terça-feira, 13 de abril de 2021

O estado de excepção - Auctoritas e potestas

 

Roma - Manifestação de pequenos empresários contra o estado de emergência e o confinamento (Reuters)
por Giorgio Agamben

Do estado de excepção efectivo em que vivemos não é possível o regresso ao Estado de direito, visto que estão agora em questão os próprios conceitos de «estado» e de «direito»”

É talvez possível neste ponto virarmo-nos para trás e olhar o caminho percorrido até aqui para tirar alguma conclusão provisória da nossa indagação sobre o estado de excepção. O sistema jurídico do Ocidente apresenta-se como uma estrutura dupla, formada por dois elementos heterogéneos e, no entanto, coordenados: um, normativo, e jurídico em sentido estrito - que podemos aqui inscrever por comodidade na rubrica potestas - e outro, anómico e meta jurídico - a que podemos chamar auctoritas.

O elemento normativo precisa do anómico para poder aplicar-se mas, por outro lado, a auctoritas só pode afirmar-se numa relação de validação ou de suspensão da potestas. Enquanto decorre da dialéctica entre estes dois elementos em certa medida antagónicos, mas funcionalmente conexos, a vetusta morada do direito é frágil e na sua tensão para a manutenção da sua própria ordem está sempre já em processo de ruína e corrupção. O estado de excepção é o dispositivo que deve, em última instância, articular e manter unidos os dois aspectos da máquina jurídico-política, instituindo um limiar de indecidibilidade entre nomos e anomia, entre vida e direito, entre auctoritas e potestas. Funda-se sobre a ficção essencial pela qual a anomia - sob a forma da auctoritas, da lei viva ou da força-de-lei - ainda está em relação com a ordem jurídica e o poder de suspender a norma engrena directamente na vida. Enquanto os dois elementos permanecerem relacionados, mas conceptualmente, temporalmente e subjectivamente distintos - como na Roma republicana na oposição entre senado e povo ou na Europa medieval entre poder espiritual e poder temporal - a sua dialéctica - embora fundada numa ficção - pode ainda de algum modo funcionar. Mas quando tendem a coincidir numa só pessoa, quando o estado de excepção, em que ambas se ligam e se confundem, se torna a regra, então o sistema jurídico-político transforma-se numa máquina letal.

O objectivo desta indagação - sob a urgência do estado de excepção «em que vivemos» - era trazer à luz a ficção que governa este arcanum imperii por excelência do nosso tempo. Aquilo que a «arca» do poder contém no seu centro é o estado de excepção - mas este é essencialmente um espaço vazio, no qual uma acção humana sem relação com o direito tem defronte uma norma sem relação com a vida.

Isto não significa que a máquina, com o seu centro vazio, não seja eficaz; pelo contrário, aquilo que pretendemos mostrar foi precisamente que ela continuou a funcionar quase sem interrupção a partir da Primeira Guerra Mundial, passando pelo fascismo e o nacional-socialismo, até aos nossos dias. O estado de excepção alcançou mesmo, hoje, a sua máxima extensão planetária. O aspecto normativo do direito pode assim ser impunemente obliterado e contraditado por uma violência governamental que, ignorando, no estrangeiro, o direito internacional, e produzindo, no interior, um estado de excepção permanente, pretende todavia estar ainda a aplicar o direito.

Não se trata, naturalmente, de repôr o estado de excepção dentro dos seus limites temporal e espacialmente definidos, para reafirmar o primado de uma norma e de direitos que, em última instância, têm nele o seu próprio fundamento. Do estado de excepção efectivo em que vivemos não é possível o regresso ao Estado de direito, visto que estão agora em questão os próprios conceitos de «estado» e de «direito». Mas se é possível tentar deter a máquina, expôr a sua ficção central, é porque entre violência e direito, entre a vida e a norma não há qualquer articulação substancial. Ao lado do movimento que procura mantê-los a todo o custo ligados, há um contra-movimento que, operando em sentido inverso no direito e na vida, procura sempre separar aquilo que foi artificial e violentamente ligado. Isto é, no campo de tensão da nossa cultura agem duas forças opostas: uma que institui e põe e outra que desactiva e depõe. O estado de excepção é o seu ponto de máxima tensão e, ao mesmo tempo, aquilo que, coincidindo com a regra, ameaça hoje torná-los indestrinçáveis. Viver no estado de excepção significa fazer a experiência de ambas estas possibilidades e, no entanto, separando sempre as duas forças, tentar incessantemente interromper o funcionamento da máquina que está a conduzir o Ocidente para a guerra mundial.

Auctoritas e potestas in “Estado de Excepção” de Giorgio Agamben, 2003

In Os Barbaros

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