Ortega y Gasset
Quem manda no mundo?
A civilização europeia – repeti mais de uma vez – produziu automaticamente a rebelião das massas. No seu anverso, o facto desta rebelião apresenta um cariz óptimo, já o dissemos: a rebelião das massas e o crescimento fabuloso da vida humana no nosso tempo são precisamente a mesma coisa. Mas o reverso do mesmo fenómeno é tremebundo; vista por essa face a rebelião das massas identifica-se totalmente com a desmoralização radical da humanidade. Vejamos agora esta a partir de novos pontos de vista.
*
A substância ou ídolo de uma época histórica
resulta de variações internas – do homem e do seu espírito – ou externas – formais
ou como que mecânicas. Entre estas últimas, a mais importante, quase sem
dúvida, é a movimentação do poder. Mas este traz consigo uma movimentação do
espírito.
Por isso, ao assomarmos a um tempo com ânimo
de o compreendermos, umas das nossas primeiras perguntas deve ser esta: «Quem
manda no mundo nessa altura?» Poderá ocorrer que nessa altura a humanidade
esteja dispersa em vários troços sem comunicação entre si, que formem mundos
interiores e independentes. No tempo de Milcíades, o mundo mediterrânico
ignorava a existência do mundo extremo-oriental. Em tais casos teríamos que
endereçar a nossa pergunta «Quem manda no mundo?» a todos os grupos de
convivência. Mas a humanidade entrou toda, desde o século XVI, num processo
gigantesco de unificação que nos nossos dias chegou ao seu termo insuperável.
Já não há um troço de humanidade que viva à parte – não há ilhas de humanidade.
Portanto, pode dizer-se desde aquele século que quem manda no mundo exerce, de
facto, a sua influência autoritária em todo ele. Tal foi o papel do grupo
homogéneo formado pelos povos europeus durante três séculos. A Europa mandava
e, sob a sua unidade de mando, o mundo vivia com um estilo unitário, ou pelo
menos progressivamente unificado.
Costuma denominar-se este estilo de vida de
«Idade Moderna», nome cinzento e inexpressivo sob o qual se oculta esta
realidade: a época da hegemonia europeia.
Por «mando» não se entende aqui
primordialmente exercício de poder material, de coacção física. Porque aqui
pretendemos evitar estupidezes; pelo menos as maiores e mais patentes. Ora bem:
essa relação estável e normal entre homens que se chama «mando» não se apoia
nunca na força, antes pelo contrário;
porque um homem ou grupo de homens exerce o mando, tem à sua disposição esse
aparelho ou máquina social que se chama «força». Os casos em que à primeira
vista parece ser a força o fundamento do comando, revelam-se, perante uma
inspecção ulterior, como os melhores exemplos para confirmar aquela tese.
Napoleão dirigiu uma agressão a Espanha, susteve esta agressão durante algum tempo,
mas propriamente nem um só dia mandou em Espanha. E isso apesar de ter a força
e precisamente porque tinha só a força. Convém distinguir entre um facto ou
processo de agressão e uma situação de comando. O comando é o exercício normal
da autoridade. Este baseia-se sempre na opinião pública – sempre, hoje como há
dez mil anos, entre os Ingleses como entre os Botocudos. Nunca ninguém mandou
na terra alimentando o seu mando essencialmente com outra coisa que não seja a
opinião pública.
Ou julga-se que a soberania da opinião pública
foi uma invenção feita pelo advogado Danton em 1789 ou por São Tomás de Aquino
no século XIII? A noção dessa soberania terá sido descoberta aqui ou além,
nesta data ou noutra; mas o facto de a
opinião pública ser a força radical que nas sociedades humanas produz o
fenómeno de mandar, é coisa tão antiga e perene como o próprio homem. Assim, a
gravitação é, na física de Newton, a força que produz o movimento. E a lei da
opinião pública é a gravitação universal da história política. Sem ela, nem a
ciência histórica seria possível. Por isso Hume sugere muito acutilantemente
que o tema da história consiste em demonstrar como a soberania da opinião
pública, longe de ser uma aspiração utópica, é o que sempre e a toda a hora
pesou nas sociedades humanas. Pois até quem pretende governar com os janízaros
depende da opinião destes e da que sobre eles tiverem os outros habitantes.
A verdade é que não se manda com os janízaros.
Assim, Talleyrand a Napoleão: «Com as baionetas, sire, pode-se fazer tudo menos
uma coisa: sentarmo-nos nelas.» E mandar não é gesto de arrebatar o poder, mas
o seu calmo exercício. Em suma, mandar é sentar-se. Trono, cadeira, curul,
banco azul, poltrona ministerial, sede. Contra o que supõe a óptica inocente e
folhetinesca, o mando não é tanto questão de punhos quanto de nádegas bem
assentes. O estado é, em definitivo, o estado da opinião: uma situação de
equilíbrio, de estática.
O que se passa é que às vezes a opinião
pública não existe. Uma sociedade dividida em grupos discrepantes, cuja força de
opinião fica reciprocamente anulada, não dá lugar a que se constitua um mando.
E como a Natureza tem horror ao vazio, esse vazio deixado pela força ausente de
opinião, enche-se com a força bruta. Quando muito, pois, esta adianta-se como
substituto daquela.
Por isso, se se quiser exprimir com toda a
precisão a lei da opinião pública como lei de gravitação histórica, convém ter em
conta esses casos de ausência e, então, chega-se a uma fórmula que é o
conhecido, venerável e verídico lugar-comum: não se pode mandar contra a
opinião pública.
Isto leva a darmo-nos conta de que o mando
significa prepotência de uma opinião; portanto, de um espírito; que o mando não
é, em última análise, outra coisa senão poder espiritual. Os factos históricos
confirmam isto escrupulosamente. Todo o mando primitivo tem um carácter
«sacro», porque se funda no religioso, e o religioso é a primeira forma sob a
qual aparece sempre o que depois será espírito, ideia, opinião; em suma, o
imaterial e ultrafísico. Na Idade Média reproduz-se em formato maior o mesmo
fenómeno. O primeiro estado ou poder público que se forma na Europa é a Igreja,
com o seu carácter específico e já nominativo de «poder espiritual». Da Igreja
aprende o poder político que, também ele, não é originariamente mais do que
poder espiritual, vigência de determinadas ideias, e cria-se o Sacro Império Romano.
Deste modo lutam dois poderes igualmente espirituais que, não podendo
diferenciar-se na substância – os dois são espírito – chegam ao acordo de se
instalar cada um num modo do tempo: o temporal e o eterno. Poder temporal e
poder religioso são identicamente espirituais; mas um é espírito do tempo – opinião
pública intramundana e cambiante – ao passo que o outro é espírito de
eternidade – a opinião de Deus, a que Deus tem sobre o homem e seus destinos.
Tanto faz, pois, dizer: em tal data manda o
homem, tal povo ou tal grupo homogéneo de povos, como dizer: em tal data
predomina no mundo tal sistema de opiniões – ideias, preferências, aspirações,
propósitos.
Como deve entender-se este predomínio? A maior
parte dos homens não tem opinião, e é preciso que esta lhe venha de fora à
pressão, como o lubrificante entra nas máquinas. Por isso é preciso que o
espírito – seja ele qual for – tenha poder e o exerça, para que as pessoas que
não opinam – e são a maioria – opinem. Sem opiniões, a convivência humana seria
o caos; menos ainda: o nada histórico. Sem opiniões a vida dos homens careceria
de arquitectura, de organicidade. Por isso, sem poder espiritual, sem alguém
que mande, e na medida em que isso faltar, o caos reina na humanidade. E,
paralelamente, toda a movimentação de poder, toda a mudança de quem
impera, é ao mesmo tempo uma mudança de opiniões e, consequentemente, nada mais
nada menos que uma mudança de gravitação histórica.
Voltemos agora ao começo. Durante vários
séculos mandou no mundo a Europa, um conglomerado de povos com espírito afim.
Na Idade Média não mandava ninguém no mundo temporal. Foi o que se passou em
todas as idades médias da história. Por isso representam sempre um caos relativo
e uma relativa barbárie, um défice de opinião. São tempos em que se ama, se
odeia, se anseia, se repugna, e tudo em grande escala. Mas, por outro lado,
opina-se pouco. Tempos assim não carecem de encanto. Mas, nos tempos grandes, é
da opinião que vive a humanidade, e por isso há ordem. Do outro lado da Idade
Média, encontramos novamente uma época em que, como na Moderna, alguém manda,
se bem que numa porção demarcada do mundo: Roma, a grande mandona. Ela pôs
ordem no Mediterrâneo e arredores.
Nestas jornadas do pós-guerra começa-se a
dizer que a Europa já não manda no mundo. Apercebemo-nos de toda a gravidade
deste diagnóstico? Com ele anuncia-se uma movimentação do poder. Para onde se
dirige? Quem vai suceder à Europa no mando do mundo? Mas estamos seguros que
lhe vai suceder alguém? E se não fosse ninguém, que aconteceria?
“A Rebelião das Massas”. Ortega y Gasset, 1930
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