Joke J. Hermsen
A melancolia
é um estado de espírito que nos une através de fronteiras físicas e temporais. É
difícil encontrar um período histórico ou uma cultura sem vestígios de
sentimentos melancólicos.
A proliferação de depressões nas últimas décadas deve-se a muitos factores, mas entre as causas há que contar também com a dificuldade que um número crescente de pessoas sente para fazer face a uma perda. A que se deve esta tendência? Terá que ver com o alto nível de bem-estar a que nos acostumámos? Terá aqui influência a individualização da sociedade? Haverá menos lugar para sentimentos ambivalentes porque queremos sentir-nos continuamente felizes? Abandonámos os meios que utilizávamos para enfrentar as nossas perdas e ajudar o próximo a superar as suas — como a reflexão, a serenidade, o sentido de pertença a um grupo, a arte e a criatividade —, que são precisamente as ferramentas necessárias para transformar a dor de uma perda numa melancolia de muitas tonalidades?
Ao longo do século XX, a melancolia foi sendo
progressivamente substituída pelo termo médico «depressão», e, tal como
aconteceu na Idade Média, perdemos de vista a dualidades dos estados de espírito
sombrios e, em concreto, o lado positivo dos mesmos. A depressão é uma doença
mental que temos de combater com fármacos. Na linguagem comum e na cultura, a
palavra «melancolia» continua a existir. O facto de a ciência declarar como inútil
para os seus fins um termo que continua muito vivo na sociedade diz muito acerca
do paradigma científico deste momento. Investigadoras como Johannisson,
Appignanesi e Dehue são da opinião que o paradigma psiquiátrico adquiriu tons
marcadamente «neurobiológicos» nas últimas décadas. Esta tendência pressupõe
que os transtornos anímicos sejam vistos segundo o chamado «modelo de
entidades», ou seja, como afeções isoladas ou «entidades». Cada vez se tem menos
em conta fatores como a trajetória de vida da pessoa, as experiências pessoais
e as circunstâncias sociais. A depressão é entendida como uma doença mental e combate-se
com medicamentos que modificam os níveis de neurotransmissores, como a
serotonina e a noradrenalina. De acordo com o paradigma atual, a causa da depressão
encontra-se num nível demasiado baixo dessas substâncias. No entanto, segundo Dehue,
que analisou numerosos estudos internacionais sobre o efeito dos
antidepressivos, a eficácia destes fármacos está a ser consideravelmente
exagerada e deve-se, em muitos casos, a um efeito placebo. A prescrição de comprimidos
contra a depressão em grande escala beneficia sobretudo a indústria farmacêutica.
Segundo Karin Johannisson, o facto de se ter
esbatido a diferença entre melancolia e depressão não se deve unicamente à medicalização
do problema, mas também à ideologia vigente, de culto ao mercado livre. O
sujeito deprimido não encaixa no ideal imposto pelo neoliberalismo do Homo economicus
exultante, que vive para o seu trabalho, e é objeto das criticas de otium
e preguiça que recebia o homem ocioso na Idade Média. Na sociedade capitalista
atual, não se gosta que alguém questione a fé cega em Mamon, o deus do dinheiro
que nos trará a felicidade. De um ponto de vista económico, não se toleram as
condutas divergentes ou improdutivas, porque todos têm de contribuir de forma
ativa para a economia, como conclui Dehue em A Epidemia das Depressões. Tudo
parece indicar, aliás, que a mentalidade de mercado baseada na maximização dos
benefícios teve as suas consequências no âmbito da medicina, onde tanto as
administrações públicas como as companhias de seguros impuseram cortes que afetam
sobretudo as sessões terapêuticas e outros tratamentos que exigem demasiado
tempo, o que explica, em parte, que os médicos se tenham deixado seduzir pelos comprimidos
da indústria farmacêutica.
É relevante que precisamente o Geneesmiddelenbulletin1,
em 2016, aquando do seu quinquagésimo aniversário, tenha convidado diferentes conferencistas
a refletir sobre os derivados do uso de psicofármacos e sobre a influência da indústria
farmacêutica na saúde das pessoas. Para além da Trudy Dehue, entre os
conferencistas encontrava-se o professor catedrático dinamarquês Peter Gøtzsche,
que publicou um estudo abrangente sobre os efeitos secundários dos antidepressivos,
e o psiquiatra norte-americano Allen Frances, que denuncia a medicalização das
atitudes divergentes no DSM-5. «Lamentavelmente, os psiquiatras não picaram o
ponto», escreveu o jornalista Karel Berkhout na sua crónica no NRC Hundelsblad.
«A Associação Holandesa de Psiquiatria não aceitou o convite para assistir ao
evento porque, segundo o seu presidente, os conferencistas eram «críticos
notórios» da psiquiatria e «não havia espaço suficiente para uma abordagem
positiva».» Este desencontro não augura nada de bom para o debate sobre o
tratamento adequado da depressão, nem para um diálogo sério sobre os efeitos primários
e secundários dos psicofármacos, mas demonstra, sobretudo, que estamos muito longe
de alcançar um consenso sobre a forma de entender e tratar a depressão e a
melancolia.
Seja como for, haverá que criar de novo espaços
para a deceção, o medo e a tristeza na nossa sociedade, fortemente medicalizada
e comercializada, para aprendermos a encarar as perdas e não nos deixarmos
arrastar por sentimentos sombrios. Para isso, talvez possamos encontrar inspiração
noutras culturas, onde a melancolia ainda é considerada como mais um dos
elementos da condição humana. Aliás, é importante observar a questão de um ponto
de vista cultural mais amplo, visto que a melancolia não é um estado de espírito
exclusivo dos homens ocidentais brancos com rasgos de genialidade, mas constitui
uma parte importante da nossa condição e, como tal, oferece a possibilidade de
nos compreendermos melhor uns aos outros.
1
Literalmente, «B0letim de Medicamentos», revista mensal publicada nos Países Baixos
pela fundação homónima. (N. de T.)
(do capítulo Luto e Melancolia – “Melancolia
em Tempos de Perturbação”, Joke J. Hermsen. Quetzal, 2022)
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