quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres

 

 Elfried Harth

"Lutar contra os direitos reprodutivos das mulheres, contra a legalização do aborto, é tomar partido contra a vida das mulheres, pois prefere-se arriscar a saúde e a vida de alguém de quem ninguém duvida que é uma pessoa, embora talvez de sexo feminino, pretendendo proteger a vida de um ser de quem é impossível ter a certeza de que é uma pessoa. Abortar só uma mulher o pode fazer. Cometer um homicídio, também um varão o pode fazer. Mas ambos os actos são sancionados de modo diferente. Isso demonstra que a preocupação principal da Igreja é controlar o corpo, a sexualidade e a capacidade de reprodução das mulheres, pois aqui encontra-se o fundamento da estrutura de poder patriarcal da Igreja.”

(Conferência “Os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres” da teóloga Elfried Harth, pertencente ao Colectivo Católicas pelo Direito a Decidir, in XXVI Congresso de Teologia de Madrid, em Setembro de 2006)

A preocupação principal da Igreja é controlar o corpo, a sexualidade e a capacidade de reprodução das mulheres

Convidaram-me para dar o meu contributo à reflexão que, como cristãs, cristãos estamos a realizar aqui neste Congresso sobre a bioética, com um destaque a partir da perspectiva dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. Talvez seja bom começar por tentar examinar o que é que entendemos por “Direitos reprodutivos e sexuais”.

Agrada-me muito uma definição que deram umas mulheres camponesas mexicanas, num dos muitos encontros que o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir realiza no México e noutros países latino-americanos onde trabalha. Formularam-no mais ou menos assim: É o direito das pessoas a sentir-se agradecidas pelo corpo que Deus lhes deu, um corpo dotado, por um lado, da capacidade do prazer e, por outro, da capacidade de produzir novos seres humanos; é o direito a explorar e a viver plena e positivamente essas duas capacidades, e a viver e a desfrutar plenamente cada uma de per si; é o direito a construir-se como pessoa moralmente autónoma, adulta e responsável através do exercício dessas capacidades e poder exercê-las plenamente; é o direito à integridade física e psicológica; é o direito a saber e a exigir que o princípio fundamental de cada relação íntima de casal é a justiça, a responsabilidade pelo próprio corpo e o bem-estar, assim como pelo corpo e o bem-estar do casal; é o direito a determinar o número de filhos que se quer ter, assim como o momento em que se quer ter; é o respeito por esse dom tão precioso que Deus nos deu, o nosso corpo, respeito que a nossa tradição católica proclama e ritualiza, por exemplo, no sacramento da unção dos doentes e nos ritos da sepultura dos mortos.

Quais as condições para viver esses direitos?

O matrimónio por toda a vida é sem dúvida alguma uma instituição muito importante no contexto do exercício da sexualidade humana, antes de mais quando uma pessoa ou um casal opta pela procriação, e se trata duma relação estável que proporcione segurança e continuidade na tarefa da criação dos filhos. Porém, sabemos todas, todos que não é a forma jurídica duma relação, nem o seu carácter heterossexual ou monossexual o que garante a sua qualidade, e, por isso, o que chamamos “direitos sexuais e reprodutivos”, mas sim a justiça que reina dentro da relação de casal. Para poder desfrutar os seus direitos sexuais e reprodutivos, as pessoas têm que respeitar-se, primeiro, a elas próprias e depois o respectivo casal.

Direitos sexuais e reprodutivos não devem confundir-se com libertinagem e irresponsabilidade.

Trata-se, pelo contrário, de que a sociedade, todas as mulheres, todos os homens criemos as condições que permitam que as pessoas possam desfrutar o seu corpo de maneira sadia. Começando por rejeitar rotundamente todo o tipo de violência e de coerção, que é precisamente a negação da justiça. Começando por proporcionar a cada menina, menino e a cada adolescente uma educação sexual e emotiva que lhes permita desenvolver uma atitude respeitosa e responsável perante o corpo, uma atitude positiva perante a sexualidade e uma consciência madura perante o que significa trazer um filho ao mundo. O corpo e as suas faculdades são algo precioso que não se desperdiça, mas que se cuida e que se desfruta.

Trata-se de que toda a pessoa conheça e tenha acesso aos meios que lhe permitam exercer a sua sexualidade de forma gozosa e sem riscos para a sua saúde física e mental. Começando por saber dizer NÃO a algo que não se deseja. Uma adolescente, uma mulher, toda a pessoa tem que saber que é legítimo dizer NÃO a relações carnais que ela não esteja a desejar, a relações que contenham riscos para a sua saúde, a relações que não incluam métodos de protecção contra infecções ou contra uma gravidez não desejada. Deve, por exemplo, saber que é legítimo e sin­toma de responsabilidade usar e reclamar o uso do preservativo, para prevenir uma gravidez não desejada ou uma infecção.

Em Dezembro passado, o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir organizou uma viagem pelo Perú e pelo Brasil para um grupo de seis parlamentares de vários países europeus. O objectivo da viagem era permitir a essas seis legisladoras europeias explorar o impacto que a religião tem sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na América Latina.

Tiveram que ouvir horrores em todo o lado sobre o empenho que a hierarquia eclesiástica põe para os obstruir, desde a educação sexual da juventude nos colégios até ao acesso a meios contraceptivos para a população pobre. Ao mesmo tempo, houve também experiências muito comovedoras, como o encontro com uma freira brasileira que colabora com o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir, do Brasil.

Essa mulher trabalha na pastoral de prostitutas e há pouco tempo concluiu uma tese de teologia com Maria José Rosado, a directora do colectivo Católicas, que trabalha na Universidade católica de S. Paulo. Trata-se duma tese sobre a religiosidade das prostitutas, sobre a mariologia destas mulheres. Contava-nos que têm uma imen­sa devoção a Maria, na qual vêem a grande consoladora, uma pobre mu­lher do povo, que compreende as suas penas, sem as julgar. No fundo, vêem nela o rosto compassivo de Deus. E é precisamente este um dos objectivos maiores do trabalho da religiosa: anunciar a essas mulheres a Boa Notícia, trabalhar sobre os tremendos sentimentos de culpabilidade que as oprimem.

Há algumas que há anos não voltaram a comungar, embora sintam uma grande sede de se aproximar da mesa do Senhor. Vão à missa, mas ficam no último banco, pois sentem-se indignas de ir mais acima. Sentem que pecaram e que terão que voltar a pecar, pois são mães e têm que dar de comer aos seus filhos. Sofrem por ter cometido doze, quinze abortos, por não terem podido proteger-se contra uma gravidez não desejada. Sofrem de cada vez que tiveram que negar a vinda ao mundo de um filho, mas fizeram-no porque queriam evitar-lhes o destino que os esperava como filhos de prostituta.

A religiosa faz-lhes ver que o que ela reconhece nos actos que tanto as culpabilizam é, afinal, amor: concretamente, optaram por carregar com uma culpa por amor ao próximo, por amor a essa criatura não nascida, por amor aos filhos que já têm e para os quais um irmãozito mais seria uma carga muito pesada. E então ela apoia o colectivo Católicas pelo Direito a Decidir na sua luta pela despenalização do aborto, por amor e respeito para com estas mulheres. Sabe que cada vez que uma delas tenha que praticar um aborto clandestino, a sua vida corre perigo. E tem a convicção de que a vida de cada uma delas é amada por Deus e que cada uma delas tem o direito à vida, à integridade física, à dignidade.

Defender os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é, portanto, uma opção pelos pobres. É lutar por que o acesso à educação sexual, aos meios contraceptivos e em último recurso ao aborto não sejam privilégio exclusivo de quem tem dinheiro para os comprar. Para que também a adolescente mais humilde e a mulher mais indigente não tenham que arriscar a sua vida e a sua saúde, mas que se lhes reconheça a dignidade de serem agentes morais no que respeita à sua sexualidade e à sua capacidade de reprodução e que possam viver uma sexualidade sadia, positiva e gozosa, em relações justas e responsáveis.

Agora perguntareis: E que tem tudo isto a ver com a bioética, esta disciplina recente que se vem forjando na intersecção da biologia, medicina, filosofia, teologia, direito e política?

Diria que o aparecimento da bioética como disciplina é precisamente um dos muitos sintomas duma revolução profunda e global de nossos conhecimentos, em que estamos comprometidos todas, todos, e que exerce um tremendo impacto sobre todos os aspectos das nossas vidas e da nossa consciência como seres humanos.

O que significa esta revolução para as mulheres? O que significa para o seu corpo e para os seus direitos relativamente ao seu corpo? O que si­gni­fica para a sua capacidade reprodu­tiva e para os seus direitos relativa­mente à sua capacidade reprodutiva? O que significa para a sua sexualidade e para os seus direitos relativamente à sua sexualidade? O que significa para a ordem de poder da nossa sociedade, uma ordem baseada na diferença dos sexos, por sua vez, organizada numa hierarquia dos sexos, na qual o masculino prima e reina sobre o feminino?

Estas são apenas um par das muitas perguntas que surgem quando en­tra­mos nesta problemática. E é muito difícil formular respostas. Penso que, quanto a certezas e verdades encontramo-nos actualmente numa situação parecida à do povo eleito, nos tempos do Faraó: O Espírito que é como um vento invisível que não se deixa encurralar, mas sopra livremente por onde quer, está a convidar-nos ao êxodo, a partir para horizontes desconhecidos, sem mais garantias que a fé numa promessa e a esperança de alcançar o prometido. Encontramo-nos numa situação em que todo o tipo de fronteiras começam a desvanecer-se. E com isso começa a cambalear a ordem social. E é esse o motivo que explica o recru­descimento de todos os fundamentalismos a que estamos a assistir na actualidade, fundamentalismos que são sinto­mas do medo perante as incertezas e os questionamentos da ordem social, sintomas duma resistência a toda a mudança, à necessidade de reformular ou reinterpretar os mitos fundadores das nossas tradições.

É altura de sublinhar que todos os fundamentalismos, sejam cristãos, muçulmanos, judeus, nacionalistas, ou de qualquer outro tipo, têm uma preocupação chave, que é a negação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o afã por controlar o corpo das mulheres. Embora possam estar em guerra uns contra os outros, já em matéria de negação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, os fundamentalistas são incondicionais aliados.

Assim a Santa Sé, graças ao privilégio que goza de ser a única reli­gi­ão à qual se reconhece o estatuto de observador não membro das Nações Unidas, não tem o menor escrúpulo em unir-se aos governos de Estados como Sudão, Iraque, Líbia para obstruir todo o avanço ao nível de política internacional em matéria de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. E com a chegada de George W. Bush à presidência dos Estados Unidos, este país passou a ser o seu melhor aliado nesse campo, motivo pelo qual os bispos americanos apoiaram a sua reeleição em 2004, em detrimento do seu opositor católico. Preferiram que voltasse a ser eleito presidente, um protestante que desencadeou a guerra no Iraque e que governa contra os pobres no seu país, desde que isso viesse a impedir a chegada à presidência de um católico partidário dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Porque se sentem tão ameaçados os fundamentalistas pelos desenvolvimentos científicos recentes?

Porque estes questionam profundamente os fundamentos antropológicos que regem a simbologia dos nossos sistemas de poder, tanto a simbologia religiosa como a política.

Com o desenvolvimento das tecnologias da reprodução assistida, da clonagem, por exemplo, as categorias de oposição e de complementaridade dos sexos, isto é, a fronteira que os separava, que servia para estabelecer e justificar uma determinada ordem social, começa a deixar de ser pertinente.

Se até à data a reprodução biológica da espécie humana requeria a existência duma humanidade sexuada e a interacção sexual entre dois seres de sexo oposto, vislumbra-se que isto não continuará a ser indispensável no futuro. Pelo menos, não o será cientificamente, teoricamente. Isto é, ainda que os nossos legisladores continuem a proibir a clonagem reprodutiva e os nossos cientistas respeitem essa lei, o que o nosso entendimento nos permite vislumbrar, o que a nossa mente actualmente é já capaz de imaginar e de pensar, não deixará de ter um profundo impacto sobre a antropologia e, como corolário, sobre a teologia.

Demonstrou-se que é possível produzir um novo mamífero a partir de um ovocito nucleado desta espécie de mamífero à qual se implantou o núcleo de outra célula de qualquer outro indivíduo dessa espécie. Quer isto dizer que a reprodução deixa de depender exclusivamente da sexualidade. Reprodução e sexualidade são duas coisas distintas e desligadas uma da outra. É concebível criar um indivíduo da raça humana, distinto dos demais da sua es­pécie, a partir de um ovocito, e sem necessidade de esperma. Ainda se precisará, para o desenvolvimento desse clone, de um útero, pois a ciência ainda não conseguiu desenvolver incubadoras que possam suprir o ventre da mulher.

Significa isto, à distância – ao menos teoricamente – que se continuaria a precisar de mulheres, mas já não haveria necessidade de varões, para que a espécie humana continue a perpetuar-se e não desapareça da face da terra.

Podemos então imaginar uma sociedade humana configurada por indivíduos que já não são “o fruto do homem”, ou para dizer de maneira mais precisa, “o fruto do varão”. Porém, o que significam então, nessas condições, categorias antropológicas e, como co­rolário, políticas e religiosas como as de “pai”, “irmão”, “filiação”, “linhagem”, “descendência”, “antepassados”, “geração”?

Dar-nos-emos conta de que não precisamos de chegar até à biorevolução para que muitas destas categorias sejam redefinidas. Já estamos a assistir a isso, por exemplo, com o reconhecimento do matrimónio gay . A biorevolução no fundo só concede maior plausabilidade às mudanças antropológicas que estamos a viver, corroborando no biológico o que já estamos a experimentar no social e no jurídico: que as fronteiras que nos pareciam inquestionáveis e evidentes – a Lei Natural ditada por Deus e reflexo da sua vontade divina desde um princípio, agora e sempre e pelos séculos dos séculos amén – cada dia o são menos.

O que significa então ser mulher? E que significa ser varão? Admito que, embora julgo intui-lo, definindo-me eu mesma como uma mulher, a verdade é que sinto-me incapaz de dar uma definição categórica e essencialista, que estabeleça sem ambiguidade alguma a fronteira entre os dois seres, catalogando um na categoria “varão” e o outro na categoria “mulher”. Sinto que a fronteira entre ambos está a desvanecer-se, é cada mais opaca.

O que significa esta biorevolução para o corpo das mulheres e para os seus direitos relativamente ao seu corpo? O corpo das mulheres foi sempre em todos os sistemas políticos e económicos que conhecemos, a matéria-prima destinada a produzir e a reproduzir o bem mais precioso da espécie humana que é a sua própria sobrevivência e a sua própria perpetuação. Foi a fonte da força de trabalho necessária para criar tudo o que a humanidade tenha podido considerar como riquezas, e isto antes de que estas riquezas pos­sam ser acumuladas ou repartidas. Os varões também desempenharam um papel indispensável neste trabalho, mas uma diferença económica central entre varão e mulher é que a quantidade de tempo que o varão precisa investir no desempenho do seu papel biológico de reprodutor é sumamente breve, apenas um par de instantes, enquanto que a parte que incumbe à mulher se prolonga no mínimo por um período de nove meses.

Num mundo em que a única função dos varões e das mulheres fosse a reprodução, e que um varão fecundasse apenas uma mulher por dia, um varão precisaria dumas 300 mulheres para optimizar a sua capacidade reprodutiva, enquanto que a uma mulher bastaria ter relações reprodutivas com um homem cada 300 dias para optimizar a sua. Numa povoação de igual número de varões e de mulheres, sobrariam 299 varões por cada mulher. Ou para o formularmos em linguagem económica: o valor biológico-económico duma mulher seria equivalente ao de 299 varões. Pelo menos em sociedades em que a reprodução biológica da espécie humana se opere segundo a tradição sexuada-sexual. Pois no horizonte duma reprodução por clonagem, o valor biológico do varão chega ao zero, zero.

Todos os povos que se dedicaram à criação de animais compreenderam desde os mais remotos tempos históricos esta diferença no valor dos sexos: Conservam as preciosas fêmeas que proporcionam leite e crias ou ovos, e sacrificam os machos de valor incomparavelmente inferior, para proporcionarem carne para a dieta do grupo, conservando unicamente um par de reprodutores.

E podemos estar seguros de que a origem remota de toda a ordem social e política de que se dotou a espécie homo sapiens radica na apropriação e no controlo desse valor in­com­parável que representa na sociedade humana a capacidade reprodutiva inerente ao corpo das mulheres. E a ordem patriarcal consiste em que aqueles indivíduos do sexo masculino que consigam apropriar-se ou ao menos controlar o corpo e o produto do corpo das mulheres, são também aqueles que detêm o poder. E a obsessão pelo controlo do cor­po das mulheres é talvez a melhor medida para apurar o grau de fundamentalismo patriarcal de qualquer sistema de poder.

O exemplo mais flagrante proporciona-o a nossa Santa Mãe Igreja Católica Apostólica e Romana. Essa “senhora”, que é uma estrutura de poder que em realidade está constituída exclusivamente por varões que renunciaram à sua capacidade reprodutiva biológica, em troca do máximo título de autoridade patriarcal que é o de “pai”, é um colectivo exclusivamente masculino que decide quais são as regras que regem a sexualidade.

Primeiro, a daqueles varões que preferiram renunciar ao poder dentro da dita estrutura a favor do exercício da sua sexualidade [os leigos]. A Santa Mãe Igreja impõe-lhes que a única sexualidade legítima é a heterossexual, isto é, aquela que implica interacção com o corpo duma mulher, com a qual estejam unidos em matrimónio indissolúvel. E de harmonia com a sexualidade das mulheres. Porém, o que antes de mais ela se arroga é o controlo exclusi­vo dos corpos das mulheres, quando estas se encontram em gestação, reduzindo-as a seres portadores no seu seio de um espaço extraterritorial, uma espécie de enclave do qual se vêm expropriadas enquanto se esteja desenvolvendo ali um fenómeno biológico que pode chegar a culminar na vinda ao mundo de um novo indivíduo da espécie humana.

Po­rém, este afã por expropriar a mulher gestante do seu corpo e do que este está a produzir, será realmente um afã para proteger a vida de um ser humano? Então, como explicar que pela destruição duma vida humana haja sanções diferentes, segundo os casos?

O direito canónico estipula que a sanção para o aborto é a excomunhão. Esta sanção não se aplica nem ao homicídio nem ao assassinato. Nem sequer ao massacre ou ao genocídio.

Se uma mulher grávida não quer assumir essa maternidade, e decide des­truir a vida que está a gestar-se no seu útero, ela tem duas possibilidades: Ou aborta, talvez aos dois ou três meses de gravidez, isto é, opta pela destruição do fruto do seu ventre antes de dar à luz, ou então dá à luz e mata logo a seguir o bebé que deu à luz.

Pois bem, o Direito Canónico considera os dois actos como crimes, mas distintos, dos quais o aborto merece uma pena muito maior que o infanticídio!

Com o aborto, uma mulher demonstra que reivindica a integridade do seu corpo, esteja este em fase de gestação ou não, e nega-se a aceitar uma “extra­territorialidade” dentro de si, sobre a qual outros possam deter a autoridade e o controlo. Por isso, estes ameaçam a mulher com a excomunhão. Não se tra­ta de castigar em primeiro lugar a destruição duma vida humana, mas a reivindicação da soberania moral da mulher, a reivindicação do controlo sobre o seu próprio corpo.

Aqui radica a importância do reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: é a condição para que todas as mulheres possam reivindicar a integridade do seu corpo. É necessário que se reconheça a cada mulher o direito a decidir qual é a opção legítima para ela, no caso duma gravidez: ou a de a levar ao fim, ou a de lhe pôr fim. Para que a maternidade seja algo realmente digno e humanizante, é preciso que se reconheça também como legítima a opção do aborto. Pois a minha maternidade só é realmente uma opção positiva e livre, se eu posso legitimamente optar pelo aborto, realizando-o. E embora o Vaticano, no seu afã de poder, tente escondê-lo, essa é a doutrina católica genuína. Pois cabe recordar aqui que uma das componentes fundamentais da tradição católica é que a consciência individual bem (in)formada é a suprema instância moral.

Um acto não é um crime porque sim, mas segundo as circunstâncias em que se cometa. Se uma mulher opta por um aborto, depois de ter orado e pesado no seu coração e consciência os diferentes aspectos da situação em que se encontra, chegando à conclusão de que no seu caso concreto o aborto é a opção mais responsável, pecaria se agis­se contra a sua consciência não abortando. Trata-se duma decisão grave e difícil. E ninguém pode negar que um aborto implica a destruição de uma vida humana. Porém, a Igreja católica admite que há casos graves em que a destruição duma vida humana pode justificar-se. Assim, desenvolveu toda uma teologia da guerra justa, por exem­plo. Nela enumera as condições nas quais se justifica destruir vidas de seres humanos nascidos, de pessoas. Ao contrário, é muito pouco o que existe no campo da teologia do aborto justo. Praticamente reduz-se ao que compilámos e sistematizámos em Católicas pelo Direito a Decidir, e que é parte duma teologia feminista da libertação.

Assim, perguntamo-nos, por exemplo: Porque se consideraria que uma mulher é capaz de trazer ao mundo uma criatura humana e de criá-la e de ajudá-la a ser uma pessoa adulta e responsável, mas já não se crê que ela seja capaz de decidir, quando se encontra grávida sem ter optado por isso, se quer e pode ou não assumir essa maternidade específica nas circunstâncias concretas da sua vida? E recordamos que, contrariamente ao que sucede no caso da destruição da vida duma pessoa numa guerra, ou num caso de legítima defesa, no caso do aborto a própria Igreja admite que não tem a capacidade de definir o momento em que se sabe com certeza que um embrião ou feto é uma pessoa humana.

Aqui precisamente, os recentes desenvolvimentos do conhecimento científico ajudam-nos a ver com maior claridade do que nos era possível até há pouco: que o que existe no momento da concepção é um conjunto de células plenipotenciárias sem especificação alguma. Não é possível falar ainda de pessoa humana. Pois é possível por exemplo que ocorra uma divisão des­tas células de tal forma que resultem não um, mas dois embriões. O que será então da alma imortal? Também poderá dividir-se em duas, ou será que já pre-existia em duplicado desde o princípio numa só célula?

Intuitivamente podemos compreender que, embora haja destruição de vida humana, não é o mesmo destruir um embrião, que uma pessoa nascida. Basta imaginar a cena seguinte: Uma médica trabalha num laboratório de reprodução assistida. Um dia, uma co­lega deixa-lhe um bebé de um ano no laboratório, enquanto vai resolver um problema no exterior. Pouco depois, produz-se um curto-circuito no laboratório que desencadeia um grave incêndio. Soam os alarmes e a doutora sabe que tem apenas um minuto para sair do laboratório e salvar a sua vida. Que decisão será mais ética: que tome nos braços o bebé que dorme na sua alcofa, para o livrar do perigo, ou que sacrifique esta jovem vida para salvar as 500 vidas de 500 embriões congelados que estão guardados na arca frigorífica do laboratório?

Lutar contra os direitos reprodutivos das mulheres, contra a legalização do aborto, é tomar partido contra a vida das mulhe­res, pois prefere-se arriscar a saúde e a vida de alguém de quem ninguém duvida que é uma pessoa, embora talvez de sexo feminino, pretendendo proteger a vida de um ser de quem é impossível ter a certeza de que é uma pessoa.

Abortar só uma mulher o pode fazer. Cometer um homicídio, também um varão o pode fazer. Mas ambos os actos são sancionados de modo diferente. Isso demonstra que a preocupação principal da Igreja é controlar o corpo, a sexualidade e a capacidade de reprodução das mulheres, pois aqui encontra-se o fundamento da estrutura de poder patriarcal da Igreja. E isto explica porque o Vaticano não pode aceitar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, não pode aceitar a igualdade das mulheres, não pode permitir que as mulheres che­guem a simbolizar a autoridade institucional dentre da religião, pois toda a estrutura do poder e da autoridade da Igreja está baseada na negação da soberania moral das mulheres, no que respeita ao seu próprio corpo, à sua sexualidade e à sua capacidade de reprodução .

A obsessão do Vaticano contra o sacerdócio das mulheres não é senão o reverso desta medalha. Não pode o Vaticano permitir o acesso das mulheres ao sacerdócio, pois o sacerdócio, tal como o concebe o Vaticano, está baseado e pressupõe o controlo da sexualidade em geral e o controlo da capacidade de reprodução das mulheres em particular. No dia em que o Vaticano conceda às mulheres acesso ao sacerdócio, este deixa de ser o que é. E no dia em que o sacerdócio deixe de ser o que é, o Vaticano não terá nenhuma objecção em admitir as mulheres ao sacerdócio.

Será puro acaso que as primeiras reivindicações formais de mulheres para serem admitidas ao sacerdócio tenham coincidido com a invenção da pílula contraceptiva? Foi em 1963 que uma suíça e depois duas alemãs enviaram ao Concílio Vaticano II o pedido de que se considerasse a admissão de mulheres ao sacerdócio.

A pílula contraceptiva tornou independente a sexualidade da reprodução. A resposta do Vaticano foi a Humanae Vitae . Juntamente com a questão do celibato dos sacerdotes, Paulo VI retirou também a questão da contracepção das deliberações do Concílio Vaticano II. Pensando preservar a autoridade da Igreja, o que conseguiu foi dar-lhe um golpe quase mortal, pois confundiu autoridade com poder.

Com a revolução bioética que estamos a viver, agora é a reprodução que se está a tornar independente da sexualidade. As relações entre os sexos que anteriormente já haviam experimentado uma mudança profunda, como se verão agora afectadas? O que será da ternura, do prazer, do amor? Seremos capazes de aprendê-los, de os experimentar, de os proporcionar, sem passar forçosamente pela reprodução? Pela sexualidade? Pela heterossexualidade? Não são estas manifestações humanas, que sempre existiram, independentemente da reprodução e da sexualidade e da heterossexualidade, só que pelo afã de controlar a sexualidade e a reprodução muitas vezes nos esquecemos disso, até ao ponto de sermos capazes de justificar e de viver uma sexualidade e uma reprodução talvez heterossexuais, porém totalmente carentes de ternura, de prazer e de amor? Não estamos a assistir, precisamente através de fenómenos como o matrimónio gay , a transsexualidade, etc., ao aparecimento de novas estruturas sociais que mostram precisamente que a ternura, o prazer e o amor vão muito mais além das fronteiras definidas pelos do poder?

Talvez chegue um dia em que a mulher, que o corpo humano sexuado, deixe de ser indispensável para a criação de novos indivíduos humanos, para a perpetuação da espécie humana. Nesse dia, o controlo sobre esse corpo dotado duma capacidade específica perderá a sua importância e as estruturas de poder que se formaram para exercer esse controlo perderão também o seu objecto. Vamos permitir que tenhamos de esperar pela chegada desse dia, para inventarmos um mundo mais justo e mais propício para se viver com ternura, prazer e amor?

redescristianas

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