sexta-feira, 13 de agosto de 2021

A Peste

 

Albert Camus

A palavra «peste» acabava de ser pronunciada pela primeira vez. Neste momento da narrativa, que deixa Rieux atrás da sua janela, permitir-se-á ao narrador que justifique a incerteza e o espanto do médico, visto que, com cambiantes, a sua reação foi a da maior parte dos nossos concidadãos. Os flagelos, com efeito, são uma coisa comum, mas acredita-se dificilmente neles quando nos caem sobre a cabeça. Houve no mundo tantas pestes como guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido como o estavam os seus concidadãos, e por isso é necessário compreender as suas hesitações. É por isso que é preciso compreender também que ele se dividisse entre a dúvida e a confiança. Quando rebenta uma guerra, as pessoas dizem: «Não pode durar muito, seria estúpido.» E, sem dúvida, uma guerra é muito estúpida, mas isso não a impede de durar. A estupidez insiste sempre e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Os nossos concidadãos, a esse respeito, eram como toda a gente: pensavam em si próprios. Por outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à medida do Homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um mau sonho que vai passar. Ele, porém, não passa, e de mau sonho em mau sonho, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções. Os nossos concidadãos não eram mais culpados do que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo era ainda possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, as viagens e as discussões? Julgavam-se livres e nunca alguém será livre enquanto existirem os flagelos.

E, ainda depois de o doutor Rieux ter reconhecido, perante o seu amigo, que um punhado de doentes dispersos acabava, sem prevenir, de morrer da peste, o perigo continuava irreal para ele. Simplesmente, quando se é médico faz-se uma ideia da dor e tem-se um pouco mais de imaginação. Ao olhar pela janela a cidade que não tinha mudado, mal pode dizer-se que Rieux sentia nascer dentro de si esse ligeiro enjoo perante o futuro que se chama inquietação. Ele procurava reunir no seu espírito o que sabia sobre essa doença. Flutuavam números na sua memória e dizia a si próprio que as três dezenas de pestes que a História conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos. Mas, o que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra, mal se sabe já o que é um morto. E, visto que um homem morto só pesa se o vimos morto, cem milhões de cadáveres semeados através da História não passam de um fumo na imaginação. O médico lembrava-se da peste de Constantinopla, que, segundo Procópio, tinha feito dez mil vítimas num só dia. Dez mil mortos fazem cinco vezes o público de um grande cinema. Aí está o que se deveria fazer: juntam-se as pessoas à saída de cinco cinemas, conduzem-se a uma praça da cidade e fazem-se morrer em monte, para se compreender alguma coisa. Ao menos, poderiam então pôr-se algumas caras conhecidas nessa pilha anónima. Mas, naturalmente, isto é impossível de realizar e, depois, quem conhece dez mil caras? Além disso, é bem sabido que as pessoas como Procópio não sabiam contar. Em Cantão, há setenta anos, quarenta mil ratos tinham morrido da peste antes que o flagelo se interessasse pelos habitantes. Mas em 1871 não havia maneira de contar os ratos. Fazia-se o cálculo aproximadamente, por grosso, com evidentes probabilidades de erro. Contudo, se um rato tem trinta centímetros de comprimento, quarenta mil ratos em fila fariam...

Mas o médico impacientava-se. Alguns casos não fazem uma epidemia e basta que se tomem precauções. Era preciso limitar-se àquilo que se sabia: o entorpecimento e a prostração, os olhos encarnados, a boca suja, as dores de cabeça, os tumores, a sede terrível, o delírio, as manchas no corpo, o esquartejamento interior e, ao fim de tudo isso... Ao fim de tudo isso, uma frase vinha ao espírito do doutor Rieux, uma frase que no seu manual terminava justamente a enumeração dos sintomas: «O pulso torna-se filiforme e a morte sobrevém por ocasião de um movimento insignificante.» Sim, ao fim de tudo isso estava-se preso por um fio, e três quartos das pessoas, era o número exato, eram bastante impacientes para fazer esse movimento impercetível que as precipitava.

O médico continuava a olhar pela janela. De um lado da vidraça, o céu fresco da primavera; do outro, a palavra que ressoava ainda na sala: a peste. A palavra não continha apenas o que a ciência entendia dever condensar nela mas uma longa série de imagens extraordinárias, que não concordavam com esta cidade amarela e cinzenta, moderadamente animada a esta hora, mais murmurante do que ruidosa, feliz, em suma, se é possível ser-se ao mesmo tempo feliz e taciturno. E uma tranquilidade tão pacífica e tão indiferente negava quase sem esforço as velhas imagens do flagelo: Atenas empestada e abandonada pelas aves, as cidades chinesas cheias de agonizantes silenciosos, os forçados de Marselha empilhando em covas os corpos pegajosos, a construção, na Provença, de um grande muro que devia deter o vento furioso da peste, Jafa e os seus mendigos horrendos, os catres húmidos e apodrecidos colados à terra batida do hospital de Constantinopla, os doentes tirados com ganchos, o carnaval dos médicos mascarados durante a Peste Negra, os acasalamentos dos vivos nos cemitérios de Milão, os carros de mortos na aterrada Londres, as noites e os dias cheios em toda aparte e sempre do grito interminável dos homens. Não, tudo isso não era ainda bastante forte para matar a paz deste dia. Do outro lado da janela, a campainha de um carro elétrico invisível tilintava de repente e refutava num segundo a crueldade da dor. Só o mar, ao fundo do xadrez baço das casas, testemunhava o que há de inquietante e de jamais tranquilo neste mundo. E o doutor Rieux, que olhava para o golfo, pensava nessas fogueiras de que fala Lucrécio e que os atenienses atacados pela doença faziam subir à beira-mar. Levavam para lá os mortos durante a noite, mas o sítio era pequeno e os vivos batiam-se a golpes de archote para lá colocarem os que lhes tinham sido queridos, sustentando lutas sangrentas de preferência a abandonarem os cadáveres. Podia imaginar-se as fogueiras rubras diante da água tranquila e negra, os combates de archotes na noite crepitante de faúlhas e densos vapores envenenados subindo para o céu atento. Podia recear-se...

Mas esta vertigem não se sustentava perante a razão. É verdade que a palavra «peste» tinha sido pronunciada, é verdade que nesse mesmo minuto o flagelo abalava e deitava por terra uma ou duas vítimas. Mas, que diabo, aquilo podia deter-se. O necessário era reconhecer claramente o que devia ser reconhecido, expulsar, enfim, as sombras inúteis, tomar as medidas que convinham. Em seguida a peste pararia, porque a peste não se imaginava, ou imaginava-se erradamente. Se ela parasse - o que era o mais provável  - tudo iria bem. Em caso contrário, saber-se-ia ó que ela era e se não havia meio de se defender dela primeiro, para a vencer em seguida.

O médico abriu a janela e o ruído da cidade aumentou de repente. De uma oficina vizinha subia o silvo breve e repetido de uma serra mecânica. Rieux despertou. Aí estava a certeza, no trabalho de todos os dias. O resto dependia de fios, de movimentos insignificantes, não se podia perder tempo com isso. O essencial era exercer bem a sua profissão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário