Por Byung-Chul Han
CRISE DA LIBERDADE
Ditadura da transparência
O neo-liberalismo transforma o cidadão em
consumidor. A liberdade do cidadão cede ante a passividade do consumidor. O
votante, enquanto consumidor, não tem um interesse real pela política, pela
configuração ativa da comunidade. Não está disposto nem capacitado para a ação
política comum. Limita-se a reagir de forma passiva à política,
protestando e queixando-se, do mesmo modo que o consumidor perante as mercadorias
e os serviços que lhe desagradam. Os políticos e os partidos também seguem esta
lógica do consumo. Têm de fornecer. É assim que degradam em fornecedores
que têm de satisfazer os votantes enquanto consumidores ou clientes.
A transparência que se exige hoje
dos políticos é tudo menos uma reivindicação política. Não se exige
transparência perante os processos políticos de decisão, pelos quais
nenhum consumidor se interessa. O imperativo da transparência serve sobretudo
para expor os políticos, para os desmascarar, para os transformar em objeto de
escândalo. A reivindicação da transparência pressupõe a posição de um
espectador que se escandaliza. Não é a reivindicação de um cidadão com
iniciativa, mas a de um espectador passivo. A participação tem lugar sob a
forma de reclamação e de queixa. A sociedade da transparência, habitada por
espectadores e consumidores, funda uma democracia de espectadores.
A autodeterminação informativa é uma parte
essencial da liberdade. Já na sentença do Tribunal Constitucional da Alemanha
sobre o recenseamento nacional, em 1984, se afirma o seguinte:
Uma
ordem social e a respetiva ordem jurídica nas quais o cidadão não pudesse saber
quem são os que detêm saber a seu respeito, bem como o quê, quando e em que
ocasião tem lugar esse saber, seriam incompatíveis com o direito à autodeterminação
informativa.
Não obstante, tratava-se de uma época em
que se cria que era necessário encarar o Estado como uma instância de dominação
que arrebatava informação aos cidadãos contra a vontade destes. Essa época
ficou de há muito para trás. Hoje expomo-nos por completo sem qualquer tipo de
coação ou de prescrição. Prestamos na rede todo o tipo de dados e de
informações sem saber a quem, nem ao quê, nem em que ocasião ou que lugar cabe
esse saber a nosso respeito. Esta perda de controle representa uma crise da
liberdade que deve ser tomada a sério. Dados a quantidade e o tipo de informação
que são lançados indiscriminada e voluntariamente na rede, o conceito de
proteção de dados torna-se obsoleto.
Estamos a caminho da época da psicopolítica
digital. Avançamos na via que leva de uma vigilância passiva a um controle
ativo. O que nos precipita numa crise da liberdade de alcance máximo, pois que
afeta agora a própria vontade livre. O Big Data é um instrumento
psicopolítico extremamente eficaz que permite adquirir um conhecimento integral
da dinâmica inerente à sociedade da comunicação. Trata-se de um conhecimento
de dominação, que permite intervir na psique e condicioná-la a um nível
pré-reflexivo.
A abertura do futuro é constitutiva da
liberdade de ação. Todavia, o Big Data permite fazer prognósticos sobre
o comportamento humano. O futuro torna-se assim predizível e controlável. A
psicopolítica digital transforma a negatividade da decisão livre na positividade
de um estado de coisas. A própria pessoa positiviza-se em coisa –
quantificável, mensurável e controlável. Mas nenhuma coisa é livre. Sem margem
para dúvida, a coisa é mais transparente do que a pessoa. O Big Data
anuncia o fim da pessoa e da vontade livre.
Todos os dispositivos e todas as técnicas
de dominação engendram objetos de devoção que são introduzidos tendo em vista
submeter. Que materializam e estabilizam a dominação. "Devoto"
significa "submisso". O smartphone é um objeto digital de
devoção, ou até mesmo um objeto de devoção do digital em geral. Enquanto
aparelho de subjetivação funciona como o rosário, que é também, no seu manejo,
uma espécie de telemóvel. Um e outro servem para o exame e o controle de si. A
dominação aumenta a sua eficácia ao delegar em cada um a sua vigilância. O Gosto
é o ámen digital. Quando clicamos no Gosto, submetemo-nos a uma
estrutura de dominação. O smartphone é não só um aparelho de vigilância
eficaz, mas também um confessionário móvel. O Facebook é a igreja, a
sinagoga global (literalmente, a congregação) do digital.
PODER INTELIGENTE
O poder tem formas de manifestação muito
diferentes, A mais indireta e imediata exterioriza-se como negação da liberdade.
Esta toma os poderosos capazes de imporem a sua vontade também por meio da
violência contra a vontade dos submetidos ao poder. O poder não se limita,
contudo, a quebrar a resistência e a forçar à obediência: não tem de adquirir necessariamente
a forma de uma coação. O poder que depende da violência não representa o poder
supremo. O simples facto de que surja uma vontade e se oponha ao poderoso dá testemunho
da fraqueza do seu poder. O poder está precisamente aí onde não é tematizado.
Quanto maior é o poder, mais silenciosamente age. O poder sem
remeter em termos ruidosos para si próprio.
O poder pode, sem dúvida, exteriorizar-se
como violência ou repressão. Mas não é nesta que repousa. Não recorre
necessariamente à exclusão, à proibição, à censura. E não se opõe à liberdade.
Pode até usá-la. É só na sua forma negativa que o poder se manifesta como
violência negadora que quebra a vontade e nega a liberdade. Hoje o poder
adquire cada vez mais uma forma permissiva. Na sua permissividade, ou
até na sua amabilidade, depõe a sua negatividade e oferece-se como
liberdade.
O poder disciplinar é completamente
dominado pela negatividade. Articula-se de forma inibitória e não permissiva.
Devido à sua negatividade, o poder disciplinar não pode descrever o regime
neoliberal, no brilho da sua positividade. A técnica de poder própria do
neoliberalismo adquire uma forma subtil, flexível, inteligente e escapa a toda
a visibilidade. O sujeito submetido não tem sequer consciência da sua submissão.
A estrutura da dominação mantém-se totalmente oculta aos seus olhos. Daí que se
suponha livre.
Tolhendo os homens de forma violenta
através de preceitos e de proibições, o poder disciplinar é ineficaz. A técnica
de poder que cuida que os homens se submetam por si próprios às
estruturas da dominação é radicalmente mais eficaz. O seu propósito é ativar,
motivar, otimizar e não obstar ou submeter. A sua eficácia particular deve-se
ao facto de não agir proibindo e subtraindo, mas consentindo e satisfazendo. Em
vez de tomar os homens submissos, visa tomá-los dependentes.
O poder inteligente, amável, não opera
frontalmente contra a vontade dos sujeitos submetidos, mas antes orienta em seu
favor essa vontade. É mais afirmativo do que negador, mais sedutor do que
repressor. Esforça-se por gerar emoções positivas e por explorá-las. Seduz
em vez de proibir. Não enfrenta o sujeito, concede-lhe facilidades.
O poder inteligente adapta-se à psique em
vez de a disciplinar e submeter a coações e a proibições. Não nos impõe qualquer
forma de silêncio. Pelo contrário: exige que partilhemos, participemos,
comuniquemos as nossas opiniões, necessidades, desejos e preferências -ou seja,
que contemos as nossas vidas. Este poder amável é mais poderoso do que o
poder repressivo. Escapa a toda a visibilidade. A presente crise da liberdade
consiste em que estamos perante uma técnica de poder que não nega ou submete a
liberdade, mas antes a explora. A decisão livre é eliminada em favor da livre
escolha entre ofertas diversas.
O poder inteligente, que se mostra livre e
amável, que estimula e seduz, é mais eficaz do que o poder que classifica, ameaça
e prescreve. O clicar Gosto é o seu sinal. Submetemo-nos à estrutura do
poder consumindo e comunicando, ou até clicando Gosto. O neoliberalismo
é o capitalismo do "Gosto". Distingue-se substancialmente do
capitalismo do século xx, que operava por meio de coações e de proibições disciplinares.
O poder inteligente lê e avalia os nossos pensamentos conscientes e inconscientes. Aposta na organização e na otimização de si realizadas de modo voluntário. Não tem, assim, qualquer resistência a superar. Trata-se de uma dominação que não requer grande esforço, ou violência, uma vez que simplesmente sucede. Visa dominar procurando agradar e gerando dependências. A advertência seguinte é inerente ao capitalismo do Gosto: protege-me daquilo que quero.
O BIG BROTHER AMÁVEL
"Novilíngua" é a língua ideal no
Estado vigilante de Orwell. A sua missão é pôr totalmente de lado a "velha
língua". A novilíngua tem como único objetivo restringir o espaço do pensamento.
Todos os anos o número de palavras diminui, ao mesmo tempo que o espaço da
consciência se reduz. Syme, um amigo do protagonista Winston, entusiasma-se
pela beleza da aniquilação das palavras. Os delitos de pensamento deverão
tomar-se impossíveis através da eliminação do vocabulário da novilíngua das
palavras que a comissão desses delitos requer. Eliminar-se-á também, do mesmo
modo, o conceito de liberdade. Aqui encontramos já uma diferença de substância
em relação ao pan-ótico digital, que se caracteriza por um uso excessivo da
liberdade. O traço característico da atual sociedade de informação seria não a
eliminação, mas a multiplicação das palavras.
O espírito da Guerra Fria e a negatividade
da hostilidade dominam o romance de Orwell. O país está em estado de guerra
permanente. Julia, a amante de Winston, supõe que as bombas que caem
diariamente sobre Londres são lançadas pelo próprio partido do Big Brother
a fim de manter os homens subjugados pelo medo e pelo terror. O "inimigo
do povo" chama-se Ernrnanuel Goldstein. Dirige uma rede conspirativa que,
de forma clandestina, visa a queda do govemo. O Big Brother está em
guerra ideológica com Goldstein. Os ecrãs emitem os "dois minutos de
ódio"contra Goldstein. E no "Ministério da Verdade", que é na
realidade um ministério da mentira, o passado é submetido a um controle que o
adequa à ideologia. A psicotécnica aplicada no Estado vigilante de Orwell é a
lavagem do cérebro por meio de eletrochoques, a privação de sono, o isolamento,
as drogas e a tortura corporal. E o "Ministério da Abundância" (em novilíngua:
"Mindância") garante que não haja suficientes bens de consumo.
Engendra uma escassez artificial.
O Estado vigilante de Orwell, com os seus
ecrãs e as suas câmaras de tortura, distingue-se substancialmente do pan-ótico
digital, com a internet, o smartphone e o Google Glass, em
que dominam a aparência da liberdade da comunicação ilimitadas. Aqui não se
tortura, mas fazem-se tweets ou posts. Não existe qualquer
misterioso "Ministério da Verdade". A transparência e a informação
substituem a verdade. A nova conceção do poder não consiste no controle do passado,
mas no controle psicopolítico do futuro.
A técnica de poder do regime neoliberal não
é proibitiva, protetora ou repressiva, mas prospetiva, permissiva e projetiva.
O consumo não é reprimido, mas maximizado. Não se gera escassez, mas
abundância, ou até mesmo excesso de positividade. Somos encorajados a comunicar
e a consumir. O princípio da negatividade, que é constitutivo do Estado vigilante
de Orwell, cede o seu lugar ao princípio da positividade. As necessidades não
são reprimidas, mas estimuladas. Em vez de confissões extraídas por meio da
tortura, tem lugar uma exposição voluntária. O smartphone substitui a câmara
de tortura. O Big Brother tem uma aparência amável. A eficácia da sua
vigilância reside na sua amabilidade.
O Big Brother benthamiano é
invisível, mas omnipresente na cabeça dos reclusos. Estes interiorizaram-no. No
pan-ótico digital ninguém se sente realmente vigiado ou ameaçado. Daí que o
termo "Estado vigilante" não caracterize adequadamente o pan-ótico digital.
Neste, sentimo-nos livres. É precisamente esta liberdade sentida,
ausente no Estado vigilante de Orwell, que constitui um problema.
O pan-ótico digital serve-se da exposição
voluntária dos reclusos. A revelação de si e a auto-exploração seguem a mesma
lógica. A liberdade é objeto de exploração constante. No pan-ótico digital não
existe esse Big Brother que extrai de nós informações, contra a nossa
vontade. Somos nós, pelo contrário, que por nossa própria iniciativa nos
expomos e desnudamos.
No lendário anúncio da Apple que, em 1984,
cintilava no ecrã durante a Super Bowl, aquela aparece como uma figura libertadora
contra o Estado vigilante de Orwell. Numa grande sala, trabalhadores sem
vontade e apáticos escutam, olhando para o ecrã, o discurso fanático do Big
Brother. Uma mulher que corre irrompe na sala, perseguida pela polícia do pensamento.
Avança sem hesitar e transporta um grande martelo, que cinge contra os seios
bamboleantes. Carrega decididamente sobre o Big Brother e arremessa
ferozmente o martelo contra o ecrã que explode. Os homens despertam da sua
apatia. Ouve-se uma voz anunciar: " A 24 de janeiro, a Apple Computer
lançará o Macintosh. E verás então porque é que 1984 não será como 1984". Ao
contrário do que sustenta a mensagem da Apple, o ano de 1984 não assinala o fim
do Estado vigilante de Orwell, mas o começo de uma nova sociedade de controle
que supera sobejamente a sua eficiência. Comunicação e controle coincidem na
totalidade. Cada um de nós é o pan-ótico de si próprio.
O CAPITALISMO DA EMOÇÃO
(…)
Esta enumeração de referências a diversas
teorias sociológicas sobre a emoção deixa por explicar em absoluto a conjuntura
presente da emoção. Acresce que Illouz não opera qualquer distinção
conceptual entre sentimento, emoção e afeto. A "indiferença" e a
"culpa" não são sequer um afeto ou uma emoção. Somente teria sentido
falar do sentimento de culpa.
Illouz não consegue ver que a conjuntura
presente da emoção se deve, em última instância, ao neoliberalismo. O regime
neoliberal pressupõe as emoções como recursos para aumentar a produtividade e o
rendimento. A partir de um determinado nível de produção, a racionalidade,
que representa o meio da sociedade disciplinar, depara com os seus limites. A
racionalidade é percebida como coação, como obstáculo. De súbito, tem efeitos
rígidos e inflexíveis. Substituindo-a, entra em cena a emocionalidade,
que tem curso paralelamente ao sentimento de liberdade, da livre realização da
personalidade. Ser livre acaba por significar dar livre curso às emoções. O
capitalismo da emoção serve-se da liberdade. A emoção é celebrada como uma
expressão da subjetividade livre. A técnica de poder neoliberal explora essa subjetividade
livre.
A objetividade, a generalidade, bem como a
permanência são distintivas da racionalidade. Esta opõe-se, assim, à emocionalidade
que é subjetiva, situacional e volátil. As emoções surgem com a mudança dos
estados, com as mudanças da perceção. Pelo contrário, o curso da racionalidade
é paralelo à duração, à constância e à regularidade. Dá preferência às relações
estáveis. A economia neoliberal, que em vista do aumento da produção destrói
permanentemente a continuidade e constrói a instabilidade, impele a emocionalização
do processo produtivo. Do mesmo modo, a aceleração da comunicação favorece a
sua emocionalização, uma vez que a racionalidade é mais lenta do que a
emocionalidade. A racionalidade é, de certa maneira, sem velocidade. Daí
que o impulso acelerador conduza à ditadura da emoção.
O capitalismo do consumo introduz emoções
para estimular a compra e engendrar necessidades. O emotional design modela
emoções, configura modelos emocionais para maximizar o consumo. Em última
instância, hoje não consumimos coisas, mas sim emoções. As coisas não se podem
consumir infinitamente - as emoções, em contrapartida, sim. As emoções
estendem-se para lá do valor de uso. Com elas, abre-se um novo campo de consumo
cujo carácter é infinito.
Para o nosso funcionamento, na sociedade
disciplinar, as emoções são sobretudo um estorvo. Daí que seja necessário eliminá-las.
A "ortopedia concertada" da sociedade disciplinar visa criar uma
máquina sem sentimento a partir de uma massa informe. As máquinas funcionam
melhor quando se desconectam totalmente das emoções ou dos sentimentos.
Último aspeto, mas não menos importante: a
conjuntura presente da emoção está condicionada pelo novo modo de produção
imaterial, no qual a interação em termos de comunicação adquire permanentemente
maior importância. Hoje, não se procura apenas a competência cognitiva, mas
também a emocional. Devido a este desenvolvimento, emprega-se a totalidade
da pessoa no processo de produção. Nesta ordem de ideias, um documento da
Daimler-Chrysler declara:
Uma
vez que os elementos do comportamento assumem um papel importante no modo como
se cumprem, as avaliações correspondentes terão também em conta a competência social
e emocional do trabalhador39.
Hoje, exploram-se o social, a comunicação e
até mesmo o próprio comportamento. Empregam-se as emoções como "matérias-primas"
em vista da otimização da comunicação. A Hewlett-Packard, por exemplo,
é
uma empresa em que se respira um espírito de comunicação, um forte espírito de
inter-relacionamento, em que as pessoas comunicam e se aproximam umas das
outras. Trata-se de uma relação afectiva 40.
Está a produzir-se uma mudança de paradigma
ao nível da direção da empresa. As emoções são cada vez mais relevantes. Substituindo
a gestão racional, entra em cena a gestão emocional. O gestor
atual afasta-se do princípio do comportamento racional. Assemelha-se cada vez
mais a um orientador motivacional. A motivação está ligada à emoção. O movimento
associa-as. As emoções positivas são o fermento que permite o reforço da
motivação.
As emoções são performativas na medida em
que evocam ações determinadas. As emoções, enquanto inclinações, representam
a base energética e até mesmo sensorial da ação. São reguladas pelo sistema límbico,
que é também a sede dos impulsos. Constituem um nível pré-reflexivo,
semi-inconsciente, corporalmente instintivo da ação, do qual não temos consciência
explícita. A psicopolítica neoliberal apodera-se da emoção para exercer
influência sobre as ações a este nível pré-reflexivo. Atinge o fundo do
indivíduo através da emoção. Assim, a emoção representa um meio extremamente eficiente
de controle psicopolítico do indivíduo.
BIG DATA
O registo total da vida
Hoje, cada clicar de tecla e cada palavra que
introduzimos no motor de busca ficam registados. A totalidade da nossa vida é
objeto de reprodução na rede digital. O nosso hábito digital proporciona uma
representação extremamente exata da nossa pessoa, da nossa alma - uma
representação talvez mais precisa ou completa do que a imagem que fazemos de
nós próprios.
O número de endereços web é praticamente
ilimitado. Assim, torna-se possível dotar cada objeto de uso de um endereço na
internet. As coisas transformam-se por si próprias em fornecedores ativos
de informação. Informam sobre a nossa vida, sobre as nossas ocupações, sobre os
nossos hábitos. A extensão da internet das pessoas, web 2.0, à internet
das coisas, web 3.0, é o culminar da sociedade de controle digital. A web 3.0
torna possível um registo total da vida. São também vigiadas doravante as
coisas que usamos diariamente.
Estamos apanhados numa memória total de
tipo digital. O pan-ótico benthamiano é desprovido de um sistema de registo
eficaz. Existe apenas um "livro de normas" que regista as punições
efetuadas e os seus motivos. A vida dos presos não é registada. Com efeito,
permanece oculto para o Big Brother o que realmente os presos pensam ou
desejam. Por contraste com o Big Brother, que omite talvez demasiado, o Big
Data nada omite. O que basta para tornar o pan-ótico digital mais eficaz do
que o benthamiano.
Nas eleições americanas, o big data
e o data mining revelam-se como um ovo de Colombo. Os candidatos acedem
a uma visão de 360 graus sobre os eleitores. Recolhem-se enormes quantidades de
dados, que se comparam e inter-relacionam, permitindo produzir perfis muito
exatos. Acede-se assim uma imagem da vida privada e à própria psique dos
eleitores. Através da introdução do microtargeting, podem-se endereçar aos
eleitores mensagens personalizadas e, portanto, influenciá-los. O microtargeting
como práxis da microfísica do poder é uma psicopolítica movida por dados.
Do mesmo modo, os algoritmos inteligentes permitem fazer prognósticos sobre o comportamento
dos eleitores e otimizar a alocução. As alocuções individualizadas pouco se
distinguem dos anúncios personalizados. Votar e comprar, o Estado e o mercado,
o cidadão e o consumidor, assemelham-se cada vez mais. O microtargeting transforma-se
em práxis geral da psicopolítica.
O recenseamento demográfico, que representa
uma praxis biopolítica da sociedade disciplinar, fornece um material que se
pode explorar demográfica, mas não psicologicamente. A biopolítica
impede um acesso subtil à psique. A psicopolítica digital, pelo contrário, é
capaz de atingir processos psíquicos em termos prospetivos. Talvez seja muito
mais rápida do que a vontade livre. Pode antecipar-se-lhe. A capacidade de
prospeção da psicopolítica digital significaria o fim da liberdade 56.
O inconsciente digital
O Big Data talvez torne legíveis os
desejos dos quais não estamos explicitamente conscientes. Numa situação
concreta, podemos desenvolver inclinações que escapam à nossa consciência. É
frequente não sabermos sequer porque sentimos de súbito uma necessidade específica.
Há no facto de uma mulher, numa determinada semana da gravidez, sentir o desejo
de determinado produto uma correlação da qual ela não está consciente. A mulher
compra simplesmente o produto em causa sem saber porquê. Isso é assim.
Este isso-é-assim aproxima-se possivelmente do isso freudiano, que escapa ao eu
consciente. Nesta perspetiva, o Big Data faria do isso um eu suscetível
de ser psicopoliticamente explorado. Se o Big Data proporcionasse acesso ao
reino inconsciente das nossas ações e inclinações, seria pensável uma
psicopolítica que interviesse na profundidade da nossa psique e a explorasse.
Segundo Walter Benjamin, a câmara de cinema
permite o acesso ao "inconsciente ótico":
Com
o grande plano aumenta-se o espaço, com o ralenti o movimento adquire novas
dimensões. (…) Assim se toma compreensível que a natureza da linguagem da
câmara seja diferente da do olho humano, Diferente, principalmente, porque em
vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem, surge um outro
preenchido inconscientemente. (…) Em geral, o ato de pegarmos num isqueiro ou
numa colher é-nos familiar, mas mal sabemos o que se passa entre a mão e o
metal ao efetuarmos esses gestos, para não falarmos de como neles atua a nossa
flutuação de humor, Aqui, a câmara intervém com os seus meios auxiliares, os
seus "mergulhos" e subidas, as suas interrupções e isolamentos, os
seus alongamentos e acelerações, as suas ampliações e reduções, A câmara
leva-nos ao inconsciente ótico, tal como a psicanálise ao inconsciente das
pulsões 57.
Podemos estabelecer uma analogia entre o Big
Data e a câmara de cinema. O data mining, como uma lupa digital,
aumentaria as ações humanas.
A microfísica do Big Data tornaria
visíveis átomos, quer dizer microações que escaparam à consciência. O Big
Data revelaria padrões de comportamento coletivos dos quais o indivíduo não
é consciente. Seria assim possível o acesso ao inconsciente coletivo. Por analogia
com o "inconsciente Ótico", poderíamos chamar inconsciente digital
à estrutura microfísica ou micropsíquica. A psicopolítica digital seria então capaz
de se apoderar do comportamento das massas a um nível que escapa à consciência.
Big Deal
O Big Data surge não só sob a forma
de Big Brother como também sob a de Big Deal. O Big Data é um
grande negócio. Os dados pessoais são completamente capitalizados e comercializados.
Hoje, os homens são tratados e comercializados como pacotes de dados suscetíveis
de exploração económica. Os próprios seres humanos são transformados em mercadoria.
O Big Brother e o Big Deal aliam-se. Fundem-se o Estado vigilante
e o mercado.
A empresa de dados Acxiom opera
comercialmente com dados pessoais de cerca de 300 milhões de cidadãos americanos
-o que significa praticamente a totalidade daqueles. Acxiom conhece
melhor do que o FBI os cidadãos americanos. A empresa agrupa os indivíduos, distribuindo-os
por 70 categorias. E oferece-os como mercadorias nos seus catálogos. Os que têm
escasso valor económico são designados waste, ou seja, "lixo".
Os consumidores portadores de um valor de mercado superior encontram-se no grupo
Shooting star. São dinâmicos, têm entre 36 e 45 anos, levantam-se cedo
para fazer footing, não têm filhos, são casados, gostam de viajar e da
série de televisão Seinfeld.
O Big Data dá lugar a uma sociedade
de classes digital. Os indivíduos classificados na categoria
"lixo" pertencem à classe inferior. O crédito é negado aos que exibem
uma pontuação baixa. Além do pan-ótico, entra aqui em cena o Banótico 58
59. O pan-ótico vigia os residentes no sistema de reclusão. O banótico é
um dispositivo que, para as banir, identifica como não desejadas e exclui
as pessoas distantes ou hostis em relação ao sistema. O pan-ótico clássico serve
para disciplinar. O banótico ocupa-se da segurança e da eficácia do
sistema.
O banótico digital identifica como
lixo os homens desprovidos de valor económico. O lixo é qualquer coisa que se deverá
eliminar:
São supérfluos, lixo humano, os rejeitados
pela sociedade, numa palavra: refugo. Refugo é tudo aquilo que não é útil. Aos
amontoados de refugo pertence tudo aquilo que é irrecuperável, inutilizável. De
facto, o contributo mais significativo que o refugo pode fazer é sujar e
bloquear os espaços que, de outro modo, poderiam ser utilizados para produzir
lucros. O fim último do Banótico é garantir que o refugo é separado do
produto dotado de valor e encaminhado para o transporte para o vazadouro do
lixo 60.
Notas:
39. Citado em A. Gorz, Wissen, Wert und
Kapital. Zur Kritik der Wissensokonomie, Zufique, Rotpunktverlag, 2004, p. 20.
40. Citado em E. Illouz. Gefiihle in Zeiten
des Kapitalismus. Frankfurt. 2007. p. 39. o registo total da vida X.
56. É para este aspeto do Big Data que
remetem Viktor Mayer-Schõnberger e Kenneth Cukier. Cf.
V. Mayer-Schõnberger e K. Cukier, Big Data. Die Revolution, die unser Leben
veriindern wird, Munique, Redline, 2013, p. 203.
57. w. Benjamin, "Das Kunstwerk"
em Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit, Frankfurt, 1963, p. 36.
["A Obra de Arte na Época da Sua Reprodutibilidade Técnica", Sobre
Arte, Técnica, Linguagem e Política, tradução de Maria Luz Moita, MariaAmélia Cruz
e Manuel Alberto, prefácio de T. w. Adorno, Lisboa, Relógio D' Água, 1992, pp. 104-105.
(N. T.)]
58. Cf. z. Bauman e D.
Lyon, Daten, Drohnen, Disziplin. Ein Gespriich iiber fliichtige (jberwachung,
Berlim, Suhrkamp, 2013, pp. 83 e sgs.
59. Neologismo destinado a traduzir a
conjunção do "ótico" com o "banimento" (ou ~xclusão)
presente no original alemão sob a forma de Bannoptikum, que conjuga dois lermos
equivalentes. (N. T.)
50. Ibid., pp. 86 e sgs.
Psicopolítica, Byung-Chul Han. Relógio D’Água, 2015
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