quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Discurso no Senado em 7 de outubro de 2021

 

GIORGIO AGAMBEN*

Discurso no Senado em 7 de outubro de 2021

Vou me concentrar apenas em dois pontos, que gostaria de chamar a atenção dos parlamentares que terão de votar a conversão do decreto em lei.

A primeira é a evidente - insisto evidente - contradição do decreto em questão. Você sabe que o governo com um decreto-lei especial, conhecido como “escudo penal”, nº 44 de 2021, agora convertido em lei, se eximiu de qualquer responsabilidade pelos danos causados ​​pelas vacinas. A gravidade desses danos resulta do facto de que o artigo 3º do decreto menciona explicitamente os artigos 589 e 590 do código penal, que se referem a homicídio culposo e lesões por negligência.
Como notaram juristas de autoridade, o Estado não tem vontade de se responsabilizar por uma vacina que não completou a fase de testes e, ao mesmo tempo, tenta obrigar os cidadãos a vacinar-se por todos os meios, caso contrário, excluí-los da vida social e, agora, com o novo decreto que vocês são chamados a votar, até privando-os da oportunidade de trabalhar.
É possível imaginar uma situação legal e moralmente mais anormal? Como pode o Estado acusar de irresponsabilidade quem opta por não se vacinar, quando é o mesmo Estado que formalmente declina toda a responsabilidade pelas possíveis consequências graves - lembra a menção dos artigos 589 e 590 do código penal da vacina?
Gostaria que os parlamentares refletissem sobre esta contradição que, a meu ver, constitui uma verdadeira monstruosidade jurídica.

O segundo ponto para o qual gostaria de chamar sua atenção não diz respeito ao problema médico da vacina, mas ao político Passe Verde, que não se deve confundir com isso (já fizemos vacinas de todos os tipos no passado, sem sendo obrigado a apresentar um certificado para cada um dos nossos movimentos). Cientistas e médicos disseram que o Passe Verde não tem significado médico em si, mas serve para forçar as pessoas a se vacinarem. Por outro lado, acredito que o contrário também pode e deve ser afirmado, ou seja, que a vacina é, na verdade, um meio de obrigar as pessoas a terem um passe verde, ou seja, um dispositivo que lhes permite controlar e rastrear os seus movimentos de uma forma sem precedentes.
Os politólogos sabem há muito tempo que as nossas sociedades passaram do modelo que antes se chamava de "sociedade disciplinar" para o de "empresas de controle", fundado num controle digital virtualmente ilimitado do comportamento individual, que assim se torna quantificável num algoritmo. Agora estamo-nos a acostumar a esses dispositivos de controle - mas até onde estamos dispostos a aceitar esse controle? É possível que os cidadãos de uma sociedade supostamente democrática estejam numa situação pior do que a dos cidadãos da União Soviética de Estaline? Você sabe que os cidadãos soviéticos eram obrigados a mostrar um “propiska” para viajar de um país a outro, mas também teremos de o fazer para ir ao cinema ou a um restaurante - e agora, muito mais seriamente, para ir ao local de trabalho. E como é possível aceitar que, pela primeira vez na história da Itália, após as leis fascistas de 1938 sobre os cidadãos não arianos, se criem cidadãos de segunda classe, sujeitos a restrições que do ponto de vista estritamente jurídico - insisto jurídico - nada tem a invejar aos previstos nessas leis nada auspiciosas?

Tudo sugere que os decretos-leis que se sucedem como se emanassem de uma só pessoa devem ser enquadrados num processo de transformação das instituições e dos paradigmas de governo que é tanto mais insidioso quanto, como aconteceu com o fascismo, ocorre sem alterar o texto da constituição. O modelo que se desgasta e se anula progressivamente é o das democracias parlamentares, com seus direitos e garantias constitucionais, e em seu lugar assume um paradigma de governo em que, em nome da biossegurança e do controle, as liberdades individuais estão destinadas a sofrer limitações crescentes.
A concentração exclusiva das atenções nas infecções e na saúde impede-nos de perceber a Grande Transformação que se está a passar na esfera política e de perceber que, como os próprios governos não se cansam de nos lembrar, segurança e emergência não são fenómenos transitórios, mas eles constituem a nova forma de governamentalidade.
Nesta perspectiva, é mais urgente do que nunca que os parlamentares considerem com extrema atenção a transformação em curso, que a longo prazo está destinada a esvaziar o parlamento de seus poderes, reduzindo-se, como vem ocorrendo, a aprovar em nome da biossegurança decretos que emanam de organizações e pessoas que têm muito pouco a ver com o parlamento.

*Filósofo italiano

Em quodlibet

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