quinta-feira, 14 de abril de 2022

Estado de exceção e guerra civil

Goya, gravura da série “Desastres de la guerra”

Giorgio Agamben

Em livro publicado há alguns anos, Stasis. A guerra civil como paradigma político, procurei mostrar que na Grécia clássica a possibilidade - sublinho o termo "possibilidade" - da guerra civil funcionar como um limiar de politização entre o oikos e a polis, sem a qual a vida política teria sido inconcebível. Sem estase, a posição dos cidadãos na forma extrema de dissidência, a polis não é mais tal. Esta ligação constitutiva entre a stasis e a política era tão inevitável que mesmo no pensador que parecia ter baseado sua concepção de política na exclusão da guerra civil, isto é, Hobbes, ela permanece virtualmente possível até o fim.
A hipótese que gostaria de propor é então que, se chegamos à situação de despolitização absoluta em que nos encontramos, é justamente porque a própria possibilidade de stasis nas últimas décadas foi progressivamente e completamente excluído da reflexão política, também pela sua identificação sub-reptícia com o terrorismo. Uma sociedade na qual se exclui a possibilidade de guerra civil, isto é, da forma extrema de dissidência, é uma sociedade que só pode resvalar para o totalitarismo. Chamo totalitário um pensamento que não contempla a possibilidade de enfrentar a forma extrema de dissidência, ou seja, um pensamento que só admite a possibilidade de consentimento. E não é por acaso que é justamente pela constituição do consenso como único critério da política que as democracias, como ensina a história, caíram no totalitarismo.

Como muitas vezes acontece, o que foi removido da consciência ressurge em formas patológicas e o que está acontecendo ao nosso redor hoje é que o esquecimento e a desatenção à stasis andam de mãos dadas, como Roman Schnur observou num dos poucos estudos sérios sobre o assunto, com o desenrolar de uma espécie de guerra civil mundial. Não se trata apenas do fato, embora não despercebido, de que as guerras, como os juristas e cientistas políticos já notavam há algum tempo, não são mais formalmente declaradas e, transformadas em operações policiais, adquirem as características que costumavam ser atribuídas às guerras civis... O factor decisivo hoje é que a guerra civil, ao fazer um sistema com o estado de excepção, se transforma assim em instrumento de governo.
Se analisarmos os decretos e os dispositivos postos em prática pelos governos nos últimos dois anos, fica claro que eles visam dividir os homens em dois grupos opostos, entre os quais se estabelece uma espécie de conflito inevitável. Infectados e saudáveis, vacinados e não vacinados, equipados com greenpass e sem greenpass, integrados na vida social ou dela excluídos: em todo o caso, a unidade entre os cidadãos, como acontece numa guerra civil, falhou. O que aconteceu diante de nossos olhos sem que percebamos é que as duas formas limite do direito e da política foram usadas sem escrúpulos como formas normais de governo. E enquanto na Grécia clássica, a stasis, na medida em que marcou uma interrupção da vida política, não poderia por nenhuma razão ser ocultada e transformada em norma, torna-se hoje, como o estado de exceção, o paradigma por excelência do governo dos homens.

04-09-2022

(intervenção da comissão DUPRE)

Em quodlibet

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