Paulina Chiziane
- O meu marido também, senhores juízes. Passou
a tarde de ontem bebendo sura e quando chegou a noite quis dormir na minha
esteira. Como eu recuasse agrediu-me aos gritos, pontapés, vejam, vejam estes
arranhões que tenho no pescoço, estas chagas nas costas, vejam, eu não estou a
mentir. Eu suportei tudo, mas não caí na conversa dele.
- Bravo, bravo, aqui estão as mulheres de
coragem. Muito bem. Vieram até aqui denunciar os vossos maridos. Qual a
contribuição por vós dada no sentido de evitar estes desvios?
- !?...
-Nada fizeram, bem se vê. Deixaram-nos
desencaminhar-se, dormiram convosco, sentiram prazer, agora querem colocar as
culpas nos ombros dos coitados?
Aceitem vossa parte da culpa, pois o tribunal
condena-vos a vós e aos vossos maridos. Trazei cada uma de vós uma galinha para
pedir perdão aos mortos.
- De que nos acusam? Os homens é que mandam,
nós fomos loboladas para satisfazer todos os seus desejos.
- Aceitam, porque a culpa também é vossa. Trazei as galinhas e serão purificadas.
A natureza satisfaz os seus caprichos macabros, nenhum ser é senhor de si. O Sol vai e vem, a terra é uma caldeira com o negro assando-se dentro dela. Os homens não aceitam a indiferença dos deuses e tentam despertá-los do sono secular sacudindo-os com rezas, rituais, batucadas, sangue de galo e de cabrito cujas carnes tenras acabam nos estômagos dos que possuem garras e dentes. Há rumores nas ruas a qualquer hora do dia e da noite. São os homens que vão e voltam dos tribunais; são mulheres que partem para a limpeza da terra, regressando com as mãos conspurcadas de tanto esgaravatar à procura dos vestígios dos seus crimes. Há arrependimento, há pureza, há santidade nos corações de todos. Há também querelas ligeiras e graves no espaço delimitado pelo círculo de cada palhota. É o homem que exige o milho para a purificação, e a mulher que o esconde. É a mãe que leva as cabras para o sacrifício dos mortos e o filho que impede. E a criança não participa na algazarra porque não lhe é permitido, apenas oferece aos adultos olhares interrogativos quando vê desaparecer o último pedaço de alimento sem qualquer explicação.
Os velhotes mergulham na balbúrdia numa participação passiva. Descansam nas sombras sorvendo a pinga, puxando agradáveis fumaças da ponta do xicaucau. Estão cheios de contentamento, as novas gerações regressam às antigas tradições, mas a espoliação de que o povo é vítima pelos capangas do Sianga deixa-lhes os corações oprimidos. A interrogação é permanente: esses homens estão de facto a lutar pela salvação do povo ou simplesmente a resolver o problema pessoal do seu estômago? Ah, novas gerações, malditos sejam. A chuva não cairá de certeza, é tanta a maldade que se faz. Por outro lado, talvez seja um sacrifício necessário, talvez os deuses o tenham assim ordenado. Em conversas esmorecidas os velhotes lamentam a sorte dos novos, a destruição do clã, da cultura e da tradição que com a fome afundará na mesma barca que eles.
A idade muda os gostos dos homens. Os velhos falam da morte com paixão e ânsia, e a morte, sabendo-se desejada, aproxima-se, vem a caminho. Com os mais novos a luta é contrária. Estão empenhados numa guerra sem tréguas contra esse invencível rei dos terrores. Seguram-se ao alicerce da fé que gera a esperança e rezam perdidamente embora conscientes de que a verdadeira fé é o sacrifício do homem. Mas que alternativa tomar se no corpo e na alma não resta o mínimo de energia para o sacrifício da vida?
O povo teme a morte. Mas qual a razão deste
temor se o negro quando morre passa à categoria de deus e defunto venerado?
O povo de Mananga não teme a morte, mas ama a
vida e não quer perdê-la. A vida é a dádiva mais sagrada de todos os seres. No
momento de agonia ou de alegria mais nos aconchegamos a ela sussurrando-lhe ao
ouvido este belo poema:
Vida,
apesar das amarguras
eu amo-te
com as tuas delícias e milícias
adoro-te.
(Ventos do Apocalipse - Paulina Chiziane, 1999)
Nenhum comentário:
Postar um comentário