! Só o roubo, a bastardia, a família, a desordem, a ordem!

Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte

 O acontecimento de política caseira que mais tem dado de falar nestes dias é, sem dúvida alguma, a entrevista concedida pelo primeiro-ministro Costa à revista “Visão”. As reacções por parte da dita “oposição” e de todos os opinantes e paineleiros encartados e não encartados confluem para o ponto comum da arrogância, vaidade e insegurança. A entrevista faz parte de um conjunto de intervenções na imprensa mainstream, toda ela bem untada pelos milhões de compra de publicidade institucional que vem do tempo da pandemia e que se manteve até agora. O jornal do regime, o inefável “Expresso” do ex-ala-liberal do fascismo e fundador do principal partido da oposição, PPD/PSD, não escapou à acção de propaganda do chefe do governo. O facto de Costa, mais o colega ucraniano, ter sido nomeado figura do ano pelo jornal conservador “DN” não é por caso e terá sido o tiro de partida para a campanha de propaganda governamental.

Os sucessos do governo de Costa

Costa, na entrevista, elenca os feitos do seu governo nestes nove meses de mandato, esquecendo-se que este governo mais não passa da continuidade do anterior sem os parceiros geringonços. A principal façanha terá sido a “recuperação” da economia pós-pandemia, aprovação de dois orçamentos de estado e dois acordos de concertação com os “parceiros sociais”, patrões e trabalhadores, incluindo os da função pública, o que irá, em princípio, garantir a paz social e a estabilidade, tão de agrado das elites e do PR monárquico Marcelo; a redução dos impostos sobre as empresas e a distribuição do bodo aos pobres que foram os subsídios dos 60 euros e mais tarde de 150 e agora de 240 euros, que abrangeram não só os mais economicamente vulneráveis como a classe média cada vez mais proletarizada. Costa tem conseguido manter e até aumentar os lucros das grandes empresas com a subsidiação do poder de compra dos mais pobres, como bem tem aconselhado tanto o FMI como o BCE, em vez de tabelar os preços e intervir directamente na economia, a fim de impedir a escalada dos preços, e aumentar os salários e as reformas e pensões ao mesmo nível, pelo menos, da taxa da inflação. A glória de Costa está, e na entrevista orgulha-se disso, em ser um bom “gestor de crises”, ou seja, gestor da crise do capitalismo e manter o povo calmo.

Os críticos de Costa falam do acessório, criticam o estilo de Costa, “arrogante”, “presunção”, “insegurança”, de “cansaço” e “precisar de férias”, e chegam a jogar com eventuais divisões internas do PS apresentando alguns socialistas “desconfortáveis” com o tom de António Costa, nunca com o conteúdo do discurso do entrevistado, pela simples razão de que todos concordam com a política levado a cabo pelo governo; a própria oposição não apresenta nada de diferente, razão pela qual Costa pode facilmente acusar os eus oponentes de “falta de ideias”. Ao cabo e ao resto, trata-se de saber quem é que no momento seria o melhor servidor do capital, não mais do que isso. Com maioria absoluta, Costa pode, como se costuma dizer, arrotar postas de pescada, porque a oposição não existe, do lado da direita e da esquerda, os dois ex-parceiros da geringonça ficaram sem capital político, limitando-se o BE e o PCP, e mais o primeiro do que o segundo, a atacar o governo em questões pontuais como seja o SNS que se encontra a dar o último suspiro, ou seja, nas palavras de Catarina Martins, no “princípio do fim”.

Costa – e não é despiciendo enfatizar – perante as câmaras, ufana-se: “se não fossemos nós a gerir a crise, quem o faria?” Não deixa de ter orgulho pela confiança que as elites nacionais e o grande capital financeiro, representado por Bruxelas, até agora lhe têm garantido. É a confiança do servo que presta serviço com zelo e se esforça diariamente para que essa relação de entendimento não esmoreça ou quebre. Só que esta ligação só se manterá com esforço acrescido e, temos de reconhecer, o homem tem tido o seu mérito. Não nos devemos esquecer como se formou o primeiro governo do PS liderado por Costa, que só foi possível graças à colaboração dos dois partidos que lhe ficam mais à esquerda, convencidos com a léria de reposição dos salários e reformas, das condições de vida em geral e das leis do trabalho em particular, que foram retiradas por imposição da troika e do governo PSD/PP, que também se vangloriou do facto de ter além do que lhe terá sido exigido, fazendo o papel de idiotas úteis do regime. Depois de “comer” o eleitorado daqueles dois partidos, conhecidos por “muletas” da “geringonça”, Costa e o PS facilmente ganharam as eleições por maioria absoluta de facto, porque a maioria já o era mas de jure.

Os bonapartismos em sociedades pré-industriais ou pouco industrializadas

Estes dois partidos, apesar do rótulo de esquerda, mais não são que organizações que representam os interesses de sectores distintos da mesma classe média, ou seja, a pequena burguesia que, descontente com as injustiças e os exageros do capitalismo, tem mais medo da revolução ou da mudança brusca e radical do seu estilo de vida do que qualquer outra coisa. São partidos que de “radicais” só possuem o nome, um deles em questões internas e externas alinham abertamente pelo lado do capitalismo e do imperialismo, o outro difere pelo facto de a nível externo ainda combater os crimes e desmandos do imperialismo norte-americano e algumas vezes da União Europeia. Mas não só o apoio a Costa vem de parte do eleitorado destes partidos e das suas direcções como vem sobretudo da classe média em geral, seguindo o que acontece usualmente no fenómeno político conhecido por “bonapartismo”. Este constitui uma tendência, principalmente em sociedade onde não se fez a revolução industrial e onde ainda predomina um sector social de pequena propriedade, quando se verifica um período prolongado de crise económica e os partidos do poder se encontram em forte declínio de credibilidade. Nestas condições é fácil que surja um “Salvador” da Pátria, um Messias que se irá impor pela figura em si ou pelo que possa representar no imaginário dos pequenos burgueses assustados e não pelo programa político apresentado, que muitas das vezes nem existe e quando levado à prática é bem pior daquele que se encontra em vigor e imposto pelo partido de turno no governo. O objectivo último será sempre o de salvar, não o povo, mas as elites e seu sistema de exploração.

Candidatos a Bonaparte sempre houve em Portugal, desde o D. Sebastião, que haveria de vir numa manhã de nevoeiro para salvar o Império, ao Sidónio, o presidente rei, que teve vida curta e preanunciou o regime fascista instituído pelo golpe de estado de 1926, aos actuais candidatos, e vários nomes se poderão apontar: Cavaco, Marcelo, Costa, ou o almirante das vacinas que tem sido ultimamente apontado como sucessor de Marcelo, talvez um Américo Tomas mais moderno e proactivo. No entanto, e por agora, vai-se assistindo à coexistência pacífica, pelo menos à superfície, de dois venenosos, entre o primeiro-ministro Costa e o Presidente da República Marcelo, na justa medida em que a economia vai-se aguentando menos mal e povo mantem-se pacífico. E tudo é utilizado para manter a paz social e a estabilidade, desde o apoio de patriotismo balofo à selecção nacional de futebol, no campeonato do mundo, até ao folclore inócuo das manifestações e algumas greves, feitas a prestações pelos sindicatos das duas centrais sindicais do regime. Não parece haver nenhum repúdio, que a existir deveria ser veemente e generalizado, pelo comportamento displicente e perdulário dos dinheiros públicos de Marcelo nas suas constantes deslocações ao estrangeiro e da substituição da frota automóvel que o estado lhe colocou ao serviço e que irá ficar em mais 500 mil euros, a transição energética já está a ficar cara com a descarbonização do PR, substituindo automóveis a gasóleo por eléctricos.

Depois de ir à bola à custa do Zé, depois de ir dar um mergulho no mar em Cabo Verde, porque é tradição em dia de aniversário; agora, projecta ir à tomada de posse de Lula e, aproveitando a deixa, passará o Fim de Ano no Brasil. Para perguntar, será em casa de Ricardo Salgado? Em princípio não precisará, as despesas estão antecipadamente pagas. Se Costa foi à Ucrânia cumprimentar o colega da vassalagem ao Tio Sam, porque carga de água não irá Marcelo fazer o mesmo? Assim, Marcelo já anunciou a sua peregrinação a Kiev “certamente no próximo ano”, a questão é saber se a Ucrânia ainda existirá e se existir como estará nessa altura. O anúncio terá sido feito na sua visita à tropa mercenária portuguesa que se encontra destacada na Roménia por obrigação perante a Otan/Nato. Quanto a subserviência ao imperialismo americano e à sua sucursal europeia (UE) Marcelo faz questão de ombrear com Costa, que na entrevista não se esqueceu de dizer que a paz só será possível com a ”derrota da Rússia”. Marcelo está bem para o Costa e vice-versa. As próprias sondagens mostram esta equivalência, Costa não afunda na popularidade e apoio do eleitorado sondado e nem Marcelo fica com imagem negativa apesar de toda a sua inclinação turística; aliás, a imprensa amiga continua, a contento dos fãs, a dar uma imagem simpática, mas invertida, do seu papel: “Marcelo nem fala demasiado nem fiscaliza o suficiente” (Sondagem Expresso/SIC); afinal, o Balsemão é um amigalhaço e o “papagaio-mor” ainda continua a ser “o político mais popular do país”… e nem fala demasiado!

Quanto ao aparecimento do bonapartismo em França, Marx (O 18 Brumário de Luís Bonaparte) caracterizava o novo regime como o governo da gatunagem e da corrupção e, recordando a Regência ou Luís XV, “… a França já conheceu um número bastante considerável de favoritas, mas nunca um governo de chulos.” Em Portugal a gatunagem, a corrupção e os chulos já são endémicos e sem Bonaparte, mas a partir de agora, com a profunda e arrastada crise do capitalismo e a guerra inter-imperialista à porta, a situação irá exponenciar-se. Não é coincidência que todos os partidos com assento na Assembleia da República se encontram de acordo quanto a uma nova revisão da Constituição da República, será a oitava se não estamos em erro, poderão quanto muito discordar em alguma questão de pormenor, mas no essencial estão de acordo: há que dar mais poder ao órgão executivo, esvaziando ainda mais o Parlamento do seu poder – os deputados irão assinar a sua certidão de óbito. É a musculação do regime com o argumento de agilização da acção governativa em situações de excepção, como pandemias, catástrofes naturais repentinas, as putativas “alterações climáticas” vêm a calhar, etc., tudo a bem da saúde de todos ou do país em geral.

No entanto, seja qual for o Bonaparte, e o quadro político em que venha a surgir, nunca deixará de ser, como também referiu Marx, “Le roi des drôles”.

Imagem: Montagem da capa da "Visão" na net.

Um comentário:

  1. Texto interessante, mas com uma particularidade. Mete tudo no mesmo saco. Em politica, tem de se ir ao pormenor, separando o trigo do joio.

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