quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Nazismo 2.0

Por Ilan Pappé

Continuo a acreditar que esta total falta de misericórdia e uma crueldade sem precedentes demonstram que estamos no fim do pior capítulo da história moderna da Palestina.

Se alguém se está a perguntar o que o último discurso louco e alucinante de Trump sobre Gaza produziu em Israel, tudo o que tem de fazer é aprender hebraico ou perguntar a alguém que perceba de hebraico, o discurso da política israelita e dos media.

«É claro que ninguém quer o povo sofredor de Gaza, e não estou a falar do Hamas, mas de todo o povo de Gaza; "É por isso que a Jordânia e o Egito rejeitam a fantástica proposta de Trump", explicou o principal comentador de assuntos árabes no principal canal de horário nobre de Israel, a 6 de fevereiro de 2025.

Pergunto-me se os nazis estavam a dizer algo assim sobre os judeus.

Todos os possíveis limites humanos e morais foram transcendidos para o domínio público em Israel.

Tudo é válido quando se trata dos palestinianos em geral e do povo de Gaza em particular. Já não se trata de falar deles como animais, é muito pior. São retratados como a pior forma de humanidade na nova narrativa, que absolve Israel de quaisquer crimes contra eles.

Os políticos falam assim, os grandes meios de comunicação legitima o seu discurso, e os rabinos nas sinagogas — instituições que estão mais povoadas por judeus israelitas do que nunca — pregam o genocídio dos palestinianos sem vergonha ou inibição.

Tudo isto prepara os próximos estágios do genocídio.

A calma temporária no genocídio não se deve ao facto de o mundo lhe ter posto fim. A operação foi interrompida porque Trump queria que os reféns fossem libertados à sua imagem e depois permitir que os israelitas fizessem o que bem entendessem.

Mesmo que deixássemos de construir colonatos e deixássemos de ver milhões de pessoas a manifestarem-se pela Palestina, estaríamos a enganar-nos. Não acabou. A insana nação de Israel tem agora mais pessoas e políticos dispostos a apoiar o genocídio do que aqueles que se opõem a ele, se é que existem.

Continuo a acreditar que esta total falta de misericórdia e uma crueldade sem precedentes são a manifestação de que estamos no fim do pior capítulo da história moderna da Palestina.

Na verdade, estou ainda mais certo de que, tal como na Alemanha pós-nazi, mais judeus israelitas do que eu esperava acordarão inicialmente e sentirão remorso e culpa pelo seu silêncio perante o holocausto que Israel está a infligir aos palestinianos.

Mas, por enquanto, é um apelo desesperado para não ficarmos apáticos ou complacentes por causa do cessar-fogo. Trump fez renascer todas as forças obscuras de Israel com o seu plano – ou capricho, o que quer que seja – de expulsar o povo de Gaza e transformar a terra numa Riviera Americana.

Os governos europeus, incluindo o britânico, condenaram a ideia, o que é de louvar. Por isso, mostre um pouco de humanidade. Mas isto não é suficiente, e não conseguem ver as implicações mais vastas não só da sua inacção actual, mas também da sua cumplicidade no genocídio desde 7 de Outubro de 2023.

Era a era das ilusões de ótica.  Líderes  como o fanático Naftali Bennett lideram agora as sondagens em Israel e, sim, ele pode derrotar Netanyahu, mas não oferece uma abordagem mais humana aos milhões de palestinianos sob o domínio israelita, que ainda são vistos como um problema que só pode ser resolvido através da destruição e eliminação.

A política interna de Israel nada tem a ver com a atitude e as políticas unanimemente partilhadas por Israel em relação aos palestinianos.

A grande imprensa ocidental – para não falar dos fiéis aliados de Israel, desde o  Jewish Chronicle, o porta-voz do fanático Israel no Reino Unido, à  Fox News  nos EUA – fornece a cobertura internacional que permite a Israel safar-se desta retórica e deste plano anunciado.

As 41 línguas em que a BBC transmite falam a mesma linguagem: desumanizar os palestinianos e garantir a imunidade a Israel e às suas políticas.

Temos ainda de acreditar que, a longo prazo, por mais horrível que este cenário seja, é o prelúdio de um futuro muito melhor. Devemos também acreditar que este prelúdio pode e deve ser reduzido ao mínimo.

Não tenho uma varinha mágica para uma reviravolta tão dramática, mas não estamos sozinhos, por isso vamos colocar as nossas mentes e esforços para além das capelas e da desunião e encontrar uma forma ainda melhor, para além do trabalho extraordinário que fizemos como movimento de solidariedade, para evitar as próximas fases do apagamento da Palestina como ideia. o povo e o país.

Uma coisa é certa: a resistência e a resiliência palestinianas continuam a ser as melhores garantias de que estes planos demoníacos não serão totalmente implementados. Mas o preço a pagar pode ser demasiado elevado e pode ser evitado.

Estamos num momento em que precisamos desesperadamente de liderança e direcção palestinianas, e ainda não as alcançámos. Mas há demonstrações esperançosas de unidade, como  nos descreveu  recentemente o nosso editor Ramzy Baroud.

Isto não é suficiente, mas dá esperança para o futuro próximo.

Ainda há tempo para acordar o Norte Global: se não os seus líderes, então os seus políticos ainda têm consciência, e se não os grandes meios de comunicação, então os meios de comunicação alternativos.

Temos o direito de exigir muito mais do Sul, encorajados pelo exemplo da Colômbia, e de nos interrogarmos: onde estão a Malásia e a Indonésia? Onde fica o Paquistão?

Isto tem a ver tanto com a justiça global como com a Palestina, e também com a descolonização do mundo como um todo, e não apenas da Palestina, para que a unidade global possa enfrentar em conjunto os formidáveis ​​desafios que só podem ser ultrapassados ​​em conjunto, desde o aquecimento global à pobreza global e ao movimento de milhões de pessoas do norte para o sul em busca de vida e sobrevivência.

Esta é a única forma de derrotar o populismo, o fascismo e o racismo, de que muitos de nós, especialmente os palestinianos, ainda hoje sofremos.

Fonte

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Sismo em Lisboa e a tasca dos bandidos

 

Alguma coisa tem tremido em Lisboa, mais do que o sismo de magnitude de 4,7 na escala de Richter e que terá sido o segundo no período de seis meses, prenúncio de sismo muito mais grave segundo a opinião dos entendidos. E essa coisa é o governo de Montenegro/PSD/CDS/PP mais a dita “casa da democracia” que ultimamente se tem assemelhado mais a uma praça da peixeirada ou tasca de bairro, ilustrando a verdadeira natureza da classe política do establishment que por ali pulula. Assim como o sismo que poderá ter réplicas mais fortes, as ondas de propagação da corrupção no governo e da bagunça no Parlamento irão ocorrer na política do país, e com mais violência.

Os casos e casinhos do governo AD

Antes de perfazer um ano de vida, o governo está a ser confrontado com “casos e casinhos”, muito à semelhança do governo que o antecedeu e que ditaram de certa forma o seu fim, apesar de gozar de maioria absoluta. Pouco tempo de ter procedido à remodelação governamental substituindo meia dúzia de secretários de estado em outros tantos ministérios, o chefe do governo é acusado de ter criado, juntamente com a família, uma empresa para o negócio do imobiliário, tal como fizera um dos seus secretários de estado demitido, que assim se iria aproveitar de uma alteração legislativa prevista antecipadamente e já em preparação.

Montenegro veio logo a terreiro dizer que não há conflito de interesses, porque – imaginem lá! – vendera a quota à mulher e aos filhos. Ou seja, uma forma assaz pouco rural de chamar idiotas aos portugueses.  No entanto, os factos não são desmentidos pelo próprio: a empresa em apenas três anos de vida facturou 650 mil euros e apresentou lucros de cerca de 345 mil euros. Ainda não são conhecidas as contas referentes a 2024. Ora, quem tem telhados de vidro, não pode atirar pedras aos do vizinho. O governo PSD/CDS/PP torna-se, embora já o fosse, cada vez mais parecido ao governo PS, no modus operandi e na qualidade dos figurões que o constituem. Quanto a esta questão Marcelo, ao contrário do que fez em relação ao PS, comenta que "não se mete" em remodelações, nem em caos e casinhos, pois Montenegro "é juiz".

A oposição indigna-se pela falta de delicadeza do governo em não se dar ao trabalho de apresentar explicações quanto às razões da referida remodelação e de esta não ter visado os ministros, em especial os mais visados pelas críticas, ministra da saúde e da Administração Interna, aliás, diga-se de passagem, as que mais têm exposto as suas ignorância e incompetência. Também se diga que sabedoria e competência são coisas que não lhes são necessárias porque o seu papel é o de comissárias políticas: uma para a destruição do SNS; a outra para controlo e reforço das polícias e do seu desempenho na repressão contra os trabalhadores e o povo que se manifesta descontente. Fica-se com a sensação de que a birra será mais de o PS não estar no governo a fazer o mesmo ou algo parecido.

Parlamento ou tasca dos bandidos?

Quanto à dita “casa da democracia” que tem sido abandalhada pelo partido da extrema-direita, que foi legalizado e promovido por todo o establishment, desde os partidos do poder aos media mainstream. Os primeiros querendo utilizá-lo na disputa pelo voto enfraquecendo o adversário mais directo: o PS querendo roubar votos ao PSD e este vitimizando-se com a putativa aliança entre PS e a extrema-direita. Os segundos expressando os interesses e a vontade de uma parte da elite que acha que a gestão da coisa pública se faz com mais eficiência se se utilizar o cacete e não a cenoura. O PS só se pode queixar de si próprio quando os seus deputados são agredidos verbalmente, e vai com muita sorte se não começarem a ser agredidos fisicamente. O feitiço em breve se virará contra o feiticeiro.

A selecção de marginais que se manifesta dentro do partido de extrema-direita, acusados de roubo, pedofilia, agressão sexual, violência doméstica ou violência na disputa pelo tacho dentro do próprio partido, racismo e xenofobia, é feita, segundo as denúncias internas, por critérios pessoais do chefe. Faz lembrar processos semelhantes ocorridos no passado e em outras bandas, por exemplo, como Louis Bonaparte tomou o poder em França no século XIX, usando precisamente um bando de rufias, pagos a dinheiro e a aguardente, e recrutados nas docas e no bas fond de Paris. Foi o abrir do caminho ao poder terrorista da elite, poder esse que também se mascarou de “apolítico” e de “anti-sistema”, e que levou a França à derrota militar e o povo francês à ruína e à miséria. Marx referiu na altura que a França já tinha sido governada por meretrizes mas a primeira vez por um chulo.

Em vez de denunciar a realidade da degradação do Parlamento e colocar-lhe ponto final, os partidos da ordem escudam-se por trás da segunda figura do estado, que, por sua vez, descarta a responsabilidade por “não ser polícia de deputados”. Todos conciliam e acabarão por serem corresponsáveis pela destruição do próprio regime democrático parlamentar burguês. Insultar pessoalmente deputados é caso de polícia, mas atendendo ao contexto o caso torna-se abertamente político. O insulto e a provocação rasteira não fazem parte da liberdade de expressão ou do confronto sério de ideias diferentes quanto à resolução dos problemas do país.

Sabemos todos da ambiguidade do significado de “liberdade de expressão”, que é de classe, ou de “discurso de ódio”, podem servir como arma política para perseguir todo aquele que, independentemente das razões, se oponha ao establishment. Mas o uso do ataque pessoal, por ausência de argumentos políticos, acompanhado pela violência terrorista, verbal ou física, faz parte do instrumentário do fascismo. E perante este, não pode haver tergiversação, mas sim um combate frontal. Os partidos que ora se indignam com os insultos soezes parecem que estão à espera que se repita o que aconteceu com o partido Aurora Dourada na Grécia. Foi preciso um dirigente daquele partido ter assassinado um rapper antifascista, ter havido mais uma morte de um trabalhador imigrante paquistanês, espancamentos graves de pescadores egípcios e de sindicalistas comunistas perpetrados por militantes do mesmo partido, para que a formação de extrema-direita fosse ilegalizada sob a acusação de “organização criminosa”.

 “O fascismo é uma minhoca que se infiltra na maçã. Ou vem com botas cardadas ou com pezinhos de lã” - Sérgio Godinho (aqui) - Vasco Gargalo

A arte da corrupção

A corrupção tem sido e é uma preocupação do PSD/CDS e de Montenegro, não para se combater e eventualmente erradicar, mas para a proteger e deixá-la funcionar livre e impunemente. Esta é a conclusão que retiramos dos factos, de algumas acções e da falta de outras por parte do governo AD. O PSD quer criar um alerta automático para os políticos e detentores de funções governativas, saberem em tempo útil quem consulta o seu património. Ora, esta medida não visa uma maior transparência sobre a origem e a forma de aquisição do património de quem gere a coisa pública, mas intimidar o curioso ou o denunciante e persegui-lo caso os políticos o entendam. Mais ainda, o PSD quer que os políticos e os detentores de altos cargos públicos passem a dar ou não autorização para que os seus dados sejam automaticamente confirmados no fisco e notariado. A preocupação é tornar o sistema ainda mais opaco e os corruptos poderem estar a salvo, o que contraria todas as directivas de Bruxelas.

Há razões de sobra para que o PSD esteja deveras preocupado, é que o caso resultante da operação Tutti Frutti foi descongelado e há deputados, presidentes de junta e vereadores do PSD, bem como do PS, entre os 60 acusados, que respondem por 463 crimes de corrupção ativa e passiva, prevaricação, tráfico de influência, branqueamento, burla qualificada, falsificação de documento, abuso de poder e recebimento indevido de vantagem, algum dos quais na forma agravada. O Ministério Público quer que 29 arguidos devolvam mais de 580 mil euros ao estado. Alguns destes acusados ainda resistem em abdicar do tacho a que estão agarrados e, pelo menos um, ainda são responsáveis pela escolha de candidatos do partido às próximas eleições autárquicas. É o bloco central da corrupção no seu melhor. Sendo questionado sobre as questões de segurança e corrupção, o monárquico PR Marcelo não está com meios termos: “o que interessa é a imagem que as pessoas têm”.

Para tornar os órgãos de comunicação social mais amigáveis, que não ousem pensar sequer em denunciar as torpezas do governo ou dos seus elementos, o governo foi enfiar nos bolsos dos proprietários dos ditos, na maioria grandes grupos económicos, alguns na falência como a Impresa/Pinto Balsemão, a módica quantia de 55,2 milhões de euros para concretizar as tais “30 medidas” que integram o “Plano de Ação para os Media”. O pretexto é fomentar a "literacia" dos cidadãos portugueses, isto é, comprar “a sustentabilidade, o pluralismo e a independência da comunicação social em Portugal, promovendo um ecossistema mediático robusto, transparente e de referência”. A preocupação não é a liberdade de expressão, para os cidadãos, mas o controlo dos media na justa medida em que o PSD pretende obter maioria absoluta nas próximas eleições legislativas.

O governo está para durar?

Não deixa de ser interessante ver as posições dos partidos perante a ameaça do chefe da extrema-direita de apresentar na Assembleia da República uma moção de censura ao governo por se terem adensado “as dúvidas sobre a integridade do primeiro-ministro”, isto é, se venham a confirmar as suspeitas da sua empresa (que agora não é dele mas da família, uma paródia!) ter feito negócios com o estado. O PS, pela boca do seu líder, foi peremptório jamais irá apoiar tal moção. Os restantes partidos da oposição seguiram posição semelhante. Parece que todos temem a antecipação de eleições legislativas. O chefe do PSD saliva para que aconteçam e o mais depressa possível, está desejoso de aplicar medidas que neste momento não consegue ou teme fazer, como seja, mexer na Segurança Social, como já afirmara, não será nesta legislatura, mas será na próxima atendendo ao facto que acha que o PS de lhe deu "um livro verde" para o fazer. Montenegro diz: “eu estou aqui para dar e durar”, mas esse não é o seu pensamento quanto a este governo, é apenas quanto à sua pessoa.

É tempo de se correr com toda esta gente do poder e de vez!

Imagem de destaque: "Indigitação de meia-noite"

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Bem e mal

Giorgio Agamben

A antiga doutrina segundo a qual o mal é apenas a privação do bem e, portanto, não existe em si mesmo, deve ser corrigida e integrada no sentido de que não é tanto privação, mas antes a perversão do bem (com o codicilo, formulado por Ivan Illich, corruptio optimi pexima, «não há nada pior que um bem corrupto»). A ligação ontológica com o bem permanece desta forma, mas resta pensar sobre como e em que sentido um bem pode tornar-se pervertido e corrompido. Se o mal é um bem pervertido, se ainda reconhecemos nele uma figura corrompida e distorcida do bem, como podemos combatê-lo quando hoje nos encontramos diante dele em todas as esferas da vida humana?

A corrupção do bem era familiar ao pensamento clássico na doutrina política de que cada uma das três formas justas de governo – monarquia, aristocracia e democracia (o governo de um, de poucos ou de muitos) – degenerou fatalmente em tirania, oligarquia e oclocracia. Aristóteles (que considera a própria democracia uma corrupção do governo de muitos) usa o termo parekbasis, desvio (de parabaino, andar ao lado, para). Se perguntarmos agora onde eles se desviaram, descobriremos que eles se desviaram, por assim dizer, em direção a si mesmos. As formas corruptas de constituição assemelham-se, de facto, às saudáveis, mas o bem que nelas estava presente (o interesse comum, o koinon) voltou-se agora para o seu próprio e para o particular (idion). Ou seja, o mal é um certo uso do bem e a possibilidade desse uso perverso está inscrita no próprio bem, que assim sai de si mesmo, move-se, por assim dizer, ao seu lado. É numa perspectiva semelhante que devemos ler o teorema da corruptio optimi pexima que define a modernidade. O gesto do samaritano, que imediatamente ajuda o próximo sofredor, ultrapassa-se e transforma-se na organização de hospitais e serviços assistenciais, que, embora orientados para o que se acredita ser bom, acabam por se converter num mal. Isto é, o mal que enfrentamos resulta da tentativa de erigir a bondade num sistema social objectivo.

hospitalidade que todos podem e devem dar aos outros transforma-se assim em hospitalização gerida pela burocracia estatal.

Isto é, o mal é uma espécie de paródia (também aqui há uma paródia, um desvio para o lado) do bem, uma objetivação hipertrófica que o move para sempre para fora de nós. E não é precisamente uma paródia tão mortal que todo o tipo de progressismo nos impõe hoje em todo o lado como a única forma possível de coexistência entre os homens? O “Estado administrativo” e o “Estado de segurança”, como os chamam os cientistas políticos, pretendem governar o bem, tirando-o das nossas mãos e objectivando-o numa esfera separada. E será a chamada inteligência artificial outra coisa senão um deslocamento para fora de nós do “bem do intelecto”, quase como se, numa espécie de Averroísmo exasperado, o pensamento pudesse existir sem uma relação com um sujeito pensante?

Diante dessas perversões, devemos reconhecer cada vez o pequeno bem que foi arrancado de nossas mãos para libertá-lo da máquina letal na qual está, “para bons propósitos”, capturado.

21 de Janeiro de 2025

Fonte

Imagem: Solomon, Simeon. Corruptio Optimi Pessima. 1843. Woodblock. The British Museum, London.

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Conjuntura e revolução

Giorgio Agamben

É um facto que não nos devemos cansar de reflectir que um dos termos-chave do nosso vocabulário político – revolução – foi retirado da astronomia, onde designa o movimento de um planeta à medida que viaja na sua órbita. Mas outro termo que, na tendência geral de substituir categorias económicas por categorias políticas que caracteriza o nosso tempo, tomou o lugar de revolução, também provém do léxico astronómico. Pretendemos referir o termo “conjuntura”, para o qual Davide Stimilli chamou a atenção num estudo exemplar.

Este termo, que designa “a fase do ciclo económico que a actividade económica atravessa num determinado curto período”, é na verdade uma modificação do termo “conjunção”, que significa a coincidência da posição de várias estrelas num determinado momento.

Stimilli cita a passagem do ensaio de Warburg sobre a Antiga Adivinhação Pagã em Textos e Imagens da Era de Lutero, em que a conjunção e a revolução são justapostas: «Só dentro de vastos períodos de tempo, chamados revoluções, se poderiam esperar tais conjunções. Num sistema cuidadosamente elaborado, distinguiam-se grandes e grandes conjunções; estas últimas eram as mais perigosas, devido ao encontro dos planetas superiores Saturno, Júpiter e Marte. Quanto mais conjunções coincidiam, mais aterrador parecia o facto, embora o planeta com carácter mais favorável pudesse influenciar o pior." E é significativo que um revolucionário como Auguste Blanqui, desiludido com as suas expectativas, tenha conseguido conceber no final da sua vida a história dos homens como algo que, tal como o movimento das estrelas, se repete infinitamente e recita eternamente as mesmas representações.

O que hoje se passa diante dos nossos olhos é precisamente um fenómeno deste tipo, em que uma situação económica que é por natureza contingente e arbitrária tenta impor o seu domínio terrível sobre toda a vida social. Seria bom, então, abandonar sem reservas a ligação entre a política e as estrelas e cortar em todas as áreas o vínculo que afirma unir o destino astronómico e a revolução, a necessidade e a conjuntura económica, as ciências naturais e a política. A política não está inscrita nas esferas celestes nem nas leis da economia: está nas nossas mãos fracas e na clareza com que negamos qualquer pretensão de aprisioná-las em conjunturas e revoluções.

15 de Janeiro de 2025

Imagem: Aqui