António R. Damásio
É precisamente esta falta de compreensão da
natureza das emoções e da razão (uma das características mais salientes da
«cultura da queixa»*) que suscita alarme.
A concepção de organismo humano esboçada neste
livro e a relação entre emoção e razão que emerge dos resultados aqui
discutidos sugerem, no entanto, que o fortalecimento da racionalidade requer
que seja dada uma maior atenção à vulnerabilidade do mundo interior.
A um nível prático, a função atribuída às
emoções na criação da racionalidade tem implicações em algumas das perguntas
com que a, nossa sociedade se defronta actualmente, entre elas a educação e a
violência. Não é este o local para uma abordagem adequada destas questões, mas
devo dizer que os sistemas educativos poderiam ser melhorados se se insistisse na
ligação inequívoca entre as emoções actuais e os cenários de resultados futuros,
e que a exposição excessiva das crianças à violência, na vida real, nos
noticiários e na ficção audiovisual, desvirtua o valor das emoções na aquisição
e desenvolvimento de comportamentos sociais adaptativos. O facto de tanta
violência gratuita ser apresentada sem um enquadramento moral só vem reforçar a
sua acção dessensibilizadora.
O ERRO DE DESCARTES
Não teria sido possível apresentar a minha
participação nesta conversa sem ter invocado Descartes como símbolo de um
conjunto de ideias acerca do corpo, do cérebro e da mente que, de uma maneira
ou de outra, continuam a influenciar as ciências e as humanidades no mundo
ocidental. A preocupação é dirigida tanto à noção dualista com a qual Descartes
separa a mente do cérebro e do corpo como às variantes modernas desta noção:
por exemplo, a ideia de que a mente e o cérebro estão relacionados mas apenas
no sentido de a mente ser o programa de software que corre numa parte do
hardware chamado cérebro; ou que o cérebro e o corpo estão relacionados,
mas apenas no sentido de o primeiro não conseguir sobreviver sem a manutenção
que o segundo lhe oferece.
Qual foi, então, o erro de Descartes? Ou,
melhor ainda, a que erro de Descartes me estou a referir com ingratidão?
Poderíamos começar com um protesto e censurá-lo por ter convencido os biólogos
a adoptarem, até hoje, uma mecânica de relojoeiro como modelo dos processos
vitais. Mas talvez isso não fosse muito justo, e comecemos, então, pelo «penso,
logo existo». Esta afirmação, talvez a mais famosa da história da filosofia, surge
pela primeira vez na quarta secção de O Discurso do Método (1637), em
francês («Je pense, donc je suis»); e depois na primeira parte de Princípios
da Filosofia (1644), em latim («Cogito ergo sum»)3. Considerada
literalmente, a afirmação ilustra exactamente o oposto daquilo que creio ser verdade
acerca das origens da mente e acerca da relação entre a mente e o corpo. A
afirmação sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros
substratos de existir. E, como sabemos que Descartes via o acto de pensar como
uma actividade separada do corpo, esta afirmação celebra a separação da mente,
a «coisa pensante» (res cogitans), do corpo não pensante, o qual tem extensão
e partes mecânicas (rep extensa).
No entanto, já antes do aparecimento da
humanidade, os seres eram seres. Num dado ponto da evolução, surgiu uma
consciência elementar. Com essa consciência elementar apareceu uma mente
simples; com uma maior complexidade da mente veio a possibilidade de pensar e,
mais tarde ainda, de usar linguagens para comunicar e melhor organizar os pensamentos.
Para nós, portanto, no princípio foi a existência e só mais tarde chegou o
pensamento. E para nós, no presente, quando vimos ao mundo e nos desenvolvemos,
começamos ainda por existir e só mais tarde pensamos. Existimos e depois
pensamos e só pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na
verdade, causado por estruturas e operações do ser.
Quando colocamos a afirmação de Descartes no
devido contexto, podemos perguntar-nos por um instante se poderá ter
significado diferente daquele que lhe estamos a atribuir. Será que pode ser
vista como o reconhecimento da superioridade da razão consciente, sem qualquer compromisso
firme no que respeita à sua origem, substância ou permanência? É possível. Não
poderia a afirmação ter servido também o hábil propósito de aliviar as pressões
religiosas que Descartes podia sofrer? É possível, mas não podemos saber ao
certo. (A inscrição que Descartes escolheu para a sua lápide foi uma citação a
que recorria com frequência: «Rene qui latuit, bene vixit», de Tristia,3.4.25,
de Ovídio. Tradução: «Aquele que se escondeu bem viveu bem.» Uma renúncia
discreta ao dualismo?). Quanto à primeira possibilidade de interpretação, e
fazendo o balanço final, suspeito que Descartes também queria dizer
precisamente aquilo que escreveu. Quando as famosas palavras surgem pela
primeira vez, Descartes rejubila com a descoberta de uma proposição tão
verdadeira que não podia ser negada ou abalada por nenhuma dose de cepticismo:
[...] e reparando que esta verdade, «Penso,
logo existo», era tão certa e tão segura que nem sequer as suposições mais
extravagantes dos cépticos a conseguiam abalar, cheguei à conclusão de que a
receberia sem qualquer hesitação como o primeiro princípio da Filosofia que
procurava.
Descartes procurava uma fundação lógica para a
filosofia, e a afirmação não se afastava muito da de Santo Agostinho «Fallor
ergo sum» («Sou enganado, logo existo»). Mas, umas linhas mais adiante,
Descartes esclarece a afirmação de forma inequívoca:
Por isso eu soube que era uma substância cuja
essência integral é pensar, que não havia necessidade de um lugar para a existência
desta substância e que ela não depende de algo material; então, este «eu», quer
dizer, a alma através da qual sou o que sou, distingue-se completamente do
corpo e é ainda mais fácil de conhecer do que este último; e, ainda que não
houvesse corpo, a alma não deixaria de ser o que é.
É este o erro de Descartes: a separação
abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente
divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, por um
lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e
intangível; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento
adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam existir independente corpo.
Em concreto: a separação das operações mais refinadas da mente, para um lado, e
da estrutura e funcionamento do organismo biológico, para o outro.
Mas há quem possa perguntar por que motivo
incomodar Descartes e não Platão, cujas ideias sobre o corpo e a mente são
muito mais exasperantes, como podemos verificar no Fédon? Porquê preocuparmo-nos
com este erro específico de Descartes? Afinal, alguns dos seus outros erros são
bem mais espectaculares do que este. Descartes pensava que o calor fazia circular
o sangue, que as finas e minúsculas partículas do sangue se transformavam em
«espíritos animais», os quais conseguiam depois mover os músculos. Por que não
censurá-lo por uma dessas noções? A razão é simples: há muito tempo que sabemos
que ele estava errado nestes aspectos concretos, e as perguntas sobre como e
por que circula o sangue receberam já uma resposta que nos satisfaz
completamente. O mesmo já não sucede com as questões relativas à mente, ao
cérebro e ao corpo, em relação às quais o erro de Descartes continua a
prevalecer. Para muitos, as ideias de Descartes são consideradas evidentes em
si mesmas, e sem necessitarem de alguma reavaliação.
Pode bem ter sido a ideia cartesiana de uma
mente separada do corpo que esteve na origem, pelo meio do século XX, da
metáfora da mente como programa de software. De facto, se a mente pode
ser separada do corpo, talvez fosse possível compreendê-la sem recorrer à
neurobiologia, sem qualquer necessidade de saber neuroanatomia, neurofisiologia
e neuroquímica. É interessante e paradoxal que muitos investigadores em ciência
cognitiva, que julgam serem capazes de investigar a mente sem qualquer recurso
à neurobiologia, não se considerem dualistas.
A separação cartesiana pode estar também
subjacente ao modo de pensar de neurocientistas que insistem que a mente pode
ser perfeitamente explicada em termos de fenómenos cerebrais, deixando de lado
o resto do organismo e o meio ambiente físico e social – e, por conseguinte, excluindo
o facto de parte do próprio meio ambiente ser também um produto das acções
anteriores do organismo. Protesto contra esta restrição, não porque a mente não
esteja directamente relacionada com a actividade cerebral mas porque esta
formulação restritiva é forçosamente incompleta e insatisfatória em termos
humanos. É um facto incontestável que o pensamento provém do cérebro, mas
prefiro enquadrar esta afirmação e considerar as razões por que os neurónios
conseguem pensar tão bem. Esta é, de facto, a questão principal.
A ideia de uma mente descorporalizada* parece
ter também moldado a forma peculiar como a medicina ocidental aborda o estudo e
o tratamento da doença (ver o Postscriptum).
A divisão cartesiana domina tanto a
investigação como a prática médica. Em resultado disso, as consequências
psicológicas das doenças do corpo propriamente dito, as chamadas doenças reais,
são normalmente ignoradas ou são levadas em linha de conta muito mais tarde.
Mais negligenciado ainda é o inverso, os efeitos dos conflitos psicológicos no
corpo. É curioso pensar que Descartes contribuiu para a alteração do rumo da medicina,
ajudando-a a abandonar a abordagem orgânica da mente-no-corpo que predominou
desde Hipócrates até ao Renascimento. Que irritado que Aristóteles teria ficado
se lhe tivessem dito.
Versões do erro de Descartes obscurecem as
raízes da mente humana num organismo biologicamente complexo, mas frágil,
finito e único; obscurecem a tragédia implícita no conhecimento dessa
fragilidade, finitude e singularidade. E, quando os seres humanos não conseguem
ver a tragédia inerente à existência consciente, sentem-se menos impelidos a fazer
algo para a minimizar e podem mostrar menos respeito pelo valor da vida.
Os factos que apresentei relativos às
sensações e à razão, juntamente com outros que discuti acerca da interligação
entre o cérebro e o corpo propriamente dito, dão apoio à ideia mais geral com a
qual abri o livro: que a compreensão cabal da mente humana requer a adopção de
uma perspectiva do organismo; que não só a mente tem de passar de um cogitum
não físico para o domínio do tecido biológico, como deve também ser
relacionada com todo o organismo que possui cérebro e corpo integrados e que se
encontra plenamente interactivo com um meio ambiente físico e social.
No entanto, a mente verdadeiramente
incorporada que concebo não renuncia aos seus níveis mais refinados de funcionamento,
aqueles que constituem a sua alma e o seu espírito. Do meu ponto de vista, o
que se passa é que a alma e o espírito, em toda a sua dignidade e dimensão humana,
são os estados complexos e únicos de um organismo. Talvez a coisa que se toma
mais indispensável fazermos no nosso dia-a-dia, enquanto seres humanos, seja a
de recordar a nós próprios e aos outros a complexidade, fragilidade, finitude e
singularidade que nos caracterizam. É claro que esta não é uma tarefa fácil:
mudar o espírito do seu pedestal num algures inlocalizável para um lugar bem
mais exacto, preservando ao mesmo tempo a sua dignidade e a sua importância;
reconhecer a sua origem humilde e a sua vulnerabilidade e ainda assim continuar
a recorrer à sua orientação e conselho. Uma tarefa indispensável e difícil, sem
dúvida, mas sem a qual talvez seja melhor que o Erro de Descartes fique por corrigir.
Notas:
* Culture
of complaint, no original. (N. da T.)
* Disembodied, no original. (N. da T.)
(“O Erro de Descartes. Emoção, Razão e Cérebro
Humano”, António R. Damásio. Publicações Europa-América, 1994)
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