quinta-feira, 21 de abril de 2022

A REBELIÃO DAS MASSAS

 

Ortega y Gasset

Quem manda no mundo?


A civilização europeia – repeti mais de uma vez – produziu automaticamente a rebelião das massas. No seu anverso, o facto desta rebelião apresenta um cariz óptimo, já o dissemos: a rebelião das massas e o crescimento fabuloso da vida humana no nosso tempo são precisamente a mesma coisa. Mas o reverso do mesmo fenómeno é tremebundo; vista por essa face a rebelião das massas identifica-se totalmente com a desmoralização radical da humanidade. Vejamos agora esta a partir de novos pontos de vista.

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A substância ou ídolo de uma época histórica resulta de variações internas – do homem e do seu espírito – ou externas – formais ou como que mecânicas. Entre estas últimas, a mais importante, quase sem dúvida, é a movimentação do poder. Mas este traz consigo uma movimentação do espírito.

Por isso, ao assomarmos a um tempo com ânimo de o compreendermos, umas das nossas primeiras perguntas deve ser esta: «Quem manda no mundo nessa altura?» Poderá ocorrer que nessa altura a humanidade esteja dispersa em vários troços sem comunicação entre si, que formem mundos interiores e independentes. No tempo de Milcíades, o mundo mediterrânico ignorava a existência do mundo extremo-oriental. Em tais casos teríamos que endereçar a nossa pergunta «Quem manda no mundo?» a todos os grupos de convivência. Mas a humanidade entrou toda, desde o século XVI, num processo gigantesco de unificação que nos nossos dias chegou ao seu termo insuperável. Já não há um troço de humanidade que viva à parte – não há ilhas de humanidade. Portanto, pode dizer-se desde aquele século que quem manda no mundo exerce, de facto, a sua influência autoritária em todo ele. Tal foi o papel do grupo homogéneo formado pelos povos europeus durante três séculos. A Europa mandava e, sob a sua unidade de mando, o mundo vivia com um estilo unitário, ou pelo menos progressivamente unificado.

Costuma denominar-se este estilo de vida de «Idade Moderna», nome cinzento e inexpressivo sob o qual se oculta esta realidade: a época da hegemonia europeia.

Por «mando» não se entende aqui primordialmente exercício de poder material, de coacção física. Porque aqui pretendemos evitar estupidezes; pelo menos as maiores e mais patentes. Ora bem: essa relação estável e normal entre homens que se chama «mando» não se apoia nunca na força, antes  pelo contrário; porque um homem ou grupo de homens exerce o mando, tem à sua disposição esse aparelho ou máquina social que se chama «força». Os casos em que à primeira vista parece ser a força o fundamento do comando, revelam-se, perante uma inspecção ulterior, como os melhores exemplos para confirmar aquela tese. Napoleão dirigiu uma agressão a Espanha, susteve esta agressão durante algum tempo, mas propriamente nem um só dia mandou em Espanha. E isso apesar de ter a força e precisamente porque tinha só a força. Convém distinguir entre um facto ou processo de agressão e uma situação de comando. O comando é o exercício normal da autoridade. Este baseia-se sempre na opinião pública – sempre, hoje como há dez mil anos, entre os Ingleses como entre os Botocudos. Nunca ninguém mandou na terra alimentando o seu mando essencialmente com outra coisa que não seja a opinião pública.

Ou julga-se que a soberania da opinião pública foi uma invenção feita pelo advogado Danton em 1789 ou por São Tomás de Aquino no século XIII? A noção dessa soberania terá sido descoberta aqui ou além, nesta data ou noutra; mas o  facto de a opinião pública ser a força radical que nas sociedades humanas produz o fenómeno de mandar, é coisa tão antiga e perene como o próprio homem. Assim, a gravitação é, na física de Newton, a força que produz o movimento. E a lei da opinião pública é a gravitação universal da história política. Sem ela, nem a ciência histórica seria possível. Por isso Hume sugere muito acutilantemente que o tema da história consiste em demonstrar como a soberania da opinião pública, longe de ser uma aspiração utópica, é o que sempre e a toda a hora pesou nas sociedades humanas. Pois até quem pretende governar com os janízaros depende da opinião destes e da que sobre eles tiverem os outros habitantes.

A verdade é que não se manda com os janízaros. Assim, Talleyrand a Napoleão: «Com as baionetas, sire, pode-se fazer tudo menos uma coisa: sentarmo-nos nelas.» E mandar não é gesto de arrebatar o poder, mas o seu calmo exercício. Em suma, mandar é sentar-se. Trono, cadeira, curul, banco azul, poltrona ministerial, sede. Contra o que supõe a óptica inocente e folhetinesca, o mando não é tanto questão de punhos quanto de nádegas bem assentes. O estado é, em definitivo, o estado da opinião: uma situação de equilíbrio, de estática.

O que se passa é que às vezes a opinião pública não existe. Uma sociedade dividida em grupos discrepantes, cuja força de opinião fica reciprocamente anulada, não dá lugar a que se constitua um mando. E como a Natureza tem horror ao vazio, esse vazio deixado pela força ausente de opinião, enche-se com a força bruta. Quando muito, pois, esta adianta-se como substituto daquela.

Por isso, se se quiser exprimir com toda a precisão a lei da opinião pública como lei de gravitação histórica, convém ter em conta esses casos de ausência e, então, chega-se a uma fórmula que é o conhecido, venerável e verídico lugar-comum: não se pode mandar contra a opinião pública.

Isto leva a darmo-nos conta de que o mando significa prepotência de uma opinião; portanto, de um espírito; que o mando não é, em última análise, outra coisa senão poder espiritual. Os factos históricos confirmam isto escrupulosamente. Todo o mando primitivo tem um carácter «sacro», porque se funda no religioso, e o religioso é a primeira forma sob a qual aparece sempre o que depois será espírito, ideia, opinião; em suma, o imaterial e ultrafísico. Na Idade Média reproduz-se em formato maior o mesmo fenómeno. O primeiro estado ou poder público que se forma na Europa é a Igreja, com o seu carácter específico e já nominativo de «poder espiritual». Da Igreja aprende o poder político que, também ele, não é originariamente mais do que poder espiritual, vigência de determinadas ideias, e cria-se o Sacro Império Romano. Deste modo lutam dois poderes igualmente espirituais que, não podendo diferenciar-se na substância – os dois são espírito – chegam ao acordo de se instalar cada um num modo do tempo: o temporal e o eterno. Poder temporal e poder religioso são identicamente espirituais; mas um é espírito do tempo – opinião pública intramundana e cambiante – ao passo que o outro é espírito de eternidade – a opinião de Deus, a que Deus tem sobre o homem e seus destinos.

Tanto faz, pois, dizer: em tal data manda o homem, tal povo ou tal grupo homogéneo de povos, como dizer: em tal data predomina no mundo tal sistema de opiniões – ideias, preferências, aspirações, propósitos.

Como deve entender-se este predomínio? A maior parte dos homens não tem opinião, e é preciso que esta lhe venha de fora à pressão, como o lubrificante entra nas máquinas. Por isso é preciso que o espírito – seja ele qual for – tenha poder e o exerça, para que as pessoas que não opinam – e são a maioria – opinem. Sem opiniões, a convivência humana seria o caos; menos ainda: o nada histórico. Sem opiniões a vida dos homens careceria de arquitectura, de organicidade. Por isso, sem poder espiritual, sem alguém que mande, e na medida em que isso faltar, o caos reina na humanidade. E, paralelamente, toda a movimentação de poder, toda a mudança de quem impera, é ao mesmo tempo uma mudança de opiniões e, consequentemente, nada mais nada menos que uma mudança de gravitação histórica.

Voltemos agora ao começo. Durante vários séculos mandou no mundo a Europa, um conglomerado de povos com espírito afim. Na Idade Média não mandava ninguém no mundo temporal. Foi o que se passou em todas as idades médias da história. Por isso representam sempre um caos relativo e uma relativa barbárie, um défice de opinião. São tempos em que se ama, se odeia, se anseia, se repugna, e tudo em grande escala. Mas, por outro lado, opina-se pouco. Tempos assim não carecem de encanto. Mas, nos tempos grandes, é da opinião que vive a humanidade, e por isso há ordem. Do outro lado da Idade Média, encontramos novamente uma época em que, como na Moderna, alguém manda, se bem que numa porção demarcada do mundo: Roma, a grande mandona. Ela pôs ordem no Mediterrâneo e arredores.

Nestas jornadas do pós-guerra começa-se a dizer que a Europa já não manda no mundo. Apercebemo-nos de toda a gravidade deste diagnóstico? Com ele anuncia-se uma movimentação do poder. Para onde se dirige? Quem vai suceder à Europa no mando do mundo? Mas estamos seguros que lhe vai suceder alguém? E se não fosse ninguém, que aconteceria?

“A Rebelião das Massas”. Ortega y Gasset, 1930

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