sábado, 7 de janeiro de 2023

O Erro de Descartes. Emoção, Razão e Cérebro Humano

António R. Damásio

É precisamente esta falta de compreensão da natureza das emoções e da razão (uma das características mais salientes da «cultura da queixa»*) que suscita alarme.

A concepção de organismo humano esboçada neste livro e a relação entre emoção e razão que emerge dos resultados aqui discutidos sugerem, no entanto, que o fortalecimento da racionalidade requer que seja dada uma maior atenção à vulnerabilidade do mundo interior.

A um nível prático, a função atribuída às emoções na criação da racionalidade tem implicações em algumas das perguntas com que a, nossa sociedade se defronta actualmente, entre elas a educação e a violência. Não é este o local para uma abordagem adequada destas questões, mas devo dizer que os sistemas educativos poderiam ser melhorados se se insistisse na ligação inequívoca entre as emoções actuais e os cenários de resultados futuros, e que a exposição excessiva das crianças à violência, na vida real, nos noticiários e na ficção audiovisual, desvirtua o valor das emoções na aquisição e desenvolvimento de comportamentos sociais adaptativos. O facto de tanta violência gratuita ser apresentada sem um enquadramento moral só vem reforçar a sua acção dessensibilizadora.

O ERRO DE DESCARTES

Não teria sido possível apresentar a minha participação nesta conversa sem ter invocado Descartes como símbolo de um conjunto de ideias acerca do corpo, do cérebro e da mente que, de uma maneira ou de outra, continuam a influenciar as ciências e as humanidades no mundo ocidental. A preocupação é dirigida tanto à noção dualista com a qual Descartes separa a mente do cérebro e do corpo como às variantes modernas desta noção: por exemplo, a ideia de que a mente e o cérebro estão relacionados mas apenas no sentido de a mente ser o programa de software que corre numa parte do hardware chamado cérebro; ou que o cérebro e o corpo estão relacionados, mas apenas no sentido de o primeiro não conseguir sobreviver sem a manutenção que o segundo lhe oferece.

Qual foi, então, o erro de Descartes? Ou, melhor ainda, a que erro de Descartes me estou a referir com ingratidão? Poderíamos começar com um protesto e censurá-lo por ter convencido os biólogos a adoptarem, até hoje, uma mecânica de relojoeiro como modelo dos processos vitais. Mas talvez isso não fosse muito justo, e comecemos, então, pelo «penso, logo existo». Esta afirmação, talvez a mais famosa da história da filosofia, surge pela primeira vez na quarta secção de O Discurso do Método (1637), em francês («Je pense, donc je suis»); e depois na primeira parte de Princípios da Filosofia (1644), em latim («Cogito ergo sum»)3. Considerada literalmente, a afirmação ilustra exactamente o oposto daquilo que creio ser verdade acerca das origens da mente e acerca da relação entre a mente e o corpo. A afirmação sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros substratos de existir. E, como sabemos que Descartes via o acto de pensar como uma actividade separada do corpo, esta afirmação celebra a separação da mente, a «coisa pensante» (res cogitans), do corpo não pensante, o qual tem extensão e partes mecânicas (rep extensa).

No entanto, já antes do aparecimento da humanidade, os seres eram seres. Num dado ponto da evolução, surgiu uma consciência elementar. Com essa consciência elementar apareceu uma mente simples; com uma maior complexidade da mente veio a possibilidade de pensar e, mais tarde ainda, de usar linguagens para comunicar e melhor organizar os pensamentos. Para nós, portanto, no princípio foi a existência e só mais tarde chegou o pensamento. E para nós, no presente, quando vimos ao mundo e nos desenvolvemos, começamos ainda por existir e só mais tarde pensamos. Existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser.

Quando colocamos a afirmação de Descartes no devido contexto, podemos perguntar-nos por um instante se poderá ter significado diferente daquele que lhe estamos a atribuir. Será que pode ser vista como o reconhecimento da superioridade da razão consciente, sem qualquer compromisso firme no que respeita à sua origem, substância ou permanência? É possível. Não poderia a afirmação ter servido também o hábil propósito de aliviar as pressões religiosas que Descartes podia sofrer? É possível, mas não podemos saber ao certo. (A inscrição que Descartes escolheu para a sua lápide foi uma citação a que recorria com frequência: «Rene qui latuit, bene vixit», de Tristia,3.4.25, de Ovídio. Tradução: «Aquele que se escondeu bem viveu bem.» Uma renúncia discreta ao dualismo?). Quanto à primeira possibilidade de interpretação, e fazendo o balanço final, suspeito que Descartes também queria dizer precisamente aquilo que escreveu. Quando as famosas palavras surgem pela primeira vez, Descartes rejubila com a descoberta de uma proposição tão verdadeira que não podia ser negada ou abalada por nenhuma dose de cepticismo:

 

[...] e reparando que esta verdade, «Penso, logo existo», era tão certa e tão segura que nem sequer as suposições mais extravagantes dos cépticos a conseguiam abalar, cheguei à conclusão de que a receberia sem qualquer hesitação como o primeiro princípio da Filosofia que procurava.

 

Descartes procurava uma fundação lógica para a filosofia, e a afirmação não se afastava muito da de Santo Agostinho «Fallor ergo sum» («Sou enganado, logo existo»). Mas, umas linhas mais adiante, Descartes esclarece a afirmação de forma inequívoca:

 

Por isso eu soube que era uma substância cuja essência integral é pensar, que não havia necessidade de um lugar para a existência desta substância e que ela não depende de algo material; então, este «eu», quer dizer, a alma através da qual sou o que sou, distingue-se completamente do corpo e é ainda mais fácil de conhecer do que este último; e, ainda que não houvesse corpo, a alma não deixaria de ser o que é.

 

É este o erro de Descartes: a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, por um lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e intangível; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam existir independente corpo. Em concreto: a separação das operações mais refinadas da mente, para um lado, e da estrutura e funcionamento do organismo biológico, para o outro.

 

Mas há quem possa perguntar por que motivo incomodar Descartes e não Platão, cujas ideias sobre o corpo e a mente são muito mais exasperantes, como podemos verificar no Fédon? Porquê preocuparmo-nos com este erro específico de Descartes? Afinal, alguns dos seus outros erros são bem mais espectaculares do que este. Descartes pensava que o calor fazia circular o sangue, que as finas e minúsculas partículas do sangue se transformavam em «espíritos animais», os quais conseguiam depois mover os músculos. Por que não censurá-lo por uma dessas noções? A razão é simples: há muito tempo que sabemos que ele estava errado nestes aspectos concretos, e as perguntas sobre como e por que circula o sangue receberam já uma resposta que nos satisfaz completamente. O mesmo já não sucede com as questões relativas à mente, ao cérebro e ao corpo, em relação às quais o erro de Descartes continua a prevalecer. Para muitos, as ideias de Descartes são consideradas evidentes em si mesmas, e sem necessitarem de alguma reavaliação.

Pode bem ter sido a ideia cartesiana de uma mente separada do corpo que esteve na origem, pelo meio do século XX, da metáfora da mente como programa de software. De facto, se a mente pode ser separada do corpo, talvez fosse possível compreendê-la sem recorrer à neurobiologia, sem qualquer necessidade de saber neuroanatomia, neurofisiologia e neuroquímica. É interessante e paradoxal que muitos investigadores em ciência cognitiva, que julgam serem capazes de investigar a mente sem qualquer recurso à neurobiologia, não se considerem dualistas.

A separação cartesiana pode estar também subjacente ao modo de pensar de neurocientistas que insistem que a mente pode ser perfeitamente explicada em termos de fenómenos cerebrais, deixando de lado o resto do organismo e o meio ambiente físico e social – e, por conseguinte, excluindo o facto de parte do próprio meio ambiente ser também um produto das acções anteriores do organismo. Protesto contra esta restrição, não porque a mente não esteja directamente relacionada com a actividade cerebral mas porque esta formulação restritiva é forçosamente incompleta e insatisfatória em termos humanos. É um facto incontestável que o pensamento provém do cérebro, mas prefiro enquadrar esta afirmação e considerar as razões por que os neurónios conseguem pensar tão bem. Esta é, de facto, a questão principal.

A ideia de uma mente descorporalizada* parece ter também moldado a forma peculiar como a medicina ocidental aborda o estudo e o tratamento da doença (ver o Postscriptum).

A divisão cartesiana domina tanto a investigação como a prática médica. Em resultado disso, as consequências psicológicas das doenças do corpo propriamente dito, as chamadas doenças reais, são normalmente ignoradas ou são levadas em linha de conta muito mais tarde. Mais negligenciado ainda é o inverso, os efeitos dos conflitos psicológicos no corpo. É curioso pensar que Descartes contribuiu para a alteração do rumo da medicina, ajudando-a a abandonar a abordagem orgânica da mente-no-corpo que predominou desde Hipócrates até ao Renascimento. Que irritado que Aristóteles teria ficado se lhe tivessem dito.

Versões do erro de Descartes obscurecem as raízes da mente humana num organismo biologicamente complexo, mas frágil, finito e único; obscurecem a tragédia implícita no conhecimento dessa fragilidade, finitude e singularidade. E, quando os seres humanos não conseguem ver a tragédia inerente à existência consciente, sentem-se menos impelidos a fazer algo para a minimizar e podem mostrar menos respeito pelo valor da vida.

 

Os factos que apresentei relativos às sensações e à razão, juntamente com outros que discuti acerca da interligação entre o cérebro e o corpo propriamente dito, dão apoio à ideia mais geral com a qual abri o livro: que a compreensão cabal da mente humana requer a adopção de uma perspectiva do organismo; que não só a mente tem de passar de um cogitum não físico para o domínio do tecido biológico, como deve também ser relacionada com todo o organismo que possui cérebro e corpo integrados e que se encontra plenamente interactivo com um meio ambiente físico e social.

No entanto, a mente verdadeiramente incorporada que concebo não renuncia aos seus níveis mais refinados de funcionamento, aqueles que constituem a sua alma e o seu espírito. Do meu ponto de vista, o que se passa é que a alma e o espírito, em toda a sua dignidade e dimensão humana, são os estados complexos e únicos de um organismo. Talvez a coisa que se toma mais indispensável fazermos no nosso dia-a-dia, enquanto seres humanos, seja a de recordar a nós próprios e aos outros a complexidade, fragilidade, finitude e singularidade que nos caracterizam. É claro que esta não é uma tarefa fácil: mudar o espírito do seu pedestal num algures inlocalizável para um lugar bem mais exacto, preservando ao mesmo tempo a sua dignidade e a sua importância; reconhecer a sua origem humilde e a sua vulnerabilidade e ainda assim continuar a recorrer à sua orientação e conselho. Uma tarefa indispensável e difícil, sem dúvida, mas sem a qual talvez seja melhor que o Erro de Descartes fique por corrigir.

Notas:

* Culture of complaint, no original. (N. da T.)

* Disembodied, no original. (N. da T.) 

(“O Erro de Descartes. Emoção, Razão e Cérebro Humano”, António R. Damásio. Publicações Europa-América, 1994)

 

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