segunda-feira, 1 de novembro de 2021

A crise política do senhor presidente (Os acordos e as desavenças pela disputa do pote II)

 

Burlesque Commedienne in Dressing Room (Diane Arbus)

Continuamos a assistir, como já tínhamos afirmado, a uma encenação onde cada actor principal representa o seu papel; haverá outros protagonistas que não passarão de figurantes. Agora, será mais o enredo de impor um governo de maioria absoluta, seja de cor rosa ou laranja, pouco interessará ao grande capital desde que imponha o programa necessário para a saída da crise em que o capitalismo se encontra atascado. Mas o mais provável, e por muito incrível que possa parecer, a maioria no final será do senhor presidente.

Ora, vejamos. Marcelo tem andado desde há algum tempo a aconselhar ao entendimento entre os partidos quanto à aprovação do OE-2022; assunto, no seu entendimento, de suprema importância devido à urgência de tirar a economia do charco, alegadamente devido à pandemia, e os milhões do PRR são mais que preciosos. O apelo foi sempre dirigido aos partidos da dita “geringonça”, nunca aos partidos da direita, nomeadamente, ao seu partido, o PSD, prevendo já o desacordo, aqueles ficariam como os maus da fita. Caso não houvesse entendimento, então teria de haver eleições antecipadas, com todos os custos daí advindos, porque ele, e nem ninguém, desejaria uma crise política e ainda por cima a seguir a uma crise “pandémica”.

No entretanto, o PS, o governo e o Costa, depois de terem apoiado a reeleição de Marcelo, foram com palmadinhas nas costas repetindo que o seu desejo também não era a instabilidade política e que o seu Orçamento era o melhor deste mundo, especialmente, para a dita “esquerda” e o seu eleitorado, que se presume que seja a maioria do povo português. No entanto, fazendo figas e tudo o mais para que o tal OE-2022 (que ficará na história da política pós-25 de Abril por ter sido o único cujo chumbo levou a eleições) fosse reprovado no Parlamento. A maneira como foi apresentado, a atitude de irredutibilidade de Costa perante as exigências apresentadas pelos outros dois partidos da geringonça informal, aliás, exigências que nem teriam grande repercussão em “custos” orçamentais, fica-se com a certeza de que a intenção do Costa era exactamente provocar eleições antecipadas, como tentativa de obter maioria absoluta. Costa e Marcelo são as duas figuras principais de uma ópera bufa, onde as restantes acabam por ser actores secundários ou meros figurantes. PCP e BE ficarão para a história como os idiotas úteis do regime.

Neste jogo de duplicidade, do mais abjecto oportunismo político, onde todos se voluntariam a desempenhar um papel formalmente contrário às suas intenções ocultas e interesses, assiste-se dentro de cada partido com acesso ao pote a disputas e ataques muito pouco dignificantes para os intervenientes. Dentro do dito “principal partido da oposição” e ainda o partido, pelo menos de origem, do presidente-rei Marcelo, temos o massacre diário nos media da realização ou não realização do “processo eleitoral interno” para mudança do chefe ainda antes das eleições; e no partido, que tradicionalmente é o parceiro da coligação da direita e que se diz “fundador da democracia portuguesa”, a preocupação é de adiar ou não o congresso para manter o actual líder. No geral e muito prosaicamente, é a luta encarniçada para se saber, caso a direita formal ganhe as eleições, quem será ministro e irá meter a mão no pote; para mais, um pote bem recheado com os dinheiros da já famigerada e tão cobiçada bazuca.

O último ponto da discórdia parecer o dia das eleições legislativas, se em Janeiro ou em Fevereiro. O PS e Costa querem-nas quanto mais depressa melhor, porque as autárquicas mostraram que os ventos estão a mudar e é agora ou nunca para se conseguir a tão almejada maioria absoluta. O PSD, com a direcção actual, pensa também o mesmo na justa medida de ser antes da possível mudança interna de chefes. O CDS idem, aspas, aspas. O BE manifesta-se impotente perante os acontecimentos, sempre pensou que a intransigência de Costa não passaria de bluff para ceder o menos possível.

E o PCP, a última coisa que queria era Orçamento chumbado e eleições antecipadas, pensando sempre que se estava a repetir a mesma farsa do ano passado, já que o OE-2022 não é muito diferente do OE-2021 e sabendo-se à partida que nem seria todo para ser aplicado, à semelhança dos anteriores, tanto fazia ter mais ou menos propostas da considerada “esquerda”. Os dirigentes deste partido não parecem ser pessoas particularmente inteligentes e perspicazes, não há maneira de aprender com o passado, que mostra que o apoio ao governo lhes é fatal em termos eleitorais; ou seja, o contrário do que é propagandeado pelos media. E, parecendo que não percebe nada do que se passa, Jerónimo ainda vem afirmar que deixa “a porta aberta a novos acordos”. Tal é o oportunista político e o apego ao pote, apesar do papel desta gente, como o do BE, ser o de recolher as migalhas que caem da mesa do repasto.

O PS já antes do chumbo do OE que anda em aberta campanha eleitoral, e agora o frenesim é bem patente com o ministro da Economia a defender eleições “o mais rapidamente possível”, para não comprometer metas do PRR. O Governo PS é aquele que garante a "estabilidade financeira", para que os capitalistas possam continuar a enriquecer enquanto o povo português vai empobrecendo, com a vantagem de assegurar a paz social; razão pela qual se deve chamar à colação o PCP e até o representante mais expressivo da pequena-burguesia urbana, o BE. E o PCP ainda vai mais longe, como tem sido a tradição de bom partido social-democrata que mandou há muito (para não dizer desde sempre) o socialismo e comunismo às urtigas, não se faz rogado: “Jerónimo de Sousa: Propostas do PCP não se traduzem em crise ou instabilidade". Como se vê, se o proletariado estiver à espera da instabilidade social necessária que conduza à revolução comunista, coisa que parece ainda constar nos estatutos deste partido e no símbolo da bandeira, poderá esperar sentado – uma espera de Godot.

Fica também claro que, com a queda do governo anunciada (atenção, o governo e assembleia da república ainda se encontram em funções!), é Marcelo que fica como maestro da ópera bufa e que será visto como o garante da estabilidade, embora seja tão responsável pela instabilidade da crise política como Costa e os outros protagonistas. Todos são responsáveis pelo chumbo do Orçamento, porque era necessário para a prossecução das respectivas agendas. Marcelo, como bom lacaio que é, e nada ficando a dever ao sócio do governo, irá juntar os conselheiros de Estado com a presidente do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde, para “discutirem a crise económica mundial (e europeia) e a crise política nacional”, onde a dissolução do Parlamento é o ponto fulcral. Será uma maneira de sossegar Bruxelas, principalmente, os credores do país representados pelo BCE, garantindo que a dívida continua a ser paga segundo os ditames usurários e que a subjugação do país ao grande capital financeiro será para manter, seja qual for o governo saído das próximas eleições.

Tudo leva a crer, e fazendo fé nos resultados das recentes eleições autárquicas, onde o PS perde nos grandes centros urbanos mas continua ainda com a maioria das autarquias, que os resultados das eleições, que quase de certeza se irão realizar em 16 de Janeiro, não irão diferir muito dos das eleições de 2019. E os impasses muito provavelmente se irão manter: nenhum partido terá maioria absoluta e as coligações serão efémeras e pouco credíveis. O que poderá levar a que, apesar de o PCP e o PV não se cansarem de vociferar que OE chumbado e viver de duodécimos não é nenhuma desgraça, Marcelo acabe por viabilizar um governo de iniciativa presidencial; um governo não eleito e que venha a legislar sem o concurso do Parlamento, como praticamente aconteceu com o actual governo a pretexto da pandemia e das medidas não sanitárias impostas para o seu alegado combate – um governo de ditadura, um pouco à semelhança do que aconteceu recentemente na Itália. Assim, o presidente-rei fará jus ao que a imprensa corporativa não se tem cansado de fazer passar para a opinião pública quanto ao presumível carácter do actual regime que será mais presidencialista do que parlamentar.

Ora, este endurecimento da democracia parlamentar burguesa em direcção a um regime de Bonapartismo ou de “fascismo brando”, isto é, sem golpe de estado e sem as tropas na rua, é o que acontece sempre quando a burguesia tem pela frente uma crise económica profunda, crónica e sem fim à vista. Fascização esta que está em marcha já há algum tempo, desde a declaração dos estados de excepção, decretados com a desculpa do combate à pandemia, ao mesmo tempo que se tem imposto medidas económicas de austeridade e que de outra maneira não teriam sido aceites pacificamente se não fosse com a justificação da defesa da “saúde de todos”. Mas a realidade irá demonstrar que ditaduras sanitárias, estados de excepção, passes verdes e vacinação obrigatória não serão suficientes para fazer vergar os trabalhadores no sentido de aceitar mais diminuição dos seus rendimentos, mais pobreza e miséria a troco de uma eventual mais saúde, o que até é contraditório porque sem dinheiro também não há saúde. Antecipadamente, sabe-se que este Inverno vai ser uma época de acrescidas privações, resultantes da carestia inaudita dos meios de sobrevivência, onde se inclui a alta dos preços da energia e dos combustíveis, por sua vez, consequência das contradições da propalada “transição energética e tecnológica” e que mais não são que as contradições do próprio capitalismo.

É perfeitamente compreensível que a crise política mais não é que o reflexo da crise a nível da economia; uma economia – será sempre bom salientá-lo – que é a de um capitalismo essencialmente rentista e subsídio-dependente, dentro de um quadro de subjugação ao grande capital europeu/euro, e que, por essas razões, sente mais profundamente a crise do capitalismo em geral. Como aliás se te comprovado no passado, é à custa de mais crise dos países periféricos e dependentes que os países capitalistas mais avançados tentam resolver as suas crises. Da mesma forma que os capitalistas tentam sair da crise à custa de maior exploração dos trabalhadores, porque não têm outra solução ou então o seu sistema implode e é o fim. A classe operária e o povo trabalhador não vão querer perecer com o capitalismo e outro mundo será necessário, mas para isso outras alternativas terão de ser encontradas em termos ideológicos e organizativos e que não passam pelos actuais partidos ditos “comunistas” ou “de esquerda”, demasiado comprometidos com o regime burguês e corrompidos pelo dinheiro e pelas outras delícias do capital. A revolução comunista necessita de outros protagonistas em termos de organização, para além das classes que querem quebrar as suas grilhetas.

31 Outubro 2021

Nenhum comentário:

Postar um comentário