Júlia Nery
No jardim do consulado ressoavam passos
vidrosos; seriam talvez os ecos das cardas alemãs pisando as pedras da França,
marchando pelo cais de Bordéus. Não, não eram ainda as botas dos soldados, mas
a correria dos garotos sobre o saibro a estilhaçar-se nos ouvidos do Cônsul.
O choro e o riso destas crianças das mais
variadas nações, que à volta da casa esperavam, faziam-se pancadas de aldraba
repetindo nos seus sentidos todos prolongados gritos de socorro.
E dentro, no balancear dos lustres de cristal,
gemia o medo dos stukas que haviam de vir rosnar em arreganhos de ameaça
sobre a cidade.
Lá fora, mesmo por debaixo da janela da
chancelaria, subia um crescendo de sons humanos, de silêncios-súplica,
alinhados em bicha frente ao consulado, em chave diante da sua porta.
Nas mãos do Cônsul punham os acasos da
História a expectativa de alheias esperanças.
Não estava a dormir. Não eram pesadelos. Não o
esperava o alinhamento rotineiro de vogais e consoantes nos pareceres e nos despachos.
Tratava-se agora de manejar a palavra-verbo, mais pesada que enxada; para ele
mais perigosa que bala ou baioneta. Ah, o poder tremendo da palavra! O esforço
que, às vezes, precisamos de fazer para o movimento tão simples de a construir
como símbolo mediador entre o homem e o indizível, quando ela se faz acto.
Releu as instruções enviadas pelo Ministério
dos Negócios Estrangeiros. Não encontrava ponto ou vírgula que encaminhassem o
sentido de modo a permitir-lhe conceder vistos, pelo menos aos que maiores
perigos corriam com os Alemães. Como fazê-lo sem arriscar a carreira?
Como poderá alguém preso ao mundo das coisas
por uma dúzia de bocas que pedem pão, e também pelas cadeias concretíssimas da
fartura, do conforto e do êxito, desprender-se delas à força da ideia abstracta
do fazer bem sem olhar a quem?
Exactamente agora, quando ele poderia
participar na maior das grandes batalhas — de um mortífero orgulho humano
contra incontáveis criaturas criadas por Deus à sua imagem, como a todos os
homens — ia ter de ficar quieto. A isso o obrigavam as instruções recebidas do
Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre os vistos em passaportes; desde a
primeira alínea com a proibição absoluta de os dar aos Israelitas sem
discriminação de nacionalidade. Lá fora, muitos dos que esperavam obter nos
passaportes o carimbo da salvação eram certamente casais mistos que não queriam
separar-se: homens, mulheres e crianças, famílias inteiras de religião judaica;
seres errantes pela Europa adiante até onde as doutrinas anti-semitas cosidas
às almas dos nazis e de outros fanáticos pelo inflamado discurso de Hitler
acabariam por atingi-los. Bastar-lhe-ia a ele escrever algumas palavras, e
aquela gente seria salva. Mas não podia fazê-lo.
Tinha deveres, compromissos, família. Medo.
Tinha convicções, sentido de justiça,
preceitos de fé. Respeito por si próprio.
Não queria pensar, ver ou ouvir. Nem cair na
tentação de julgar-se.
Não controlou a fúria que lhe guiou a mão para
carimbos e canetas que atirou para a lareira, apagada naquela época do ano.
Não resistiu a espreitar pela janela as
pessoas e o burburinho que aumentavam. Atreveu-se a pensar nos caprichos de
Deus; permitia milagres em charnecas despovoadas, revelando-se a seres simples
e felizes, e recusava-os quando milhares de aflitos os reclamavam.
Olhou o céu que se mostrava propício a
acontecimentos divinos, liberto de nuvens no zénite, brilhando tão intensamente
o sol, que podia imaginar-se que ele poderia tremer e girar sobre si mesmo como
uma roda de fogo-de-artifício, bailando no déu em desafio às leis cósmicas. Mas
não havia ali nem azinheira, nem pastorinhos, nem mensagem divina com hora
marcada para acontecer. Nem surgiu urna Nossa Senhora a anunciar o fim da
guerra.
Ninguém gritaria: Milagre! Milagre!
E este homem sofreu então o pior dos assédios,
cercado pelo seu de si.
O Cônsul fechou-se à chave no gabinete de
trabalho e correu os pesados cortinados de veludo. Desejaria esconder-se dentro
de um enorme cubo estanque. Como se fosse possível ficar imunizado con-tra os
sons, o sopro vital, a paciência e a fé de todos os que à sua porta esperavam
que ele voltasse a passar vistos para Portugal, o que desde 1936 constava que
fazia.
Então, durante três dias e três noites, este
homem deixou-se to-mar pela febre, aniquilada a vontade em tremuras e suores
gelados que lhe lavavam o corpo da energia necessária ao espírito para o
mobilizar, ordenando-lhe que entrasse na luta.
Não se deu conta dos muitos passos e ruídos
das várias pessoas que ele próprio mandara instalar em quartos e salas do
consulado, por estarem doentes ou com crianças debilitadas. Apenas viria a
lembrar--se, muito mais tarde, de ter passado uma das noites a discutir com um
rabino sobre as coisas de Deus e dos homens. Mas nem poderia estar certo de que
não tinha sido um sonho, uma resposta.
Naquela semi-inconsciência do delírio, ele
fazia a espeleologia da sua alma, descobria os limites da sua força. Voltou o
pensamento para a vida e para a História que o acaso fazia passar tão próxima
de si para que ele pudesse afluir também a esse rio cujas águas não passariam
jamais pelas mesmas margens.
Ele acreditou-se, no delírio, o instrumento da
Promessa feita ao povo eleito. Esperava que a Palavra que se passeia pelo
paraíso e se revelara a Moisés na sarça ardente se lhe revelasse também, mas
apenas lhe vinham à memória fragmentos de orações: «E dizei uma só palavra e
minha alma será salva». Versículos da Bíblia misturavam-se na sua cabeça,
pois enquanto a febre e a inanição o escudavam contra a constatação do que
estava a passar-se à sua volta, ele ficara cara a cara com a imagem roxa de um
Senhor dos Passos, de olheiras negras e rosto iluminado pelas linhas do suor,
curvado sob a cruz, de joelho no chão.
A metáfora da cruz. A alegoria do cada um
carregar os pecados em que será supliciado, curvando a espinha, ciliciando o
corpo.
Perguntava-se em lágrimas se seria capaz de
viver crucificado (cruXificado) em si, pois o que assusta na alegoria não é
carregar a sua cruz, mas ter de pregar-se nela, o que certamente lhe aconteceria
se, obedecendo-se para poder viver em paz consigo mesmo, desobedecesse às
ordens do seu Governo.
O estado febril do Cônsul atrasava qualquer
resolução que ele seria obrigado a tomar, defendê-lo-ia, porventura, de agir
como quem era e não como tinha de ser. Mas saiu da febre e do delírio para descobrir
no lago quieto da sua verdade uma razão para estar em tal lugar em tão má hora.
E, clamando aos seus que tinha ficado retido em Bordéus pela Providência porque
era preciso salvar toda aquela gente da morte, mandou que lhe dessem a caneta,
o selo branco e os carimbos, que se abrissem as portas do consulado e se encaminhassem
os requerentes para a chancelaria. Ali ficaria, sem quase comer e dormir, a
carimbar e a assinar vistos.
O que pode um indivíduo contra a lógica dos
acontecimentos que se armam ratoeira contra si?
Sobre as fronteiras francesas com a Espanha
cairá a avalancha de milhares de pessoas em fuga (só da Bélgica eram dois
milhões e meio), que atravessaram cidades ao ritmo dos raides e alertas aéreos,
sujeitando-se a tudo para lá chegar. O pânico leva-as de roldão e vai deixando algumas
centenas aqui e além, como acontecera em Bordéus, mas a grande massa humana
desabará, em pressão, nas cidades fronteiriças.
O cônsul português teve uma clara percepção
disto, quando a fila de gente diante da porta do consulado diminuiu para
escassas dezenas e o movimento na chancelaria começou a abrandar. Pela vista,
em acelerado, passou-lhe a imagem do que estaria a acontecer em Bayonne. E ele
não estava lá! Esta visão era um chamamento. Era a força da pressão a que
estivera sujeito durante muitas horas, uma espécie de alucinação do agir que o
impeliria a partir em direcção ao Sul para acabar o que tinha começado.
Pelo caminho, o Cônsul encontrou fugitivos em
dificuldades, acompanhou-os até uma fronteira pouco utilizada, onde qualquer
notícia chegava com muito atraso e ele era muito conhecido, por ser por ali que
sempre viajava com a família, quando vinha a Portugal. Assim conseguiu fazê-los
atravessar.
Dirigiu-se depois a Bayonne. A confusão nas
imediações do consulado português era indescritível. Não sabendo quem ele era
nem ao que vinha, o Cônsul foi avançando movido pelos empurrões, entalado,
insultado por pretender passar à frente dos que ali esperavam há muito tempo.
Ninguém ouvia as suas razões, mas lá conseguiu atravessar a estreitíssima rua e
foi, a bem dizer, içado por um funcionário que ele alcançou a porta. O corrimão
da velha escada de madeira, sujeito às marés de tantas mãos ondulava como
escaler de navio em direcção à porta do terceiro andar do consulado de Portugal.
Amarrotado pelos encontrões, sem nenhum
cansaço apesar dos quilómetros que percorrera em tempo recorde, o Cônsul
sentou-se a assinar vistos. Movia a caneta e o carimbo com uma tal energia frenética,
que um dos depoentes no processo viria a dizer em sua defesa que ele lhe
parecera então fora do seu juízo.
O Cônsul assinou e carimbou até ser impedido
por um funcionário do Governo que lhe transmitiu a ordem de regressar
imediatamente a Portugal.
Ter, pela primeira vez na vida, assumido
frontalmente o seu desacordo com o poder, enfrentando grandes riscos cujos ecos
lhe ensurdeceriam o futuro, fazia-o experimentar o apaziguamento de uma
liberdade de si nunca antes conhecida. Recuperou a serenidade da expressão.
Fora capaz de agir como quem era, em coerência com tudo aquilo em que
verdadeiramente acreditava. Precisava disfrutar dessa glória até ao limite.
Na viagem do seu forçado regresso, dizem os
que viajaram com ele que tinham estranhado aquele sorriso de irónica satisfação
num diplomata que era chamado a apresentar-se ao Governo para responder por
grave acto de desobediência, uma atitude que Salazar lhe faria pagar caro. Não
sabiam que entre os seus papéis vinham, a salto, manuscritos acusatórios dos
nazis de um escritor bem conhecido; que o Cônsul, obrigado a parar de escrever
as palavras do seu nome com as quais salvara de sofrimentos irremediáveis
tantas pessoas que ele nem tivera tempo de olhar, para reter a imagem,
continuava a assumir os perigos da sua insubmissão. Consigo ele passava ideias
para as transmitir, livres, nos longes do tempo.
Contaria o Cônsul que em Bayonne, ao passar
por um ajuntamento, o reconheceram e o ovacionaram. Talvez. Qual é o homem que
não deseja cingir-se em vida com uma coroa de glória, ainda que efémera?
(“O Cônsul”, Júlia Nery. Âncora Editora, 2017)
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