sábado, 5 de agosto de 2023

A igreja católica em cruzada contra os infiéis

Crónica escrita há algum tempo mas inteiramente pertinente atendendo ao momento actual de visita papal ao estado católico luso

António

É mesmo para se dizer que a Igreja Católica já não é o que era, isto quanto aos escândalos sexuais dos seus ministros. Já vão longe os tempos em que os conventos e mosteiros pouco se distinguiam de vulgares bordéis, onde freiras e abadessas recebiam os seus amantes, na maioria padres, aí tinham os filhos e os criavam, como no célebre convento do Lorvão, nas proximidades de Coimbra, cuja abadessa ficou na História por ter sido encontrada em alegre ménage à quatre com uma outra freira, o bispo de Coimbra e a sua amante. Basta ler Alexandre Herculano para ficarmos elucidados sobre o que se passava à época e o Lorvão não era caso isolado, a corrupção e a podridão eram gerais.

“... A imoralidade pululava por toda a parte, sobretudo entre o clero, e especialmente entre o regular... Os eclesiásticos, por exemplo, da vasta diocese de Braga eram um tipo acabado de dissolução....Os mosteiros ofereciam os mesmos documentos de profunda corrupção, distinguindo-se entre eles o de Longovares, da Ordem de Santo Agostinho, e os de Seiça e Tarouca, da Ordem de Cister, ou antes nenhum dos mosteiros cistercienses se distinguia, porque em todos eles os abusos eram intoleráveis”. Assim se referia Alexandre Herculano ao estado moral dos monges em pleno século XVI, mas quanto aos conventos das freiras a situação não era melhor: “Os conventos de freiras não se achavam em melhor estado, sendo o de Chelas, o de Semide e outros teatro de contínuos escândalos. A história de Lorvão e da sua abadessa, D. Filipa de Eça, é um dos quadros mais característicos daquela época... Das freiras então actuais uma parte nascera no mosteiro; suas mães não só não se envergonhavam de as criar no claustro e para o claustro, mas aí mantinham também seus filhos do sexo masculino”.

A devassidão misturava-se com o grande número de sacerdotes, como os proventos eram imensos assim as “vocações” não faltavam: “Um dos males que mais afligiam o reino era a excessiva multidão de sacerdotes. Havia pequena aldeia onde viviam até quarenta, do que resultava andarem sempre em competências, disputando uns aos outros as missas, enterros e solenidades do culto, com altíssimo escândalo do povo”. E mais adiante o nosso historiador não se cansa de apontar: “Um dos abusos frequentes que estes tais cometiam era casarem clandestinamente, podendo assim delinquir sem perigo, porque, se os processavam por algum crime de morte, declinavam a competência dos tribunais seculares, e suas mulheres, para os salvarem, não hesitavam em se envilecerem a si próprias perante os magistrados, declarando-se concubinas.”

Mas esta situação de casamentos clandestinos entre os padres levava ao surgimento de um outro fenómeno, o da bigamia, tudo sob a bênção da Santa Madre Igreja, e continuando com Alexandre Herculano: “Os casamentos clandestinos que facilitavam tais horrores, e que eram vulgaríssimos, produziam ainda outros resultados não menos deploráveis. Negava-se não raro, depois, a existência de um facto que se não podia provar, e o receio do rigor dos pais fazia com que muitas filhas aceitassem segundas núpcias pertencendo já a outro homem”. Os casamentos clandestinos não tinham como resultado apenas a bigamia, mas conduziam ao aborto em escala alargada: “Ainda quando não chegavam a esta situação extrema, a vergonha e o temor produziam infanticídios em larga cópia”.

 

Como se pode verificar, longe vão os tempos áureos dos casamentos clandestinos, da bigamia e dos abortos feitos em profusão dentro da Igreja sem que nenhuma santa consciência ficasse por isso mais pesada, já para não falar na devassidão reinante no Vaticano com papas e papisas à mistura, porque para isto também havia remédio: a confissão e o pagamento de multas pecuniárias tudo redimiam. Agora, os escândalos são outros, não passa praticamente nenhum mês que a imprensa não refira casos de pedofilia em que os diversos membros da hierarquia católica, desde padres a bispos e cardeais, se encontram envolvidos.

Para além do nosso caso doméstico do bispo do Funchal que ordenou padre o secretário, pedófilo e amante, e o fez sair da prisão onde se encontrava por presumível crime de homicídio e com contornos de envolvimento sexual, são frequentes os casos de pedofilia por esse mundo católico fora. Nos Estados Unidos, segundo peritos em questões religiosas citados pelo Washington Post , desde o início dos anos 80, cerca de dois mil padres de uma população de 51 mil foram acusados de abusos sexuais. Também foi na terra do Tio Sam que foram pagas as maiores indemnizações pela igreja Católica por crimes de abuso sexual em menores praticados pelos seus ministros, totalizando cerca de 148 milhões de contos, sendo a última de 4 milhões e 255 mil contos a oito meninos de coro que foram abusados sexualmente por um padre da diocese de Dallas, no Texas.

Mas não é só nos Estados Unidos que estas coisas acontecem, porque na civilizada Europa, nomeadamente na aristocrática Áustria, cardeais há que são acusados pelo mesmo tipo de crime. A recente viagem do papa a este país viu-se envolvida na polémica dos escândalos sexuais do arcebispo de Viena, cuja fraqueza eram os jovens seminaristas, e que muito a custo é que foi afastado do seu cargo, mantendo-se ainda no seio da igreja, e o padre, que fez a denúncia e que ainda continuava a falar sobre o assunto não respeitando o silêncio imposto ao clero, teve como prémio o seu afastamento da paróquia onde predicava.

Quando os padres, numa larga maioria, deixaram de ter a fama de devassos e femeeiros para ganharem a de homossexuais e pedófilos, a Igreja persiste nos seus preconceitos quanto ao celibato, ao uso do preservativo e à ordenação das mulheres. É que as solicitações agora são maiores, e não apenas no campo da sexualidade, no entanto a repressão mantém-se e o resultado não poderá ser outro senão o aparecimento de uma enormidade de aberrações.

Carlos Latuff

Mas há alguém que pretende dar uma explicação para isto, explicação que vem de dentro da própria Igreja Católica, e queira ver na repressão de uma “sobrevivência pagã” - como é ainda considerada cristianamente a sexualidade humana - a expressão de uma «psique neurótica» e de «uma psicologia dos grupos conduzindo à neurose». A atitude de sempre da Igreja católica, e reiterada em 1975 pela Sagrada Congregação da Fé quanto a questões de sexo e de castidade, é interpretada numa perspectiva psicanalítia por um dos seus últimos elementos proscritos, o teólogo e psiquiatra alemão Eugene Drewermann que vê como resultado no indivíduo (homem da igreja ou crente) desta política medieval «o menosprezo do ego, a “mortificação” da pulsão sexual e a submissão do indivíduo ao grupo (leia-se hierarquia)».

O mesmo autor reconhece, fruto da sua experiência de psicoterapeuta, que a percentagem de homossexuais dentro da Igreja católica é grande, como consequência principal da sua moral repressiva e da atitude quanto ao celibato, quer entre religiosos de sexo masculino como do sexo feminino, chegando aos 25% os jovens seminaristas que, de forma permanente ou esporádica, se dedicam a práticas homossexuais. A homossexualidade considerada como uma das formas mais graves de pecado pela Igreja (os acusados pelo crime nefando eram sentenciados à fogueira pela Santa Inquisição, se fosse agora muito havia que queimar!) é por esta directamente fomentada mas que, ao mesmo tempo - contradição das contradições -, obstinadamente se recusa a reconhecer como realidade existente no seu seio.

E entre os padres que decidem abandonar o caminho do onanismo para se ligar a alguma mulher, respondendo assim aos apelos mais íntimos do seu ser, confrontam-se as mais das vezes com o problema dos filhos não desejados, sendo, por isso, e segundo este teólogo alemão, os abortos coisa frequente: é que o “concubinato” é tolerado desde que o sacerdote em causa não persista ou “não dê escândalo” (cânone 1395 do Direito Canónico), isto é, que não haja conhecimento do “pecado”. Quanto a práticas masturbatórias, elas são frequentes; segundo Drewermann, são diversos os casos, por si vistos na clínica, de eclesiásticos, alguns ocupando altos cargos hierárquicos que, perante as dificuldades de preparação de uma conferência ou homília, começavam sempre por se masturbar. Masturbação, considerada pela Teologia católica como “um acto gravemente oposto à ordem”, ou então a procura do álcool, outro refúgio bastante solicitado e que, quer um quer outro, funcionam como droga para vencer o medo e a insegurança.

Esta realidade não é de estranhar numa religião, e continuamos a citar as palavras de Drewermann (que apesar de tudo não renega a sua fé), que «falsifica a neurose em santidade, a doença em eleição divina e a angústia em confiança em Deus», e onde a separação entre o pensamento e a sensibilidade, a actividade intelectual e a vivência emocional, constitui uma estrutura fundamental do pensamento clerical. Esta hipocrisia, a mesma que a burguesia manifesta, mas mais refinada e levada ao extremo, é própria de uma religião que «é inimiga da natureza e oposta ao amor», melhor dizendo, tem como objectivo a subjugação do homem, a sua destruição como indivíduo livre e senhor do seu destino.

Contrariamente ao que pensam alguns renovadores da Igreja católica, temerosos desta não se saber moldar aos novos tempos e por isso apressar o seu desaparecimento, jamais esta Igreja aceitará as palavras de Jesus (de Kazantzakis) para a sua amante, Maria Madalena: “Eu não sabia, minha bem-amada, que o mundo era tão belo e a carne tão santa... Eu não sabia que a alegria do corpo não era pecado.”

Bibliografia:

- Alexandre Herculano. “História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal”. Edição Círculo de Leitores, 1987.

- Eugen Drewermann. “Funcionários de Deus”. Editorial Inquérito, 1994.

- Imprensa diária.

Coimbra, 25 de dezembro de 2002

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