Uma pequena estória sobre a censura do fascismo português, publicada pelo Jornal de Notícias por ocasião da morte do seu antigo director, o jornalista Manuel Ramos, ocorrida no dia 8 de Novembro de 2006. A que se juntam duas pequenas crónicas do jornalista e poeta Manuel António Pina que, no seu estilo peculiar, denuncia os falsos democratas que, de uma maneira ou de outra, assumiram a herança do fascismo ou, não deixando de colaborar, tentam apagar o passado tenebroso.
A “hora dos coronéis” chegava depois do
jantar. O militar de plantão nas instalações dos Serviços de Censura, à Rua de
Santa Catarina, telefonava pontualmente às 21 horas e Manuel Ramos fazia
questão de ser ele a atender, embora quem o conhecesse soubesse que paciência
evangélica era virtude que ele não cultivava.
“Notícias sobre o almirante Tenreiro são para
cortar” – dizia o coronel do lado de lá do telefone. “Para cortar, senhor
coronel? Então, já não se pode falar de um homem que tantos serviços tem
prestado à Pátria?”, repontava Manuel Ramos, do lado de cá, em ar de gozo. “E
também estão proibidas notícias sobre suicídios”, informava, noutra altura, o
coronel. E Manuel Ramos escrevia nas suas notas diárias: “A Censura proibiu os
suicídios em Portugal”…
São aos milhares as notas de Censura que ainda
existem no Centro de Documentação do “Jornal de Notícias”. Como a desobediência
nestes casos era crime e podia dar azo a julgamento em Tribunal Plenário, outro
remédio não havia senão seguir à risca as “ordens dos coronéis”, que não se
limitavam a dá-las pelo telefone. Todos os dias, o Maciel, contínuo da
Redacção, ia a Santa Catarina levar as prosas para os censores poderem cortar,
com lápis vermelho – em Lisboa, o lápis era azul – os extractos que eles considerassem
não estarem de acordo com os cânones do regime. E invariavelmente os cortes
deixavam as notícias sem qualquer sentido… Manuel Ramos, que sempre foi um
homem da Oposição, ficava vermelho de raiva com todos estes disparates. Também
no Centro de Documentação do JN há milhares de notícias arquivadas com o selo
dos coronéis. E quanto à guerra colonial, que mobilizou milhares de jovens para
as antigas colónias, nem pensar: Daqui apenas podia dar-se à estampa as notas
oficiais que, normalmente, só contemplavam o número de mortes e feridos. Mas
não se fazia, então, as notícias? Manuel Ramos, neste particular era
inflexível: “Nós escrevemos; eles que cortem se quiserem”, sentenciava.
In “JN”,
09/11/2006
Assim se faz a história
Pedro Moutinho, líder da Juventude
Popular/CDS/PP, é um jovem voluntarioso e irá, ninguém tenha dúvidas, longe no
partido. Não lhe falta, como a Portas, “frontalidade” e convicção,
independentemente do facto, despiciendo, de aquilo que diz ser ou não verdade.
Qualquer jovem candidato a político sabe que o que importa, em política, não é
o que se diz, mas o modo convicto como se diz. Para isso servem as
"jotas", para "formação". E se Portas pode, sem pestanejar,
dizer que as cópias que trouxe para casa de documentação que se encontrava no
Ministério da Defesa eram só inocentes "notas pessoais" (61893
páginas de “notas pessoais”), porque não pode um aprendiz de Portas
"apontar com frontalidade" como um dos responsáveis pelos “sequestros
e incêndios às sedes do CDS-PP logo após a revolução de Abril de 1974” o
dirigente comunista Bernardino Soares que, à época, tinha quatro tenros anos de
idade?
Toda a gente sabe que os comunistas comem
criancinhas e que as criancinhas comunistas andam por aí, como o "Baby
Herman" de “Roger Rabitt”, de fraldas e charuto, apalpando “baby sitters”
e incendiando sedes do CDS. Moutinho estava lá e viu tudo, apesar de só ter
nascido oito anos depois. É assim que tem que se escrever a História de
Portugal, "com frontalidade".
(Manuel António Pina, “Por outras palavras”,
“JN”, 28/11/2007)
Um negócio obsceno
Os 38 apartamentos de luxo construídos no
edifício que foi a sede da PIDE, em Lisboa ("um edifício com
história" que, diz a imobiliária, se mostra "novamente orgulhoso da
sua herança ") estão a ser vendidos convidando os compradores a
"reviver tempos de esplendor" e um passado de "luzes a
reflectirem-se nas pratas do aparador e nas vestes de gala de cavaleiros e
damas".
A suja história de sangue e horror do edifício
e os gritos de dor de milhares de portugueses que as "velhas e nobres
paredes com um metro de espessura" abafavam, são agora, pelo turvo milagre
da usura, uma memória doirada, transbordante de festas e de bodas, e de duques,
príncipes e embaixadores. Num país onde o dinheiro compra tudo, até a memória
colectiva, os antigos torturadores tornaram-se "copeiros e gentis
homens" ao serviço de ricaços e recém-chegados ansiosos por reconhecimento.
Bem pode o poeta clamar que "com usura
homem algum terá casa de boa pedra" e que "com usura, pecado contra a
natureza/ sempre teu pão será rançosa côdea"; os usurários não têm
pesadelos nem temem fantasmas. O esquecimento é o seu "estilo de
vida".
(de Manuel António Pina, “Por outras palavras”, in JN , 20/03/2009)
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