quinta-feira, 18 de abril de 2024

Estórias do fascismo português

Uma pequena estória sobre a censura do fascismo português, publicada pelo Jornal de Notícias por ocasião da morte do seu antigo director, o jornalista Manuel Ramos, ocorrida no dia 8 de Novembro de 2006. A que se juntam duas pequenas crónicas do jornalista e poeta Manuel António Pina que, no seu estilo peculiar, denuncia os falsos democratas que, de uma maneira ou de outra, assumiram a herança do fascismo ou, não deixando de colaborar, tentam apagar o passado tenebroso.

A “hora dos coronéis” chegava depois do jantar. O militar de plantão nas instalações dos Serviços de Censura, à Rua de Santa Catarina, telefonava pontualmente às 21 horas e Manuel Ramos fazia questão de ser ele a atender, embora quem o conhecesse soubesse que paciência evangélica era virtude que ele não cultivava.

“Notícias sobre o almirante Tenreiro são para cortar” – dizia o coronel do lado de lá do telefone. “Para cortar, senhor coronel? Então, já não se pode falar de um homem que tantos serviços tem prestado à Pátria?”, repontava Manuel Ramos, do lado de cá, em ar de gozo. “E também estão proibidas notícias sobre suicídios”, informava, noutra altura, o coronel. E Manuel Ramos escrevia nas suas notas diárias: “A Censura proibiu os suicídios em Portugal”…

São aos milhares as notas de Censura que ainda existem no Centro de Documentação do “Jornal de Notícias”. Como a desobediência nestes casos era crime e podia dar azo a julgamento em Tribunal Plenário, outro remédio não havia senão seguir à risca as “ordens dos coronéis”, que não se limitavam a dá-las pelo telefone. Todos os dias, o Maciel, contínuo da Redacção, ia a Santa Catarina levar as prosas para os censores poderem cortar, com lápis vermelho – em Lisboa, o lápis era azul – os extractos que eles considerassem não estarem de acordo com os cânones do regime. E invariavelmente os cortes deixavam as notícias sem qualquer sentido… Manuel Ramos, que sempre foi um homem da Oposição, ficava vermelho de raiva com todos estes disparates. Também no Centro de Documentação do JN há milhares de notícias arquivadas com o selo dos coronéis. E quanto à guerra colonial, que mobilizou milhares de jovens para as antigas colónias, nem pensar: Daqui apenas podia dar-se à estampa as notas oficiais que, normalmente, só contemplavam o número de mortes e feridos. Mas não se fazia, então, as notícias? Manuel Ramos, neste particular era inflexível: “Nós escrevemos; eles que cortem se quiserem”, sentenciava.

In “JN”, 09/11/2006

“Salazar – Agora, na hora da sua morte” de João Paulo Correia e Miguel Rocha

Assim se faz a história

Pedro Moutinho, líder da Juventude Popular/CDS/PP, é um jovem voluntarioso e irá, ninguém tenha dúvidas, longe no partido. Não lhe falta, como a Portas, “frontalidade” e convicção, independentemente do facto, despiciendo, de aquilo que diz ser ou não verdade. Qualquer jovem candidato a político sabe que o que importa, em política, não é o que se diz, mas o modo convicto como se diz. Para isso servem as "jotas", para "formação". E se Portas pode, sem pestanejar, dizer que as cópias que trouxe para casa de documentação que se encontrava no Ministério da Defesa eram só inocentes "notas pessoais" (61893 páginas de “notas pessoais”), porque não pode um aprendiz de Portas "apontar com frontalidade" como um dos responsáveis pelos “sequestros e incêndios às sedes do CDS-PP logo após a revolução de Abril de 1974” o dirigente comunista Bernardino Soares que, à época, tinha quatro tenros anos de idade?

Toda a gente sabe que os comunistas comem criancinhas e que as criancinhas comunistas andam por aí, como o "Baby Herman" de “Roger Rabitt”, de fraldas e charuto, apalpando “baby sitters” e incendiando sedes do CDS. Moutinho estava lá e viu tudo, apesar de só ter nascido oito anos depois. É assim que tem que se escrever a História de Portugal, "com frontalidade".

(Manuel António Pina, “Por outras palavras”, “JN”, 28/11/2007)

Um negócio obsceno

Os 38 apartamentos de luxo construídos no edifício que foi a sede da PIDE, em Lisboa ("um edifício com história" que, diz a imobiliária, se mostra "novamente orgulhoso da sua herança ") estão a ser vendidos convidando os compradores a "reviver tempos de esplendor" e um passado de "luzes a reflectirem-se nas pratas do aparador e nas vestes de gala de cavaleiros e damas".

A suja história de sangue e horror do edifício e os gritos de dor de milhares de portugueses que as "velhas e nobres paredes com um metro de espessura" abafavam, são agora, pelo turvo milagre da usura, uma memória doirada, transbordante de festas e de bodas, e de duques, príncipes e embaixadores. Num país onde o dinheiro compra tudo, até a memória colectiva, os antigos torturadores tornaram-se "copeiros e gentis homens" ao serviço de ricaços e recém-chegados ansiosos por reconhecimento.

Bem pode o poeta clamar que "com usura homem algum terá casa de boa pedra" e que "com usura, pecado contra a natureza/ sempre teu pão será rançosa côdea"; os usurários não têm pesadelos nem temem fantasmas. O esquecimento é o seu "estilo de vida".

(de Manuel António Pina, “Por outras palavras”, in JN , 20/03/2009)

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