terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Ano novo, vida velha e política de cabo de esquadra

 

O ano termina com diversos assuntos na ordem do dia, ocorridos apenas nos últimos oitos dias, e que ilustram bem o estado do país e o que os cidadãos comuns podem esperar para o novo ano que agora se inicia:

um secretário-geral que iria ganhar 15 mil euros por mês, depois da lei ter sido alterada para esse específico fim e pessoa, depois da polémica, o indigitado recua; sabe-se que em Portugal existem 50 fortunas acima dos 300 milhões de euros, em contra-partida, o número de sem-abrigo em Portugal continental subiu para mais de 13 mil; a rendibilidade dos bancos portugueses sobre para 16,1%, mas mais de 8 mil pessoas podem ficar sem trabalho em 2024 por despedimento colectivo;

89% das autorizações de residência para estrangeiros (ricos) foi para vistos gold, no entanto, o superintendente do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP afirma que o ambiente operacional mudou porque a comunidade migrante (pobre) cria desafios à polícia; os motins nos bairros, em consequência do assassínio de Odair Moniz, são considerados pelo jornal “Expresso” o acontecimento do ano, indiciando que a elite teme a revolta popular;

Plano de Emergência SNS, governo falha 60% das medidas, apenas 9 das 24 medidas prioritárias (a implementar até final de 2024) estão no terreno e a produzir resultados, frisa-se, segundo o governo; caos na saúde, há quem espere 18 horas para ser atendido nas urgências e a "a ministra da Saúde despreza o SNS": Observatório de Violência Obstétrica contra novo modelo de urgências de ginecologia; o líder da Generali Tranquilidade afirma que a Saúde pode vir a tornar-se a área mais importante para as seguradoras em cinco anos;

o arcebispo de Évora, na sua cruzada, agradece resistência ucraniana ao comunismo ateu; Costa condena a destruição deliberada no Báltico e promete combate à frota fantasma russa; Marcelo satisfeito por ter tido um primeiro-ministro mais de oito anos diz esperar que “o actual dure até ao fim do seu mandato”;

Gouveia e Melo denuncia tentativa de se politizar o processo disciplinar, após o Tribunal anular os processos sobre os marinheiros que recusaram embarcar do NRP Mondego, mas abandona a Marinha e prepara a sua candidatura a Belém depois de usar o cargo para promoção pessoal.

Portugal “farol de estabilidade”

Nos últimos dias, o tema mais falado e usado no combate político entre os diversos partidos do establishment foi indubitavelmente a operação policial no bairro multi-étnico de Martim Moniz em Lisboa. O primeiro-ministro foi e continua a ser acusado de assumir a agenda do partido da extrema-direita quanto às questões da segurança, ou da percepção que alguma parte da sociedade tem deste tema, e da imigração de tez mais escura, porque quanto à outra de tez mais clara, de olhos azuis ou com a carteira bem recheada, casos dos vistos gold, a polémica já não se coloca.

O PM depois de declarar que a segurança não é de esquerda nem de direita e que "Portugal é hoje um farol de estabilidade política, social e financeira", tem a suprema lábia de vir afirmar que também ficou incomodado com as cenas de dezenas de cidadãos encostados à parede e que não associa a criminalidade à imigração. Para além da hipocrisia, a cobardia será outra das suas inúmeras e ainda ocultas qualidades como político. A ideia de eleições antecipadas na segunda metade do ano que vem parece que não lhe sai da cabeça e há que conquistar votos à direita.

Claro que a acção da PSP no Martim Moniz não revela indícios de qualquer ilegalidade e que há serviços de fiscalização do estado para avaliar operação em causa, mesmo que não houvesse, o governo não teria qualquer engulho em alterar a lei com acabou de fazer para permitir que o secretário-geral do governo possa receber de vencimento o dobro do que aufere o Presidente da República, o mais elevado magistrado da Nação, e que estabelece o limiar máximo para vencimento em cargos da República Portuguesa. A lei é elástica, a chatice é a AD não ter maioria absoluta no Parlamento, porque ainda seria mais elástica, a oposição vai anular o decreto governamental que permite tal desmando, a ver vamos.

O governo queria, ainda por cima, que fosse o Banco de Portugal a continuar a arcar o encargo de um montante superior aos 15 mil euros mensais, já que o figurão era funcionário da instituição e não poderia ser prejudicado. Não deixa de ser irónico que tal abencerragem, um tal de Rosalino, foi quem deu a cara pela austeridade imposta pela troika e achava que os cortes nas pensões, reformas e vencimentos deveriam ser feitos a partir dos 600 euros e de forma permanente. Menos estado, mas para os outros. A relação do governo AD com o banco central, que é uma sucursal do BCE, não parece estar lá grande coisa. Marcelo que diz que o Centeno é um forreta quando este veio avisar que para o ano as contas públicas entrarão no negativo, já não haverá excedente.

Economia em estado calamitoso

A economia nacional está de rastos e o ano de 2025 não vai ser nada bom, é de esperar que as causas sejam atribuídas a forças externas globais, mas os factos cá dentro não enganam. Se mais de 8 mil pessoas podem ficar sem trabalho em 2024 por despedimento colectivo, o que não será em 2025? Por exemplo, a empresa Simoldes apresentou perdas de 100 milhões e admite despedimentos, assim estarão as restantes, nomeadamente nos sectores automóvel e têxtil onde se concentra a maioria dos despedimentos colectivos. Na Coindu foram 350 trabalhadores, uma das últimas a fechar, e no final do ano serão contabilizadas mais de trezentas empresas a despedir.

É a lógica do excesso de produção para a capacidade de absorção do mercado, uma das contradições do capitalismo. A produção industrial em Portugal diminuiu 3,2% em 2023, e no ano que agora finda continua a encolher; não só no país como em toda a zona euro e União Europeia. A “locomotiva” pifou de vez, a Alemanha não sabe como sair da crise em que se encontra enredada, e leva todos por arrasto. Se vendem menos, as empresas tenderão a vender mais caro, a inflação ultrapassará em muito os números oficiais, mas como os salários não acompanham a inflação, então, o poder de compra de quem trabalha diminui, outra das contradições do capitalismo, e o mercado retrai-se. 2025 vai ser ano de aumentos generalizados, nomeadamente, dos alimentos.

Perante o desastre anunciado, o governo AD recorre ao mais do mesmo: recapitalizar as empresas à beira da falência, começando pelas maiores e/ou de capital estrangeiro. Diminuir o IRC, não ficará apenas pelo 1%, será mais, e já pensa em rever a TSU (Taxa Social Única), medida que contribuiu para a revolta popular que ditou o fim do governo de Passos Coelho/Portas e que, por sua vez, constitui um ataque brutal à sustentabilidade da Segurança Social, que o governo visa privatizar um dia destes.

Mais uma vez, os trabalhadores irão suportar a crise pela qual não são responsáveis e será bem pior que no tempo da troika. Já depois da saída do país dos défices orçamentais crónicos, o bom pretexto de financiar os bancos falidos, a austeridade manteve-se em tempo de governos PS/Costa por via do combate à pandemia, outra forma engenhosa de financiar a economia privada com dinheiros públicos: o Tribunal de Contas estimou em pelo menos 12.688 milhões de euros o impacto financeiro nas contas públicas das “medidas adoptadas para fazer face aos efeitos da pandemia em Portugal”.

As empresas já não vão em lay-off, mas em despedimentos pura e simplesmente, é mais seguro e porque não vêem alternativa em futuro próximo. Agora, será mesmo a doer, apesar de Montenegro dizer que Portugal “aprendeu mesmo” com “processo de recuperação doloroso”. Se as medidas anunciadas para 2025 são ainda brandas é porque, e já o dissemos várias vezes, o primeiro-ministro aposta em novas eleições legislativas para obter maioria absoluta, e Marcelo estará de acordo.

A crise de habitação chegou a ponto jamais visto. A variação dos preços da habitação em Portugal é mais do dobro da OCDE, paragona dos jornais, e, segundo estudo, Portugal tem uma das maiores crises habitacionais da Europa, Lisboa será a quarta cidade mais cara da Europa em 2024. E as medidas planeadas e algumas já aplicadas irão agravar ainda mais o problema para quem precisa de uma habitação, mas não para quem vive da especulação. A lei recentemente promulgada pelo PR de se poder construir em solos rústicos vai gerar mais-valias fabulosas para os bancos, fundos de investimento internacionais e algumas clientelas partidárias. Será o fartar vilanagem! Mais ainda, autarcas do PS, que se dizem d esquerda, procedem a despejos de famílias pobres, para regozijo da extrema-direita, usando os mesmos argumentos: “Leão diz que estão a ocorrer desocupações e não despejos em Santa Iria da Azoia”.

Falamos da habitação, está é das questões mais gritantes, como poderíamos falar da educação, da saúde e bem-estar, da segurança social, como da própria liberdade e garantias do cidadão, são direitos fundamentais, consagrados na Constituição da República, que não estão a ser respeitados. Ora, não foi para isto que se fez o 25 de Abril, ao que dizem, e estamos no cinquentenário da efeméride, coloca-se a interrogação: para que serve um regime que nega um direito elementar necessário à vida e ao bem-estar de um povo, entre outros, que é o direito à habitação? Decididamente, este regime está a dar as últimas e quando acabar não haverá nenhum trabalhador ou cidadão sério a lamentar-se pelo facto.

Anedonia social

É notório que o regime faliu na promoção social dos estratos economicamente mais débeis. O número de pobres aumentou, os sem-abrigo ultrapassa o número dos 13 mil; apenas 22% dos alunos que concluíram um curso profissional seguiram para o superior; um quarto dos estudantes sente mal-estar psicológico, com a perceção da qualidade de vida baixa a aumentar o stress e a ansiedade; e nos professores os números não são melhores, 52% sentem tristeza ou depressão.

Os casos de crimes dentro da família aumentam em número e gravidade. Casal detido por suspeita do homicídio de uma mulher de 98 anos, mãe do detido, que foi deixada à fome, amarrada a uma cama e com uma fratura antiga numa perna, em casa; ex-namorado vingativo manda matar mulher e paga 10.600 euros por encomenda mortal; inconformado com separação, homem ataca mulher com faca dentro de carro. As pessoas viram para dentro a ira em vez de a dirigir contra o establishment e os poderosos.

No país dos brandos costumes, mata-se por motivo fútil. Polícia Judiciária de Setúbal deteve um jovem estudante, de 18 anos e sem cadastro criminal, por ter matado, à pancada, um homem sem-abrigo, de 47 anos, que momentos antes lhe tinha furtado o telemóvel, num posto de combustível. Mas perante a justiça nem todos os crimes são iguais, e é branda quando se trata do desprotegido e vulnerável: MP pede absolvição e são libertados arguidos acusados de tráfico de imigrantes.

Na Saúde, o negócio e o lucro ditam as leis. Plano de Emergência para o SNS, o governo AD falha 60% das medidas; no entanto, o governo dá “via verde” aos privados para comprarem equipamento médico pesado, hospitais públicos queixam-se de “concorrência desleal”; criança encaminhada para urgência que estava fechada, Ministra da Saúde diz que foi aberta auditoria interna; tempo de espera nas urgências ultrapassa 12 horas na região de Lisboa e Vale do Tejo; INEM com operadores abaixo do mínimo em mais de metade do ano desde 2022; governo vai “retomar caminho” de transferir gestão de hospitais para Misericórdias; em 2025, governo recorre a privados para médicos de família e cirurgias; FNAM apela a escusas de responsabilidade massivas e decide prolongar greve às horas extra; "há famílias inteiras a precisar de ajuda para comprar medicamentos"; Eurico Castro Alves sai da comissão que avalia o plano de emergência da saúde, por conflito de interesses insanável (homem de mão para a privatização do SNS); aborto: no ano passado, mais de 40% das IVG feitas pelo privado foram encaminhadas por hospitais públicos; líder da Generali Tranquilidade: "Saúde pode vir a tornar-se a área mais importante para as seguradoras em cinco anos". No final, nós, portugueses, teremos um sistema de saúde igual ou pior ao dos Estados Unidos.

henricartoon

Em 2025, e ao longo de todo o ano, iremos ser massacrados pela corrida a Belém por vários candidatos a candidatos, com o almirante das vacinas ao colo de toda a imprensa mainstream, campanha que irá ofuscar as eleições autárquicas que irão ocorrer no último trimestre do ano e poderão servir a um teste para as legislativas que se preparam, embora todos os partidos digam que nelas não estão interessados, já que o país é o “farol da estabilidade política e social” que leva a que os investidores estrangeiros possam descansadamente aqui apostar. O plano é básico e linear: o governo AD de maioria absoluta (2025) e um militar caceteiro no Palácio de Belém (2026) a dizer esfola enquanto aquele mata. Ao contrário do que afirma o primeiro-ministro-cabo-de-esquadra, a segurança (da elite e do seu sistema de exploração do trabalho) é uma questão aberta e indisfarçavelmente de direita, a repressão é dirigida contra quem trabalha, seja gente de cá ou gente que vem de fora – todos fazem parte da mesma classe trabalhadora. A questão é uma questão de luta entre classes.

Vai ser assim o ano de 2025. E 2026 ainda será pior. Entretanto, dirão que a culpa é da guerra da Ucrânia e do Médio Oriente e de outros “factores externos globais”. Uma última nota: o plano poderá abortar por elementos "externos" à elite… a velha toupeira não deixará de fazer o seu trabalho.

Imagem de destaque: encontrada in facebook

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Como surgiu o fascismo

 

Por Chris Hedges

Por mais de duas décadas, eu e um punhado de outros —  Sheldon Wolin,  Noam Chomsky,  Chalmers Johnson,  Barbara Ehrenreich  e  Ralph Nader  — alertamos que a crescente desigualdade social e a erosão constante de nossas instituições democráticas, incluindo a  mídia, o Congresso,  o trabalho organizado,  a academia  e os  tribunais, levariam inevitavelmente a um estado autoritário ou fascista cristão. Meus livros — “American Fascists: The Christian Right and the War on America” (2007), “Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle” (2009), “Death of the Liberal Class” (2010), “Days of Destruction, Days of Revolt” (2012), escrito com Joe Sacco, “Wages of Rebellion” (2015) e “America: The Farewell Tour” (2018) foram uma sucessão de apelos apaixonados para levar a decadência a sério. Não tenho alegria em estar correto.

“A raiva dos abandonados pela economia, os medos e preocupações de uma classe média sitiada e insegura, e o isolamento entorpecente que vem com a perda da comunidade, seriam o combustível para um perigoso movimento de massa”, escrevi em “American Fascists” em 2007. “Se esses despossuídos não fossem reincorporados à sociedade dominante, se eventualmente perdessem toda a esperança de encontrar empregos bons e estáveis ​​e oportunidades para si e seus filhos em suma, a promessa de um futuro mais brilhante o espectro do fascismo americano assolaria a nação. Esse desespero, essa perda de esperança, essa negação de um futuro, levou os desesperados aos braços daqueles que prometiam milagres e sonhos de glória apocalíptica.”

O presidente eleito Donald Trump não anuncia o advento do fascismo. Ele anuncia o colapso do verniz que mascarava a corrupção dentro da classe dominante e sua pretensão de democracia. Ele é o sintoma, não a doença. A perda de normas democráticas básicas começou muito antes de Trump, o que abriu caminho para um totalitarismo americano.  Desindustrialização,  desregulamentação,  austeridade,  corporações predatórias descontroladas, incluindo a  indústria de assistência médica,  vigilância em massa de todos os americanos,  desigualdade social, um sistema eleitoral que é atormentado por  suborno legalizado,  guerras intermináveis ​​e fúteis, a  maior  população carcerária do mundo, mas acima de tudo  sentimentos de traição, estagnação e desespero, são uma mistura tóxica que culmina em um ódio incipiente à classe dominante e às instituições que eles deformaram para servir exclusivamente aos ricos e poderosos. Os democratas são  tão culpados  quanto os republicanos.

“Trump e seu grupo de bilionários, generais, idiotas, fascistas cristãos, criminosos, racistas e desviantes morais desempenham o papel do clã Snopes em alguns dos romances de William Faulkner”, escrevi em “America: The Farewell Tour”. “Os Snopes preencheram o vácuo de poder do Sul decadente e implacavelmente tomaram o controle das elites aristocráticas degeneradas e ex-escravistas. Flem Snopes e sua família extensa — que inclui um assassino, um pedófilo, um bígamo, um incendiário, um homem com deficiência mental que copula com uma vaca e um parente que vende ingressos para testemunhar a bestialidade — são representações fictícias da escória agora elevada ao mais alto nível do governo federal. Eles personificam a podridão moral desencadeada pelo capitalismo desenfreado.”

“A referência usual à 'amoralidade', embora precisa, não é suficientemente distintiva e por si só não nos permite colocá-los, como deveriam ser colocados, em um momento histórico”,  escreveu o crítico Irving Howe  sobre os Snopeses. “Talvez a coisa mais importante a ser dita é que eles são o que vem depois: as criaturas que emergem da devastação, com o lodo ainda em seus lábios.”

“Deixe um mundo entrar em colapso, no Sul ou na Rússia, e aparecem figuras de ambição grosseira abrindo caminho por baixo do fundo social, homens para quem as reivindicações morais não são tão absurdas quanto incompreensíveis, filhos de bushwhackers ou mujiques surgindo do nada e assumindo o poder por meio da pura extravagância de sua força monolítica”, escreveu Howe. “Eles se tornam presidentes de bancos locais e presidentes de comitês regionais do partido e, mais tarde, um pouco mais elegantes, eles forçam seu caminho para o Congresso ou o Politburo. Catadores sem inibição, eles não precisam acreditar no código oficial em ruínas de sua sociedade; eles precisam apenas aprender a imitar seus sons.” 

O filósofo político Sheldon Wolin chamou nosso sistema de governança de “totalitarismo invertido”, um que manteve a velha iconografia, símbolos e linguagem, mas entregou o poder a corporações e oligarcas. Agora, mudaremos para a forma mais reconhecível do totalitarismo, uma dominada por um demagogo e uma ideologia baseada na demonização do outro, hipermasculinidade e pensamento mágico.

O fascismo é sempre o filho bastardo de um  liberalismo falido.

“Vivemos em um sistema legal de dois níveis, onde pessoas pobres são assediadas, presas e encarceradas por infrações absurdas, como vender cigarros soltos — o que levou Eric Garner a ser estrangulado até a morte pela polícia de Nova York em 2014 — enquanto crimes de magnitude assustadora cometidos por oligarcas e corporações, de vazamentos de petróleo a fraudes bancárias de centenas de bilhões de dólares, que destruíram 40% da riqueza mundial, são tratados por meio de controles administrativos mornos, multas simbólicas e execução civil que dão a esses perpetradores ricos imunidade contra processos criminais”, escrevi em “America: The Farewell Tour”.

A ideologia utópica do  neoliberalismo  e do capitalismo global é uma grande farsa. A riqueza global, em vez de ser distribuída equitativamente, como os proponentes neoliberais prometiam, foi canalizada para cima, para as mãos de uma elite oligárquica e voraz, alimentando a pior  desigualdade econômica  desde  a era dos barões ladrões. Os trabalhadores pobres, cujos sindicatos e direitos foram retirados deles e cujos salários estagnaram  ou diminuíram  nos últimos 40 anos, foram lançados na pobreza crônica e no subemprego. Suas vidas, como Barbara Ehrenreich relatou em “ Nickel and Dimed ”, são uma emergência longa e estressante. A classe média está evaporando. Cidades que antes fabricavam produtos e ofereciam empregos em fábricas estão fechadas com tábuas - terrenos baldios. As prisões estão transbordando. As corporações orquestraram a destruição de barreiras comerciais, permitindo que elas  guardassem  US$ 1,42 trilhão em lucros em bancos estrangeiros para evitar o pagamento de impostos.

O neoliberalismo, apesar de sua promessa de construir e disseminar a democracia, rapidamente destruiu regulamentações e esvaziou sistemas democráticos para transformá-los em leviatãs corporativos. Os rótulos “liberal” e “conservador” não têm sentido na ordem neoliberal, evidenciado por um candidato presidencial democrata que  se gabou  de um endosso de Dick Cheney, um criminoso de guerra que deixou o cargo com uma  taxa de aprovação de 13%  . A atração de Trump é que, embora vil e bufão, ele zomba da falência da farsa política.

“A mentira permanente é a apoteose do totalitarismo”, escrevi em “America: The Farewell Tour”:

Não importa mais o que é verdade. Importa apenas o que é "correto". Os tribunais federais estão sendo lotados de juízes imbecis e incompetentes que servem à ideologia "correta" do corporativismo e aos rígidos costumes sociais da direita cristã. Eles desprezam a realidade, incluindo a ciência e o estado de direito. Eles buscam banir aqueles que vivem em um mundo baseado na realidade definido pela autonomia intelectual e moral. O governo totalitário sempre eleva o brutal e o estúpido. Esses idiotas reinantes não têm filosofia ou objetivos políticos genuínos. Eles usam clichês e slogans, a maioria dos quais são absurdos e contraditórios, para justificar sua ganância e desejo por poder. Isso é tão verdadeiro para a direita cristã quanto para os corporativistas que pregam o livre mercado e a globalização. A fusão dos corporativistas com a direita cristã é o casamento de Godzilla com Frankenstein.

As ilusões vendidas em nossas telas — incluindo a persona fictícia criada para Trump em The Apprentice — substituíram a realidade. A política é burlesca, como a campanha insípida e cheia de celebridades de Kamala Harris ilustrou. É fumaça e espelhos criados pelo exército de agentes, publicitários, departamentos de marketing, promotores, roteiristas, produtores de televisão e cinema, técnicos de vídeo, fotógrafos, guarda-costas, consultores de figurino, instrutores de fitness, pesquisadores, locutores públicos e novas personalidades da televisão. Somos uma cultura inundada de mentiras.

“O culto do eu domina nossa paisagem cultural”, escrevi em “Empire of Illusion”:

Este culto tem em si os traços clássicos dos psicopatas: charme superficial, grandiosidade e autoimportância; uma necessidade de estímulo constante, uma propensão para mentir, enganar e manipular, e a incapacidade de sentir remorso ou culpa. Esta é, claro, a ética promovida pelas corporações. É a ética do capitalismo desenfreado. É a crença equivocada de que estilo pessoal e avanço pessoal, confundidos com individualismo, são o mesmo que igualdade democrática. Na verdade, o estilo pessoal, definido pelas mercadorias que compramos ou consumimos, tornou-se uma compensação pela nossa perda de igualdade democrática. Temos o direito, no culto do eu, de obter o que desejamos. Podemos fazer qualquer coisa, até mesmo menosprezar e destruir aqueles ao nosso redor, incluindo nossos amigos, para ganhar dinheiro, ser felizes e nos tornar famosos. Uma vez que a fama e a riqueza são alcançadas, elas se tornam sua própria justificativa, sua própria moralidade. Como alguém chega lá é irrelevante. Uma vez que você chega lá, essas perguntas não são mais feitas.

Meu livro “Empire of Illusion” começa no Madison Square Garden em uma turnê da World Wrestling Entertainment. Eu entendi que a luta livre profissional era o modelo para nossa vida social e política, mas não sabia que ela produziria  um  presidente.

“As lutas são rituais estilizados”, escrevi, no que poderia ter sido uma descrição de um comício de Trump:

Elas são expressões públicas de dor e um desejo ardente por vingança. As sagas escabrosas e detalhadas por trás de cada luta, em vez das lutas em si, são o que levam as multidões ao frenesi. Essas batalhas ritualizadas dão aos que estão lotados nas arenas uma liberação temporária e inebriante das vidas mundanas. O fardo dos problemas reais é transformado em forragem para uma pantomima de alta energia.

Não vai melhorar. As ferramentas para calar a dissidência foram cimentadas no lugar. Nossa democracia entrou em colapso há anos. Estamos nas garras do que Søren Kierkegaard chamou de “doença mortal” — o entorpecimento da alma pelo desespero que leva à degradação moral e física. Tudo o que Trump precisa fazer para estabelecer um estado policial nu é apertar um botão. E ele vai apertar.

“Quanto pior a realidade se torna, menos uma população sitiada quer ouvir sobre ela”, escrevi na conclusão de “Empire of Illusion”, “e mais ela se distrai com pseudoeventos sórdidos de colapsos de celebridades, fofocas e trivialidades. Essas são as folias depravadas de uma civilização moribunda.”

Imagem: De dentro para fora – por Mr. Fish

Fonte

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

O Império do Consumo

Eduardo Galeano

A explosão do consumo no mundo actual faz mais barulho do que todas as guerras e mais algazarra do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco, aquele que bebe a conta, fica bêbado em dobro. A gandaia aturde e anuvia o olhar; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no tempo nem no espaço.

Mas a cultura de consumo faz muito barulho, assim como o tambor, porque está vazia; e na hora da verdade, quando o estrondo cessa e acaba a festa, o bêbado acorda, sozinho, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos quebrados que deve pagar. A expansão da demanda se choca com as fronteiras impostas pelo mesmo sistema que a gera. O sistema precisa de mercados cada vez mais abertos e mais amplos tanto quanto os pulmões precisam de ar e, ao mesmo tempo, requer que estejam no chão, como estão, os preços das matérias-primas e da força de trabalho humana. O sistema fala em nome de todos, dirige a todos suas imperiosas ordens de consumo, entre todos espalha a febre compradora; mas não tem jeito: para quase todo o mundo esta aventura começa e termina na telinha da TV. A maioria, que contrai dívidas para ter coisas, termina tendo apenas dívidas para pagar, suas dívidas que geram novas dívidas, e acaba consumindo fantasias que, às vezes, materializa cometendo delitos. O direito ao desperdício, privilégio de poucos, afirma ser a liberdade de todos.

Diz-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilização não deixa as flores dormirem, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores estão expostas à luz contínua, para fazer com que cresçam mais rapidamente. Nas fábricas de ovos, a noite também está proibida para as galinhas. E as pessoas estão condenadas à insónia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria farmacêutica. Os EUA consomem metade dos calmantes, ansiolíticos e demais drogas químicas que são vendidas legalmente no mundo; e mais da metade das drogas proibidas que são vendidas ilegalmente, o que não é uma coisinha à-toa quando se leva em conta que os EUA contam com apenas cinco por cento da população mundial.

«Gente infeliz, essa que vive se comparando», lamenta uma mulher no bairro de Buceo, em Montevideu. A dor de já não ser, que outrora cantava o tango, deu lugar à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. «Quando não tens nada, pensas que não vales nada», diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, em Buenos Aires. E outro confirma, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: «Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas, e vivem suando feitos loucos para pagar as prestações».

Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade, e a uniformidade é que manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todas partes suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora do que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.

O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde quantidade com qualidade, confunde gordura com boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na última década a «obesidade mórbida» aumentou quase 30% entre a população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou 40% nos últimos dezasseis anos, segundo pesquisa recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado. O país que inventou as comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fat free, tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar desce do carro só para trabalhar e para assistir televisão. Sentado na frente da telinha, passa quatro horas por dia devorando comida plástica.

Vence o lixo fantasiado de comida: essa indústria está conquistando os paladares do mundo e está demolindo as tradições da cozinha local. Os costumes do bom comer, que vêm de longe, contam, em alguns países, milhares de anos de refinamento e diversidade e constituem um património colectivo que, de algum modo, está nos fogões de todos e não apenas na mesa dos ricos. Essas tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida, estão sendo esmagadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único: a globalização do hambúrguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida em escala mundial, obra do McDonald´s, do Burger King e de outras fábricas, viola com sucesso o direito à autodeterminação da cozinha: direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das suas portas.

A Copa do Mundo de Futebol de 1998 confirmou para nós, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola proporciona eterna juventude e que o cardápio do McDonald´s não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército do McDonald´s dispara hambúrgueres nas bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro. O duplo arco dessa M serviu como estandarte, durante a recente conquista dos países do Leste Europeu.

As filas na frente do McDonald´s de Moscovo, inaugurado em 1990 com bandas e fanfarras, simbolizaram a vitória do Ocidente com tanta eloquência quanto a queda do Muro de Berlim. Um sinal dos tempos: essa empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos seus empregados a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato. O McDonald´s viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama de Macfamília, de um restaurante de Montreal, no Canadá, tentaram sindicalizar-se: o restaurante fechou. Mas, em 98, outros empregados do McDonald´s, em uma pequena cidade próxima a Vancouver, conseguiram essa conquista, digna do Guinness.

As massas consumidoras recebem ordens em um idioma universal: a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto quis e não pôde. Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que a televisão transmite. No último quarto de século, os gastos em propaganda dobraram no mundo todo. Graças a isso, as crianças pobres bebem cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite e o tempo de lazer vai se tornando tempo de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisão, e a televisão está com a palavra. Comprado em prestações, esse animalzinho é uma prova da vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos.

Pobres e ricos conhecem, assim, as qualidades dos automóveis do último modelo, e pobres e ricos ficam sabendo das vantajosas taxas de juros que tal ou qual banco oferece. Os especialistas sabem transformar as mercadorias em mágicos conjuntos contra a solidão. As coisas possuem atributos humanos: acariciam, fazem companhia, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o carro é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados.

Os buracos no peito são preenchidos enchendo-os de coisas, ou sonhando com fazer isso. E as coisas não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas escolhem você e salvam você do anonimato das multidões. A publicidade não informa sobre o produto que vende, ou faz isso muito raramente. Isso é o que menos importa. Sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias. Comprando este creme de barbear, você quer se transformar em quem?

O criminologista Anthony Platt observou que os delitos das ruas não são fruto somente da extrema pobreza. Também são fruto da ética individualista. A obsessão social pelo sucesso, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Eu sempre ouvi dizer que o dinheiro não traz felicidade; mas qualquer pobre que assista televisão tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro traz algo tão parecido que a diferença é assunto para especialistas.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX marcou o fim de sete mil anos de vida humana centrada na agricultura, desde que apareceram os primeiros cultivos, no final do paleolítico. A população mundial torna-se urbana, os camponeses tornam-se cidadãos. Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo, e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação e pela erosão das suas terras, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em todas partes, mas por experiência própria sabem que atende nos grandes centros urbanos.

As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos, os esperadores olham a vida passar, e morrem bocejando; nas cidades, a vida acontece e chama. Amontoados em cortiços, a primeira coisa que os recém chegados descobrem é que o trabalho falta e os braços sobram, que nada é de graça e que os artigos de luxo mais caros são o ar e o silêncio.

Enquanto o século XIV nascia, o padre Giordano de Rivalto pronunciou, em Florença, um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam «porque as pessoas sentem gosto em juntar-se». Juntar-se, encontrar-se. Mas, quem encontra com quem? A esperança encontra-se com a realidade? O desejo encontra-se com o mundo? E as pessoas, encontram-se com as pessoas? Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quanta gente encontra-se com as coisas?

O mundo inteiro tende a transformar-se em uma grande tela de televisão, na qual as coisas se olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos.

Os terminais de ônibus e as estações de trens, que até pouco tempo atrás eram espaços de encontro entre pessoas, estão se transformando, agora, em espaços de exibição comercial. O shopping center, o centro comercial, vitrine de todas as vitrines , impõe sua presença esmagadora. As multidões concorrem, em peregrinação, a esse templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora é submetida ao bombardeio da oferta incessante e extenuante. A multidão, que sobe e desce pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago; e para ver e ouvir não é preciso pagar passagem. Os turistas vindos das cidades do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas benesses da felicidade moderna, posam para a foto, aos pés das marcas internacionais mais famosas, tal e como antes posavam aos pés da estátua do prócer na praça.

Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center , ao shopping center , como antes iam até o centro. O tradicional passeio do fim-de-semana até o centro da cidade tende a ser substituído pela excursão até esses centros urbanos. De banho tomado, arrumados e penteados, vestidos com suas melhores galas, os visitantes vêm para uma festa à qual não foram convidados, mas podem olhar tudo. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas.

A cultura do consumo, cultura do efémero, condena tudo à descartabilidade mediática. Tudo muda no ritmo vertiginoso da moda, colocada ao serviço da necessidade de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje, quando o único que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, são tão voláteis quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa na velocidade da luz: ontem estava lá, hoje está aqui, amanhã quem sabe onde, e todo trabalhador é um desempregado em potencial.

Paradoxalmente, os shoppings centers, reinos da fugacidade, oferecem a mais bem sucedida ilusão de segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, existem fora do espaço, além das turbulências da perigosa realidade do mundo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efémera, que se esgota assim como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem pausa, no mercado. Mas, para qual outro mundo vamos nós mudar? Estamos todos obrigados a acreditar na historinha de que Deus vendeu o planeta para umas poucas empresas porque, estando de mau humor, decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma armadilha para pegar bobos.

Aqueles que comandam o jogo fazem de conta que não sabem disso, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro por corrigir, nem um defeito por superar: é uma necessidade essencial. Não existe natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.

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quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

A morte de Brian Thompson

 

Por Chris Hedges

Ainda não sabemos o motivo do assassinato do CEO da UnitedHealthcare, Brian Thompson. Mas não me surpreenderia se o assassino perseguisse Thompson porque a UnitedHealthcare negou a cobertura médica, ou forçou uma família ou um indivíduo à falência, depois de a empresa não ter conseguido cobrir uma doença grave. As seguradoras rejeitam cerca de 1 em cada 7 pedidos de tratamento, decidindo muitas vezes que o tratamento não é “medicamente necessário”.

Entre as 10 nações de rendimento elevado, os Estados Unidos são os que mais gastam em cuidados de saúde, mas apresentam os piores resultados em termos de saúde. Os americanos morrem quatro anos antes dos seus congéneres de outras nações industrializadas.

Há mais de 200 milhões de americanos que dependem de seguros de saúde privados, mas quando ficam gravemente doentes, são frequentemente postos de lado, ficando com contas médicas incapacitantes e incapazes de receber tratamento adequado. As contas médicas exorbitantes são responsáveis ​​por cerca de 40% das falências. Muitos dos que foram levados à falência por causa das contas médicas tinham seguro médico.

As receitas das seis maiores seguradoras – Anthem, Centene, Cigna, AVS/Aetna, Humana e UnitedHealth – mais do que quadruplicaram desde 2010, para 1,1 biliões de dólares. As receitas combinadas das três maiores – United, CVS/Aetna e Cigna – quintuplicaram.

Estas empresas, em termos morais, estão legalmente autorizadas a manter crianças doentes como reféns enquanto os seus pais vão à falência para salvar os seus filhos ou filhas. É indiscutível que muitos morrem, pelo menos prematuramente, devido a estas políticas.

Nada absolve o assassino de Thompson, mas nada absolve aqueles que dirigem empresas de cuidados de saúde com fins lucrativos que adoptam um modelo de negócio que destrói e extermina vidas em nome do lucro.

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