quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Os acordos e as desavenças pela disputa do pote

 

A ama para o lacaio: "Estou muito feliz por me encontrar com António Costa. Sei que posso contar com a sua experiência e dedicação", escreveu Ursula von der Leyen (Em "Dinheiro Vivo")

Os partidos e outros intervenientes e interessados na repartição do saque registado no documento do Orçamento de Estado para 2022 estão desavindos, mas só aparentemente. Muitas pessoas do povo ainda pensam que a origem dos seus principais problemas a nível colectivo se encontra no facto de os partidos e outros ditos “parceiros” não se entenderem, porque caso ponham as divergências de lado, os problemas se resolverão. Ora, na realidade, é o contrário que acontece.

Como diz o adágio popular, “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”, o não se entender permite algum alívio no apertar da tarraxa sobre os que trabalham e produzem; e se o escarcéu é grande, é porque o desentendimento é mais no que diz respeito à forma como o produto do saque é distribuído do que no roubo em si. E o que está a acontecer é que as nossas inúteis e rentistas elites acham que o que lhes cabe neste orçamento é pouco, e querem mais.

Assiste-se a um coro de lamúrias. Para a Ordem dos Contabilistas, a Proposta do Orçamento do Estado é "pouco virada" para as empresas; as consultoras financeiras acham que "para o setor empresarial, a proposta de orçamento pode ser curta"; o sector da restauração diz que OE2022 “pode ditar fim de muitas empresas”; um jornal dos negócios do capital diz que: “Mercado pede um OE com mais PRR e menos impostos”.

Parece o muro das lamentações, apesar do OE reservar 700 milhões para apoios covid às empresas, mais 200 milhões de subsídios a fundo perdido para “premiar postos de trabalho mantidos através do Incentivo à Normalização”, mais para além do já prometido e realizado. Não será por acaso que o ministro da Finanças veio culpar o vírus por 40 mil milhões de euros de défice, ou seja, 20% do PIB para o próximo orçamento, e que foi quase todo enfiado no bolso das grandes empresas e não apenas do sector farmacêutico e da saúde.

Mas, claro, como também popularmente se diz, “quem não chora não mama”, e os diversos abutres que sobrevoam o produto da exploração exercida sobre o povo não se cansam de grasnar. Não há saciedade possível para o apetite: dos 16.644 milhões de euros do PRR, cerca de 5 mil milhões são para apoios directos às empresas, onde se inclui a recapitalização, valor que, segundo Costa, pode chegar aos 7 mil e 200 milhões de euros. Ainda haverá a possibilidade de o governo pedir emprestado mais 2. 300 milhões. É o fartar vilanagem!

O bolo é demasiado apetitoso e as empresas estão à rasca, isto é, estão em grande medida falidas, porque falido se encontra o capitalismo nacional, cronica e estruturalmente subsidiário, e ainda mais depois da entrada na União Europeia e da adesão ao euro. Razão pela qual o Presidente-Rei Marcelo se esganiça a avisar: “Portugal não pode perder 'ocasião única e irrepetível' e que o país “quer (não há outro remédio!) entrar 'nos primeiros' no novo ciclo económico” e “esta não pode ser mais uma oportunidade perdida”. Não há saída para a burguesia nacional.

Pela gravidade da situação, Marcelo, hábil e experiente na intriga política, vai manobrando, avisando, em ameaça velada, que “o chumbo do OE muito provavelmente conduzirá a eleições antecipadas”. Mas, acreditando nos partidos e na democracia – diz, ele, embora saibamos que são coisas que nunca teve em grande consideração – o “Orçamento de Estado irá passar na Assembleia da República”. No entanto, pelo sim e pelo não, e cautelas e caldos de galinha não fazem mal a ninguém, Costa joga pela prudência, contando com a eventualidade de eleições antes do tempo, daí o ter destinado à dita “classe média” um alívio de 150 milhões em sede de IRS, porque é nesta faixa do eleitorado que se ganham ou se perdem eleições.

Enquanto vai tomando algum cuidado, por outro, Costa vai esticando a corda com os parceiros da geringonça informal, tentando comprometer o PCP e o BE na aprovação do OE, ao conceder algumas migalhas, como aconteceu no ano passado; migalhas, quer no que concerne a impacto orçamental, quer no aumento de custos do trabalho nas empresas. PCP e BE vão fazendo o choradinho dos pedintes, numa farsa pouco convincente, porque sabem que ninguém já se deixa enganar e que o claudicar será questão de tempo. A cobardia política é de sobra no enfrentamento ao governo e nas possíveis consequências a nível de resultados em eleições, pouco esperadas pelo eleitorado e completamente indesejáveis pelas elites famintas e impacientes. Como bem diz o comentador Marcelo: será uma perda de tempo.

Estamos a assistir , mais uma vez, a uma ópera bufa quanto a saber quem vai ou não aprovar a Orçamento de Estado de 2022; uma reprise que acontece todos os anos, e já lá vão uns 46. Só que, este ano, a representação tem como fundo cénico uma profunda e crónica crise capitalista a nível mundial e revestindo aspecto mais gravoso na União Europeia. E não é só a denominada “crise energética” que surge como escolho que poderá fazer naufragar a frágil nau catrineta portuguesa, porque esta será apenas uma das pontas do iceberg, é toda uma crise global do capitalismo que se trata. E, para lhe fazer frente, a burguesia parece conhecer uma só saída: reduzir custos, nomeadamente, os do trabalho, e aumentar o preço das mercadorias. A inflação que se avizinha não será nem baixa nem temporária, será, no mínimo, como alerta o FMI, “uma incerteza considerável”.

Bem prega o Frei Tomás Marcelo para que a subida de preços da energia não se prolongue, por prejudicar a economia, e o ex-Ronaldo das Finanças pôs a cabeça ao postigo do Banco de Portugal alertando para a subida do preço dos combustíveis “aparentemente descontrolada”, mas que espera vir a ser "temporária". Ora, para nada disto aponta os factos e os indícios; os primeiros são a dependência do país dos combustíveis fósseis, petróleo e gás natural, e os segundos são a possível irregularidade ou mesmo falha total de fornecimento do gás por parte da Argélia, devido ao conflito crescente com o vizinho Marrocos, e a impossibilidade das eólicas e fotovoltaicas poderem substituir a curto prazo a energia em falta.

Não é uma ideia absurda pensar-se que o próximo Inverno venha ser uma Inverno de frio e de fome para quem trabalha. Costa, em preventiva de esconjurar algum do descontentamento que se avoluma, decretou a descida de dois cêntimos no ISP da gasolina e um cêntimo no ISP do gasóleo. Continua a iludir a questão. No entanto, a electricidade e o gás natural estão já mais caros e ninguém é capaz de prever os aumentos futuros, e subindo o preço dos combustíveis aumentam todos os produtos de consumo em cadeia – 2, 5 ou 10%, ninguém sabe. Preparemo-nos para o pior.

A crise política de que fala Marcelo, será sempre o reflexo da crise económica mais geral, independentemente do OE ser ou não aprovado, à primeira ou à segunda vez, com duodécimos ou sem duodécimos. O PS tem desempenhado o papel que os PS desempenham por incumbência do capital, ser bombeiro da luta de classes quando o ou os partidos da burguesia se encontram por alguma razão mais fragilizados. Logo que o PSD, o ainda partido por excelência da burguesia indígena, resolva os seus problemas internos, o PS será descartado. A questão é que ainda não se sabe bem se o momento actual é o mais acertado para a defenestração do governo, mas pelo sim e pelo não, dentro do dito “principal partido da oposição” vão-se contando espingardas e a actual direcção nunca esteve tão ameaçada como agora. Não é por acaso também que as eleições internas não foram adiadas e o principal opositor actua e fala como as eleições legislativas fossem já amanhã. Tudo é incerto. Há uma certeza, contudo, no seio do bando a pressa de enfiar a mão no pote é indisfarçável.

Perante a impaciência e nervosismo do capitalismo, a posição dos diversos interlocutores e parceiros políticos é a de mais baixa e abjecta subserviência e oportunismo. Costa alinha totalmente pela política imposta por Bruxelas, o OE pode dar muitas voltas e os partidos da putativa oposição podem dizer o que quiserem, mas o Orçamento terá de ser o das "contas certas", vincando que nunca colocará em causa “credibilidade do país”, leia-se: a subserviência canina do governo. Costa não se cansa de alardear o seu espírito de lacaio, desde querer fazer do país um fornecedor de matérias primas para a famigerada “transição energética e tecnológica” da Europa capitalista, considera “as reservas de lítio em Portugal e Espanha oportunidades de desenvolvimento”, ao pedir uma “NATO mais solidária com consulta recíproca e sem 'crises de confiança'”. O resto da manada vai na cola, ninguém coloca em causa as imposições das “contas certas” por Bruxelas e muito menos a permanência de Portugal na União Europeia e no euro.

No mundo do trabalho, os sindicatos, numa prova de vida serôdia, vêm agora convocar greves para sacar mais umas migalhas, não usando denunciar a natureza de classe de um orçamento que, na essência, representa a extorsão de que são vítimas os trabalhadores e cuja preocupação é dar ao capital o maior quinhão e segunda a sua lógica. Em questões prática, como por exemplo nos despedimentos colectivos que irão disparar daqui para a frente, é a inépcia e a cobardia política: a Saint-Gobain Sekurit Portugal, que recebeu apoio financeiro no contexto da pandemia e teve lucros superiores a 1400 milhões de euros em 2020, anuncia despedimento de 130 trabalhadores. E na Função Pública, parece que 0,9% de aumento para os trabalhadores é suficiente, não contando com a depreciação do salário real em cerca de 10% nos últimos anos.

Quanto a intenção e objectivos das lutas propostas, ficamos conversados: Mário Nogueira, Secretário-geral da Federação Nacional dos Professores, ameaça com greve e manifestação nacional se Governo não negociar com professores. Notar bem: “ameaça” e “não negociar”. Pois não é com “ameaças” para “negociar” que se resolvem, em termos imediatos, os problemas mais prementes do povo trabalhador, e, ainda por cima, em tempo de profunda, continuada e sem solução à vista crise do capitalismo. O tempo é de luta e de rutura, de ir mais além: destruição da causa de todos os males do mundo do trabalho e do planeta, o capitalismo.

16 Outubro 2021

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