segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Desobediência Civil

 

Hannah Arendt 

A desobediência à lei, civil e criminal tornou-se um fenómeno de massa nos anos recentes, não apenas na América, mas também em muitas outras partes do mundo. O desafiar da autoridade estabelecida, religiosa e secular, social e política, como fenómeno mundial pode bem vir a ser considerado um dia como o mais notável evento da última década. Na verdade, «as leis parecem ter perdido o seu poder». Visto de fora e considerado na sua perspetiva histórica, não há sinal mais claro – nem mais explícito da instabilidade interna e da vulnerabilidade dos governos e sistemas legais existentes – que possa ser imaginado. Se a história nos ensina alguma coisa sobre as causas da revolução – e a história não ensina muito, mas ainda ensina consideravelmente mais do que as teorias das ciências sociais – é que uma desintegração dos sistemas políticos precede as revoluções, que o sintoma revelador da desintegração é uma progressiva erosão da autoridade governamental, e que esta erosão é causada pela incapacidade do governo para funcionar adequadamente, de onde brotam as dúvidas dos cidadãos sobre a sua legitimidade. E isto que os marxistas costumavam chamar uma «situação revolucionária» - que, claro está, na maior parte dos casos não se desenvolve numa revolução.

No nosso contexto, a grave ameaça ao sistema judicial dos Estados Unidos é exatamente o caso. Lamentar «o canceroso crescimento das desobediências» não faz muito sentido a menos que se reconheça que, de há muitos anos para cá, as instituições encarregues de fazer respeitar a lei foram incapazes de pôr em vigor legislação contra o tráfico de droga, os assaltos e os roubos. Considerando que as probabilidades de que os criminosos dessas categorias nunca venham a ser apanhados são superiores a nove para um e que só um em cada cem irá para a prisão, há todas as razões para ficar surpreendido com o facto de que tais crimes não sejam piores do que são. (Segundo o relatório de 1967 da Comissão Presidencial de Execução da Lei e Administração da Justiça, «bem mais de metade de todos os crimes nunca são levados ao conhecimento da polícia» e «dos que o são, menos de um quarto origina uma detenção. Quase metade de todas as detenções acabam pela retirada das acusações.) É como se estivéssemos empenhados numa experiência nacional para descobrir quantos criminosos potenciais – ou seja, pessoas que são impedidas de cometer crimes apenas pela força dissuasora da lei – existem de facto numa dada sociedade. Os resultados podem não ser encorajadores para os que sustentam que todos os impulsos criminosos são aberrações – ou seja, impulsos de pessoas mentalmente doentes agindo sob compulsão da sua doença. A simples e bastante assustadora verdade é que, em circunstâncias de permissividade legal e social, participam num comportamento criminoso mais ultrajante pessoas que, em circunstâncias normais, talvez sonhassem com esses crimes sem nunca considerarem cometê-los de facto». *

Na sociedade de hoje, nem os potenciais violadores da lei (ou seja, criminosos não-profissionais e não-organizados) nem os cidadãos respeitadores da lei precisam de estudos elaborados para lhes dizer que os actos criminosos provavelmente – quer dizer, previsivelmente – não terão qualquer espécie de consequências legais. Ficámos a saber, com grande pena nossa que o crime organizado é menos de recear do que os delinquentes não-profissionais - que aproveito oportunidade – e a sua inteiramente justificada «ausência de preocupação com serem punidos»; e este estado de coisas não é alterado nem clarificado pela investigação da «confiança pública no processo judicial americano». Aquilo contra o que nos erguemos não é o processo judicial, mas o simples facto de que os atos criminosos não têm habitualmente qualquer espécie de consequências; não são seguidos de processes judiciais. Por outro lado, temos de nos perguntar o que aconteceria se os poderes da polícia fossem restaurados para o ponto razoável em que 60 a 70 por cento de todos crimes fossem adequadamente seguidos de prisão e julgamento. Há alguma dúvida de que isso significaria o colapso dos já desastrosamente sobrecarregados tribunais e teria consequências muito aterradoras para o igualmente sobrecarregado sistema prisional? O que é tao aterrorizador na situação atual não é o mau funcionamento do poder policial per se, mas que remediar radicalmente essa situação significaria uma catástrofe para os outros ramos do sistema judicial, igualmente importantes.

A resposta do governo a isto, e similarmente a outras degradações dos serviços públicos, tem sido invariavelmente a criação de comissões de estudo, cuja fantástica proliferação em anos recentes fez provavelmente dos Estados Unidos o país mais investigado na Terra. Não há dúvida de que as comissões, depois de gastarem muito tempo e dinheiro com o intuito de descobrir que «quanto mais pobres as pessoas, mais provável é que sofram de malnutrição» (uma pérola de sabedoria que até foi objeto de «Citação do Dia» do New York Times), fazem frequentemente recomendações razoáveis. Estas, todavia, raramente são postas em prática mas são, em vez disso, submetidas a um novo painel de investigadores. O que todas as comissões tem em comum é uma tentativa desesperada de descobrir alguma coisa sobre as «causas profundas» de seja qual for o problema – em especial se for o problema da violência – e dado que as causas mais profundas são, por definição, ocultas, o resultado final de uma equipa dessas é, com demasiada frequência, pouco mais do que hipóteses e teorias não demonstradas. O efeito concreto é que a investigação se converteu num substituto para a acção, e as «causas mais profundas» estão a cobrir as óbvias, que são frequentemente tão simples que a ninguém «sério» e «erudito» pode ser pedido que lhes dê qualquer atenção. Decerto, encontrar remédios para as insuficiências óbvias não garante a solução do problema; mas negligenciá-las significa que o problema nem sequer será adequadamente definido. A investigação converteu-se numa técnica de evasão e isto certamente não ajudou a já abalada reputação da ciência.

Dado que a desobediência e o desafio à autoridade são uma marca tão geral do nosso tempo, é tentador ver a desobediência civil como um mero caso especial. Do ponto de vista do jurista, a lei é violada pelo que participa na desobediência civil, nãoo menos do que pelo criminoso, e é compreensível que as pessoas, em especial tratando-se de advogados, suspeitem que a desobediência civil, precisamente por causa de ser exercida em público, está na raiz da variedade criminal – não obstante todas as provas e argumentos contrários, porque a prova «para demonstrar que os atos de desobediência civil... levam a... uma propenção para o crime» não é «insuficiente», mas simplesmente inexistente. Apesar de ser verdade que os movimentos radicais e, certamente, as revoluções atraem elementos criminosos, não seria correcto nem sensato igualar os dois; os criminosos são tão perigosos para os movimentos políticos como para a sociedade como um todo. Além disso, enquanto a desobediência civil pode ser considerada uma indicação de uma significativa perda de autoridade (apesar de dificilmente poder ser vista como a sua causa), a desobediência criminal não é mais do que a inevitável consequência da desastrosa erosão da competência e poder da polícia. As propostas para sondar a «mente criminosa», quer com testes de Rorschach quer através dos serviços de informações, tem um ar sinistro, mas também pertencem às técnicas de evasão. Um fluxo incessante de hipóteses sofisticadas acerca da mente – essa mais esquiva das propriedades do homem – o criminoso oculta o sólido facto de que ninguém é capaz de capturar o seu corpo, do mesmo modo que o hipotético pressuposto das «atitudes negativas latentes» dos polícias esconde o seu registo visivelmente negativo da solução de crimes .

A desobediência civil ocorre quando um significativo número de cidadãos se convence de que os canais normais da mudança já não funcionam, e as queixas não são ouvidas ou não se age quanto a elas, ou então, pelo contrário, quando o governo está prestes a mudar e embarcou e persiste em modos de acção cujas legalidade e constitucionalidade estão abertas a sérias dúvidas. Os casos são numerosos e sete anos de guerra não declarada no Vietname; a crescente influência dos serviços secretos nos assuntos públicos; ameaças abertas ou ligeiramente veladas às liberdades garantidas pela Primeira Emenda; tentativas de privar o Senado dos seus poderes constitucionais, seguidas da invasão do Camboja decidida pelo Presidente em claro desrespeito da Constituição, que exige a aprovação do congresso para iniciar uma guerra; para não mencionar a referência ainda mais assustadora do Vice-Presidente aos resistentes e dissidentes como «"abutres"... e "parasitas" [que] podemos permitir-nos apartar... da nossa sociedade sem mais arrependimento do que deveríamos sentir ao deitar fora maçãs podres de um barril» - uma referência que desafia não apenas as leis dos Estados Unidos mas também qualquer ordem legal. Por outras palavras, a desobediência civil pode ser adaptada à necessária e desejável mudança ou à necessária e desejável preservação ou restauro do status quo – à preservação de direitos garantidos pela Primeira Emenda, ou ao restauro do adequado equilíbrio de poderes no governo, que é posto em perigo pelo ramo executivo e também pelo enorme crescimento do poder federal à custa dos direitos dos estados. Em nenhum desses casos pode a desobediência civil ser considerada igual à desobediência criminal.

Há toda a diferença do mundo entre o criminoso que evita o olhar do público e o participante na desobediência civil que toma a lei nas suas próprias mãos em aberta provocação. Esta distinção entre uma violação aberta da lei, efetuada em público, e uma violação clandestina só pode ser descurada por preconceito ou má vontade. E hoje reconhecido por todos os escritores sérios que abordam o tema e é claramente a condição primordial para todas as tentativas que defendem a compatibilidade da desobediência civil com a lei e as instituições americanas de governo. Além disso, o violador comum da lei, mesmo que pertença a uma organização criminosa, age para o seu próprio benefício, apenas; recusa ser dominado pelo consentimento de todos os outros e cede apenas à violência das entidades que obrigam a cumprir a lei. O participante na desobediência civil, embora esteja habitualmente em desacordo com uma maioria, age em nome e para bem de um grupo; desafia a lei e as autoridades estabelecidas com o fundamento de um desacordo básico e não porque, como indivíduo, deseja criar uma excepção para si e sair impune. Se o grupo a que pertence é signiticativo em número e posição, é-se tentado a classifica-lo como membro de uma das «maiorias concorrentes» de John C. Calhoun, Ou seja, secções da população que são unânimes no seu desacordo. O termo, infelizmente, esta manchado por argumentos pró-escravatura e racistas e, em Disquisition on Government, 0nde aparece, cobre apenas interesses, não opiniões ou convicções, de minorias que se sentem ameaçadas por «maiorias dominantes». De qualquer modo, o que importa é que estamos a lidar aqui com minorias organizadas que são demasiado importantes, e não apenas em número, mas em qualidade de opinião, para serem ignoradas com segurança. Porque Calhoun tinha certamente razão quando sustentava que em questões de grande importância nacional a «concorrência ou aquiescência das várias porções da comunidade» são um pré-requisito do governo constitucional. Pensar nas minorias desobedientes como rebeldes e traidoras vai contra a letra e o espírito de uma Constituição cujos criadores eram especialmente sensíveis aos perigos de uma incontida regra da maioria.

De todos os meios que os participantes na desobediência civil podem usar na linha da persuasão e da dramatização das questões, o único meio que pode justificar que se lhes chame «rebeldes» é a violência. Por isso, a segunda característica necessária geralmente aceite da desobediência civil é a não-violência, e decorre daí que «a desobediência civil não é revolução. (...) O participante na desobediência civil aceita  quadro da autoridade estabelecida e a legitimidade geral do sistema de leis, ao passo que o revolucionário os rejeita». Esta segunda distinção entre o revolucionário e o que desobedece, tão plausível à primeira vista, revela-se mais difícil de sustentar do que a distinção entre o participante na desobediência civil e o criminoso. O primeiro partilha com o revolucionário o desejo «de mudar o mundo», e a mudança que quer realizar pode ser drástica, de facto – como, por exemplo, no caso de Gandhi, que é sempre citado, neste contexto, como o grande exemplo da não-violência. (Será que Gandhi aceitava o «quadro da autoridade estabelecida», que era a lei britânica na Índia? Respeitava a «legitimidade geral do sistema de leis» da colónia?)

* Exemplos horríveis desta verdade foram apresentados durame o chamado «Julgamento de Auschwitz», na Alemanha, cujas actas podem ser encontradas em Bernd Naumann, Auschwitz, Nova Iorque, 1966. Os acusados eram «um mero punhado de casos abomináveis», selecionados entre cerca de 2000 homens da SS em serviço nos campos entre 1940 e 1945. Todos eles foram acusados de homicídio, o único crime que em 1963, quando o julgamento começou, não estava coberto pela prescrição. Auschwitz foi o campo do extermínio sistemático, mas as atrocidades que quase todos os acusados tinham cometido nada tinham que ver com a ordem para a «solução final»; os seus crimes eram puníveis pela lei nazi e em alguns cases, raros, os perpetradores foram de facto punidos pelo governo nazi. Esses acusados não tinham sido especialmente selecionados para prestar serviço num campo de extermínio; a razão por que tinham vindo para Auschwitz era apenas não serem aptos para o serviço militar. Quase nenhum deles tinha registo criminal de qualquer espécie, e nenhum tinha uma história de sadismo e homicídio. Antes de terem vindo para Auschwitz e durante os dezoito anos que tinham vivido na Alemanha do pós-guerra, tinham sido cidadãos respeitáveis e respeitados, indistinguíveis dos seus vizinhos.

("Desobediência Civil", Hannah Arendt. Relógio D’Água, 2017) 

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