terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Melancolia em Tempos de Perturbação

 

Joke J. Hermsen

A melancolia é um estado de espírito que nos une através de fronteiras físicas e temporais. É difícil encontrar um período histórico ou uma cultura sem vestígios de sentimentos melancólicos.  

A proliferação de depressões nas últimas décadas deve-se a muitos factores, mas entre as causas há que contar também com a dificuldade que um número crescente de pessoas sente para fazer face a uma perda. A que se deve esta tendência? Terá que ver com o alto nível de bem-estar a que nos acostumámos? Terá aqui influência a individualização da sociedade? Haverá menos lugar para sentimentos ambivalentes porque queremos sentir-nos continuamente felizes? Abandonámos os meios que utilizávamos para enfrentar as nossas perdas e ajudar o próximo a superar as suas — como a reflexão, a serenidade, o sentido de pertença a um grupo, a arte e a criatividade —, que são precisamente as ferramentas necessárias para transformar a dor de uma perda numa melancolia de muitas tonalidades?

Ao longo do século XX, a melancolia foi sendo progressivamente substituída pelo termo médico «depressão», e, tal como aconteceu na Idade Média, perdemos de vista a dualidades dos estados de espírito sombrios e, em concreto, o lado positivo dos mesmos. A depressão é uma doença mental que temos de combater com fármacos. Na linguagem comum e na cultura, a palavra «melancolia» continua a existir. O facto de a ciência declarar como inútil para os seus fins um termo que continua muito vivo na sociedade diz muito acerca do paradigma científico deste momento. Investigadoras como Johannisson, Appignanesi e Dehue são da opinião que o paradigma psiquiátrico adquiriu tons marcadamente «neurobiológicos» nas últimas décadas. Esta tendência pressupõe que os transtornos anímicos sejam vistos segundo o chamado «modelo de entidades», ou seja, como afeções isoladas ou «entidades». Cada vez se tem menos em conta fatores como a trajetória de vida da pessoa, as experiências pessoais e as circunstâncias sociais. A depressão é entendida como uma doença mental e combate-se com medicamentos que modificam os níveis de neurotransmissores, como a serotonina e a noradrenalina. De acordo com o paradigma atual, a causa da depressão encontra-se num nível demasiado baixo dessas substâncias. No entanto, segundo Dehue, que analisou numerosos estudos internacionais sobre o efeito dos antidepressivos, a eficácia destes fármacos está a ser consideravelmente exagerada e deve-se, em muitos casos, a um efeito placebo. A prescrição de comprimidos contra a depressão em grande escala beneficia sobretudo a indústria farmacêutica.

Segundo Karin Johannisson, o facto de se ter esbatido a diferença entre melancolia e depressão não se deve unicamente à medicalização do problema, mas também à ideologia vigente, de culto ao mercado livre. O sujeito deprimido não encaixa no ideal imposto pelo neoliberalismo do Homo economicus exultante, que vive para o seu trabalho, e é objeto das criticas de otium e preguiça que recebia o homem ocioso na Idade Média. Na sociedade capitalista atual, não se gosta que alguém questione a fé cega em Mamon, o deus do dinheiro que nos trará a felicidade. De um ponto de vista económico, não se toleram as condutas divergentes ou improdutivas, porque todos têm de contribuir de forma ativa para a economia, como conclui Dehue em A Epidemia das Depressões. Tudo parece indicar, aliás, que a mentalidade de mercado baseada na maximização dos benefícios teve as suas consequências no âmbito da medicina, onde tanto as administrações públicas como as companhias de seguros impuseram cortes que afetam sobretudo as sessões terapêuticas e outros tratamentos que exigem demasiado tempo, o que explica, em parte, que os médicos se tenham deixado seduzir pelos comprimidos da indústria farmacêutica.

É relevante que precisamente o Geneesmiddelenbulletin1, em 2016, aquando do seu quinquagésimo aniversário, tenha convidado diferentes conferencistas a refletir sobre os derivados do uso de psicofármacos e sobre a influência da indústria farmacêutica na saúde das pessoas. Para além da Trudy Dehue, entre os conferencistas encontrava-se o professor catedrático dinamarquês Peter Gøtzsche, que publicou um estudo abrangente sobre os efeitos secundários dos antidepressivos, e o psiquiatra norte-americano Allen Frances, que denuncia a medicalização das atitudes divergentes no DSM-5. «Lamentavelmente, os psiquiatras não picaram o ponto», escreveu o jornalista Karel Berkhout na sua crónica no NRC Hundelsblad. «A Associação Holandesa de Psiquiatria não aceitou o convite para assistir ao evento porque, segundo o seu presidente, os conferencistas eram «críticos notórios» da psiquiatria e «não havia espaço suficiente para uma abordagem positiva».» Este desencontro não augura nada de bom para o debate sobre o tratamento adequado da depressão, nem para um diálogo sério sobre os efeitos primários e secundários dos psicofármacos, mas demonstra, sobretudo, que estamos muito longe de alcançar um consenso sobre a forma de entender e tratar a depressão e a melancolia.

Seja como for, haverá que criar de novo espaços para a deceção, o medo e a tristeza na nossa sociedade, fortemente medicalizada e comercializada, para aprendermos a encarar as perdas e não nos deixarmos arrastar por sentimentos sombrios. Para isso, talvez possamos encontrar inspiração noutras culturas, onde a melancolia ainda é considerada como mais um dos elementos da condição humana. Aliás, é importante observar a questão de um ponto de vista cultural mais amplo, visto que a melancolia não é um estado de espírito exclusivo dos homens ocidentais brancos com rasgos de genialidade, mas constitui uma parte importante da nossa condição e, como tal, oferece a possibilidade de nos compreendermos melhor uns aos outros.

1 Literalmente, «B0letim de Medicamentos», revista mensal publicada nos Países Baixos pela fundação homónima. (N. de T.)

(do capítulo Luto e Melancolia – “Melancolia em Tempos de Perturbação”, Joke J. Hermsen. Quetzal, 2022)

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