Crónica escrita há algum tempo mas inteiramente pertinente atendendo ao momento actual de visita papal ao estado católico luso
É mesmo para se dizer que a Igreja Católica já
não é o que era, isto quanto aos escândalos sexuais dos seus ministros. Já vão
longe os tempos em que os conventos e mosteiros pouco se distinguiam de
vulgares bordéis, onde freiras e abadessas recebiam os seus amantes, na maioria
padres, aí tinham os filhos e os criavam, como no célebre convento do Lorvão,
nas proximidades de Coimbra, cuja abadessa ficou na História por ter sido
encontrada em alegre ménage à quatre com uma outra freira, o bispo de
Coimbra e a sua amante. Basta ler Alexandre Herculano para ficarmos elucidados
sobre o que se passava à época e o Lorvão não era caso isolado, a corrupção e a
podridão eram gerais.
“... A imoralidade pululava por toda a parte,
sobretudo entre o clero, e especialmente entre o regular... Os eclesiásticos,
por exemplo, da vasta diocese de Braga eram um tipo acabado de dissolução....Os
mosteiros ofereciam os mesmos documentos de profunda corrupção, distinguindo-se
entre eles o de Longovares, da Ordem de Santo Agostinho, e os de Seiça e
Tarouca, da Ordem de Cister, ou antes nenhum dos mosteiros cistercienses se
distinguia, porque em todos eles os abusos eram intoleráveis”. Assim se referia
Alexandre Herculano ao estado moral dos monges em pleno século XVI, mas quanto
aos conventos das freiras a situação não era melhor: “Os conventos de freiras
não se achavam em melhor estado, sendo o de Chelas, o de Semide e outros teatro
de contínuos escândalos. A história de Lorvão e da sua abadessa, D. Filipa de
Eça, é um dos quadros mais característicos daquela época... Das freiras então
actuais uma parte nascera no mosteiro; suas mães não só não se envergonhavam de
as criar no claustro e para o claustro, mas aí mantinham também seus filhos do
sexo masculino”.
A devassidão misturava-se com o grande número
de sacerdotes, como os proventos eram imensos assim as “vocações” não faltavam:
“Um dos males que mais afligiam o reino era a excessiva multidão de sacerdotes.
Havia pequena aldeia onde viviam até quarenta, do que resultava andarem sempre
em competências, disputando uns aos outros as missas, enterros e solenidades do
culto, com altíssimo escândalo do povo”. E mais adiante o nosso historiador não
se cansa de apontar: “Um dos abusos frequentes que estes tais cometiam era
casarem clandestinamente, podendo assim delinquir sem perigo, porque, se os
processavam por algum crime de morte, declinavam a competência dos tribunais
seculares, e suas mulheres, para os salvarem, não hesitavam em se envilecerem a
si próprias perante os magistrados, declarando-se concubinas.”
Mas esta situação de casamentos clandestinos
entre os padres levava ao surgimento de um outro fenómeno, o da bigamia, tudo
sob a bênção da Santa Madre Igreja, e continuando com Alexandre Herculano: “Os
casamentos clandestinos que facilitavam tais horrores, e que eram
vulgaríssimos, produziam ainda outros resultados não menos deploráveis.
Negava-se não raro, depois, a existência de um facto que se não podia provar, e
o receio do rigor dos pais fazia com que muitas filhas aceitassem segundas
núpcias pertencendo já a outro homem”. Os casamentos clandestinos não tinham
como resultado apenas a bigamia, mas conduziam ao aborto em escala alargada:
“Ainda quando não chegavam a esta situação extrema, a vergonha e o temor
produziam infanticídios em larga cópia”.
Como se pode verificar, longe vão os tempos
áureos dos casamentos clandestinos, da bigamia e dos abortos feitos em profusão
dentro da Igreja sem que nenhuma santa consciência ficasse por isso
mais pesada, já para não falar na devassidão reinante no Vaticano com papas e
papisas à mistura, porque para isto também havia remédio: a confissão e o
pagamento de multas pecuniárias tudo redimiam. Agora, os escândalos são outros,
não passa praticamente nenhum mês que a imprensa não refira casos de pedofilia
em que os diversos membros da hierarquia católica, desde padres a bispos e
cardeais, se encontram envolvidos.
Para além do nosso caso doméstico do bispo do
Funchal que ordenou padre o secretário, pedófilo e amante, e o fez sair da
prisão onde se encontrava por presumível crime de homicídio e com contornos de
envolvimento sexual, são frequentes os casos de pedofilia por esse mundo
católico fora. Nos Estados Unidos, segundo peritos em questões religiosas
citados pelo Washington Post , desde o início dos anos 80, cerca de
dois mil padres de uma população de 51 mil foram acusados de abusos sexuais.
Também foi na terra do Tio Sam que foram pagas as maiores indemnizações pela
igreja Católica por crimes de abuso sexual em menores praticados pelos seus
ministros, totalizando cerca de 148 milhões de contos, sendo a última de 4
milhões e 255 mil contos a oito meninos de coro que foram abusados sexualmente
por um padre da diocese de Dallas, no Texas.
Mas não é só nos Estados Unidos que estas
coisas acontecem, porque na civilizada Europa, nomeadamente na aristocrática
Áustria, cardeais há que são acusados pelo mesmo tipo de crime. A recente
viagem do papa a este país viu-se envolvida na polémica dos escândalos sexuais
do arcebispo de Viena, cuja fraqueza eram os jovens seminaristas, e que muito a
custo é que foi afastado do seu cargo, mantendo-se ainda no seio da igreja, e o
padre, que fez a denúncia e que ainda continuava a falar sobre o assunto não
respeitando o silêncio imposto ao clero, teve como prémio o seu afastamento da
paróquia onde predicava.
Quando os padres, numa larga maioria, deixaram
de ter a fama de devassos e femeeiros para ganharem a de homossexuais e
pedófilos, a Igreja persiste nos seus preconceitos quanto ao celibato, ao uso
do preservativo e à ordenação das mulheres. É que as solicitações agora são
maiores, e não apenas no campo da sexualidade, no entanto a repressão mantém-se
e o resultado não poderá ser outro senão o aparecimento de uma enormidade de
aberrações.
Mas há alguém que pretende dar uma explicação para isto, explicação que vem de dentro da própria Igreja Católica, e queira ver na repressão de uma “sobrevivência pagã” - como é ainda considerada cristianamente a sexualidade humana - a expressão de uma «psique neurótica» e de «uma psicologia dos grupos conduzindo à neurose». A atitude de sempre da Igreja católica, e reiterada em 1975 pela Sagrada Congregação da Fé quanto a questões de sexo e de castidade, é interpretada numa perspectiva psicanalítia por um dos seus últimos elementos proscritos, o teólogo e psiquiatra alemão Eugene Drewermann que vê como resultado no indivíduo (homem da igreja ou crente) desta política medieval «o menosprezo do ego, a “mortificação” da pulsão sexual e a submissão do indivíduo ao grupo (leia-se hierarquia)».
O mesmo autor reconhece, fruto da sua
experiência de psicoterapeuta, que a percentagem de homossexuais dentro da
Igreja católica é grande, como consequência principal da sua moral repressiva e
da atitude quanto ao celibato, quer entre religiosos de sexo masculino como do
sexo feminino, chegando aos 25% os jovens seminaristas que, de forma permanente
ou esporádica, se dedicam a práticas homossexuais. A homossexualidade
considerada como uma das formas mais graves de pecado pela Igreja (os acusados
pelo crime nefando eram sentenciados à fogueira
pela Santa Inquisição, se fosse agora muito havia que queimar!) é por
esta directamente fomentada mas que, ao mesmo tempo - contradição das
contradições -, obstinadamente se recusa a reconhecer como realidade existente
no seu seio.
E entre os padres que decidem abandonar o
caminho do onanismo para se ligar a alguma mulher, respondendo assim aos apelos
mais íntimos do seu ser, confrontam-se as mais das vezes com o problema dos
filhos não desejados, sendo, por isso, e segundo este teólogo alemão, os
abortos coisa frequente: é que o “concubinato” é tolerado desde que o sacerdote
em causa não persista ou “não dê escândalo” (cânone 1395 do Direito Canónico),
isto é, que não haja conhecimento do “pecado”. Quanto a práticas
masturbatórias, elas são frequentes; segundo Drewermann, são diversos os casos,
por si vistos na clínica, de eclesiásticos, alguns ocupando altos cargos
hierárquicos que, perante as dificuldades de preparação de uma conferência ou
homília, começavam sempre por se masturbar. Masturbação, considerada pela
Teologia católica como “um acto gravemente oposto à ordem”, ou então a procura
do álcool, outro refúgio bastante solicitado e que, quer um quer outro,
funcionam como droga para vencer o medo e a insegurança.
Esta realidade não é de estranhar numa
religião, e continuamos a citar as palavras de Drewermann (que apesar de tudo
não renega a sua fé), que «falsifica a neurose em santidade, a doença em
eleição divina e a angústia em confiança em Deus», e onde a separação entre o
pensamento e a sensibilidade, a actividade intelectual e a vivência emocional,
constitui uma estrutura fundamental do pensamento clerical. Esta hipocrisia, a
mesma que a burguesia manifesta, mas mais refinada e levada ao extremo, é
própria de uma religião que «é inimiga da natureza e oposta ao amor», melhor
dizendo, tem como objectivo a subjugação do homem, a sua destruição como
indivíduo livre e senhor do seu destino.
Contrariamente ao que pensam alguns
renovadores da Igreja católica, temerosos desta não se saber moldar aos novos
tempos e por isso apressar o seu desaparecimento, jamais esta Igreja aceitará
as palavras de Jesus (de Kazantzakis) para a sua amante, Maria Madalena: “Eu
não sabia, minha bem-amada, que o mundo era tão belo e a carne tão santa... Eu
não sabia que a alegria do corpo não era pecado.”
Bibliografia:
- Alexandre Herculano. “História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal”. Edição Círculo de Leitores, 1987.
- Eugen Drewermann. “Funcionários de Deus”. Editorial Inquérito, 1994.
- Imprensa diária.
Coimbra, 25 de dezembro de 2002
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