Albert Camus
A palavra «peste» acabava de ser pronunciada
pela primeira vez. Neste momento da narrativa, que deixa Rieux atrás da sua
janela, permitir-se-á ao narrador que justifique a incerteza e o espanto do
médico, visto que, com cambiantes, a sua reação foi a da maior parte dos nossos
concidadãos. Os flagelos, com efeito, são uma coisa comum, mas acredita-se dificilmente
neles quando nos caem sobre a cabeça. Houve no mundo tantas pestes como
guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas
igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido como o estavam os seus
concidadãos, e por isso é necessário compreender as suas hesitações. É por isso
que é preciso compreender também que ele se dividisse entre a dúvida e a
confiança. Quando rebenta uma guerra, as pessoas dizem: «Não pode durar muito,
seria estúpido.» E, sem dúvida, uma guerra é muito estúpida, mas isso não a
impede de durar. A estupidez insiste sempre e compreendê-la-íamos se não pensássemos
sempre em nós. Os nossos concidadãos, a esse respeito, eram como toda a gente:
pensavam em si próprios. Por outras palavras, eram humanistas: não acreditavam
nos flagelos. O flagelo não está à medida do Homem; diz-se então que o flagelo
é irreal, que é um mau sonho que vai passar. Ele, porém, não passa, e de mau
sonho em mau sonho, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar,
pois não tomaram as suas precauções. Os nossos concidadãos não eram mais
culpados do que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo
era ainda possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis.
Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como
poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, as viagens e as
discussões? Julgavam-se livres e nunca alguém será livre enquanto existirem os
flagelos.
E, ainda depois de o doutor Rieux ter
reconhecido, perante o seu amigo, que um punhado de doentes dispersos acabava,
sem prevenir, de morrer da peste, o perigo continuava irreal para ele.
Simplesmente, quando se é médico faz-se uma ideia da dor e tem-se um pouco mais
de imaginação. Ao olhar pela janela a cidade que não tinha mudado, mal pode
dizer-se que Rieux sentia nascer dentro de si esse ligeiro enjoo perante o
futuro que se chama inquietação. Ele procurava reunir no seu espírito o que
sabia sobre essa doença. Flutuavam números na sua memória e dizia a si próprio
que as três dezenas de pestes que a História conheceu tinham feito perto de cem
milhões de mortos. Mas, o que são cem milhões de mortos? Quando se fez a
guerra, mal se sabe já o que é um morto. E, visto que um homem morto só pesa se
o vimos morto, cem milhões de cadáveres semeados através da História não passam
de um fumo na imaginação. O médico lembrava-se da peste de Constantinopla, que,
segundo Procópio, tinha feito dez mil vítimas num só dia. Dez mil mortos fazem
cinco vezes o público de um grande cinema. Aí está o que se deveria fazer:
juntam-se as pessoas à saída de cinco cinemas, conduzem-se a uma praça da
cidade e fazem-se morrer em monte, para se compreender alguma coisa. Ao menos,
poderiam então pôr-se algumas caras conhecidas nessa pilha anónima. Mas,
naturalmente, isto é impossível de realizar e, depois, quem conhece dez mil
caras? Além disso, é bem sabido que as pessoas como Procópio não sabiam contar.
Em Cantão, há setenta anos, quarenta mil ratos tinham morrido da peste antes
que o flagelo se interessasse pelos habitantes. Mas em 1871 não havia maneira
de contar os ratos. Fazia-se o cálculo aproximadamente, por grosso, com
evidentes probabilidades de erro. Contudo, se um rato tem trinta centímetros de
comprimento, quarenta mil ratos em fila fariam...
Mas o médico impacientava-se. Alguns casos não
fazem uma epidemia e basta que se tomem precauções. Era preciso limitar-se
àquilo que se sabia: o entorpecimento e a prostração, os olhos encarnados, a
boca suja, as dores de cabeça, os tumores, a sede terrível, o delírio, as
manchas no corpo, o esquartejamento interior e, ao fim de tudo isso... Ao fim
de tudo isso, uma frase vinha ao espírito do doutor Rieux, uma frase que no seu
manual terminava justamente a enumeração dos sintomas: «O pulso torna-se
filiforme e a morte sobrevém por ocasião de um movimento insignificante.» Sim,
ao fim de tudo isso estava-se preso por um fio, e três quartos das pessoas, era
o número exato, eram bastante impacientes para fazer esse movimento
impercetível que as precipitava.
O médico continuava a olhar pela janela. De um
lado da vidraça, o céu fresco da primavera; do outro, a palavra que ressoava
ainda na sala: a peste. A palavra não continha apenas o que a ciência entendia
dever condensar nela mas uma longa série de imagens extraordinárias, que não
concordavam com esta cidade amarela e cinzenta, moderadamente animada a esta hora,
mais murmurante do que ruidosa, feliz, em suma, se é possível ser-se ao mesmo
tempo feliz e taciturno. E uma tranquilidade tão pacífica e tão indiferente
negava quase sem esforço as velhas imagens do flagelo: Atenas empestada e
abandonada pelas aves, as cidades chinesas cheias de agonizantes silenciosos,
os forçados de Marselha empilhando em covas os corpos pegajosos, a construção,
na Provença, de um grande muro que devia deter o vento furioso da peste, Jafa e
os seus mendigos horrendos, os catres húmidos e apodrecidos colados à terra batida
do hospital de Constantinopla, os doentes tirados com ganchos, o carnaval dos
médicos mascarados durante a Peste Negra, os acasalamentos dos vivos nos
cemitérios de Milão, os carros de mortos na aterrada Londres, as noites e os
dias cheios em toda aparte e sempre do grito interminável dos homens. Não, tudo
isso não era ainda bastante forte para matar a paz deste dia. Do outro lado da
janela, a campainha de um carro elétrico invisível tilintava de repente e
refutava num segundo a crueldade da dor. Só o mar, ao fundo do xadrez baço das casas,
testemunhava o que há de inquietante e de jamais tranquilo neste mundo. E o
doutor Rieux, que olhava para o golfo, pensava nessas fogueiras de que fala
Lucrécio e que os atenienses atacados pela doença faziam subir à beira-mar.
Levavam para lá os mortos durante a noite, mas o sítio era pequeno e os vivos
batiam-se a golpes de archote para lá colocarem os que lhes tinham sido
queridos, sustentando lutas sangrentas de preferência a abandonarem os
cadáveres. Podia imaginar-se as fogueiras rubras diante da água tranquila e
negra, os combates de archotes na noite crepitante de faúlhas e densos vapores
envenenados subindo para o céu atento. Podia recear-se...
Mas esta vertigem não se sustentava perante a
razão. É verdade que a palavra «peste» tinha sido pronunciada, é verdade que
nesse mesmo minuto o flagelo abalava e deitava por terra uma ou duas vítimas.
Mas, que diabo, aquilo podia deter-se. O necessário era reconhecer claramente o
que devia ser reconhecido, expulsar, enfim, as sombras inúteis, tomar as medidas
que convinham. Em seguida a peste pararia, porque a peste não se imaginava, ou
imaginava-se erradamente. Se ela parasse - o que era o mais provável - tudo iria bem. Em caso contrário,
saber-se-ia ó que ela era e se não havia meio de se defender dela primeiro,
para a vencer em seguida.
O médico abriu a janela e o ruído da cidade aumentou de repente. De uma oficina vizinha subia o silvo breve e repetido de uma serra mecânica. Rieux despertou. Aí estava a certeza, no trabalho de todos os dias. O resto dependia de fios, de movimentos insignificantes, não se podia perder tempo com isso. O essencial era exercer bem a sua profissão.
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