"Mundo estranho" - Diane Arbus
Estamos quase a chegar ao fim do ano e as
perspectivas para o próximo ano quanto ao bem-estar, condições de vida e
rendimentos do povo português não são lá muito risonhas. O Orçamento de Estado (OE)
para 2026 – o documento que orienta a distribuição da riqueza, criada no país
pelo trabalho, pelos diferentes estratos sociais – aponta sem margem para
qualquer dúvida para o aumento da pobreza das camadas da população mais baixas
e um aumento inusitado para o topo da pirâmide social, o que se compreende à
primeira vista de olharmos para os rendimentos de um grande número de ministros
deste governo, incluindo o primeiro-ministro. Os ricos só gostam dos pobres na
justa medida em que consigam manter-se em cima das suas costas. O conjunto de
medidas reformistas no que concerne ao Código do Trabalho, propostas que o PSD
só apresentou depois de se alcandorar mais uma vez ao governo, irão
complementar esse processo de empobrecimento, não só das classes mais baixas
como de igual modo da dita “classe média”. A pequena-burguesia, desorientada e sem
um projecto de futuro, agarra-se às saias da extrema-direita bronca e
ignorante, fortemente financiada pelo sector dos capitalistas rentistas, que só
conseguem sobreviver sugando os dinheiros públicos com os negócios que mantém com
o Estado, e diariamente embalada pelos media mainstream, de propriedade dessa
mesma oligarquia parasitária. O polvo domina o Estado, o governo é o
instrumento e o OE é o seguro de vida.
Prioridades orçamentais, o saque e a guerra
A política do governo Montenegro/PSD/Chega vai
ter como fio condutor a substância do Orçamento de Estado, retirar o máximo de
riqueza aos trabalhadores, os únicos que criam e produzem, e redistribui-la
segundo a lógica do capital, por sua vez, bem expressa em dois acontecimentos
recentes, que valem pelo simbolismo: a administração do Hospital de Castelo
Branco chamou os cinquenta médicos tarefeiros, que ali trabalham e asseguram o
funcionamento da instituição, para os informar que não pagará na íntegra o que
lhes deve por alegadas dificuldades de tesouraria, curiosamente, no dia a
seguir à visita da ministra da Saúde e do Secretário Executivo do SNS; Força
Aérea vai gastar 24 milhões na modernização das aeronaves da frota P-3CGER,
adquiridas à Alemanha.
Pelos vistos, há dinheiro para material de
guerra, embora se diga que é destinado à vigilância, mas não para a Saúde.
Neste orçamento, há mais dinheiro para a guerra na Ucrânia, um gasto de 3.837
milhões de euros, mais 25%, para os 2% em 2026, mas o objectivo é atingir os 5%
do PIB. Contudo, o governo corta mais de 200 milhões em medicamentos e material
de consumo clínico. São prioridades resultantes de opções ideológicas e ao
serviço de uma classe que vive da exploração e quem trabalha. E quando há
crise, a guerra serve sempre para o renovar da replicação e acumulação do
capital – são intrínsecos.
Para reforçar esta acumulação e concentração,
Bruxelas impõe, e a comissária dos Serviços Financeiros, uma portuguesa de má
memória, já veio confirmar e apelar; assim, os trabalhadores terão de descontar
para os fundos privados de pensões, o que levará ao enfraquecimento da
Segurança Social, em processo semelhante ao que estar a acontecer com a CGA
(Caixa Geral de Aposentações) que não está a ser renovada com novas adesões. O
fundo de pensões dos trabalhadores do estado que o próprio governo, seguindo a
intenção dos governos anteriores, quer pôr fim será o princípio da privatização
do sistema ainda existente entre nós.
Bruxelas ameaçou que os novos fundos europeus
dependeriam das mexidas nas pensões de reforma e o governo de Montenegro já
decidiu que os descontos dos trabalhadores daqui para a frente serão
automáticos para os fundos, geridos por bancos e companhias de seguros, que,
tal como aconteceu em outros países, serão maioritariamente estrangeiros. Os nossos
idosos são os que mais sofrem a pobreza e Portugal é o país da OCDE em que os
trabalhadores mais tarde se reformam. A política de Montenegro é obrigar os
trabalhadores a trabalharem até morrer – o tempo para a aposentação irá
aumentar para 66 anos e 11 meses e a penalização para 17,6% em 2027. A dita “Europensão”
será um meio poderoso para a recapitalização dos bancos europeus.
Portugal teve de seguir as regras draconianas
impostas por Bruxelas quanto às despesas do Estado, a proposta apresentada pelo
governo Montenegro do Orçamento estava aprovada à partida, quer pelos
eurocratas quer pela Assembleia da República. A abstenção “exigente” do actual
dirigente do PS, que veio substituir a famosa abstenção “violenta” do agora
candidato à Presidência da República, mas então antecessor de Carneiro, foi
determinante, na prática foi um voto a favor. Estes dois partidos do arco da
governação têm sido até agora os instrumentos de defesa dos negócios e
interesses do grande capital nacional e de todo o estrangeiro que por aqui
exerce o saque. Enquanto que entre nós o Orçamento da guerra e da pobreza é
aprovado perante relativa passividade social, em outros países da Europa,
exemplo, Alemanha, Bulgária e Inglaterra, os orçamentos têm sido contestados na
rua por muitas dezenas de milhares de cidadão descontentes.
Os dois partidos do bloco central de interesses têm
perpetuado a astronómica dívida pública, que tem funcionado como um garrote no
pescoço do povo português e um entrave ao próprio desenvolvimento económico do
país, mesmo em termos capitalistas, para não fazer concorrência aos países mais
ricos da UE, mas que o são em grande medida à custa da nossa pobreza. A dívida
pública subiu para 97,6% do PIB no terceiro trimestre do ano, ou seja, 5.959
milhões de euros, para 294.319 milhões. Valor que tem sido desvalorizado pelo
facto de o PIB também estar a crescer a uma velocidade um pouco maior, mas que
a não faz encolher em termos reais e absolutos. Mantendo-se este ritmo,
Portugal tem o futuro inevitavelmente comprometido, cada vez mais um
protetorado da Europa que se apressa no caminho da guerra: «Poderá começar um
conflito armado entre a NATO e a Rússia antes de 2029 – declarou o
ministro da Defesa alemão Boris Pistorius em entrevista ao Frankfurter
Allgemeine Zeitung».
Um governo indubitavelmente de salteadores
Este governo é sem disfarces uma espécie de
Robin Hood dos ricos para roubar os pobres. A descida do IRC para 19% em 2026 foi
de imediato aprovada na especialidade. Os bancos que operam em Portugal pagam
apenas impostos sobre parte dos lucros, possuem um regime de excepção, mas
mesmo assim queixam-se, apesar de também nunca terem tido lucros tão grandes
como agora. Os principais bancos privados (BCP, Santander, Novo Banco e BPI)
encaixam quase 1,5 mil milhões em comissões entre nos primeiros nove meses do
ano. E no mesmo período os três maiores bancos privados lucram 2,1 mil milhões.
Perante a fartura, o Presidente do BPI contesta a intenção de nova tributação,
ao que parece “aconselhada” por Bruxelas: “Mais impostos? por que é que é
sistematicamente aos bancos? é um problema ideológico”. Roubar o povo
português, será igualmente uma questão ideológica, pergunta-se? O BES/Novo
Banco terá ficado, em termos oficiais, em 8 mil milhões de euros ao Estado mas
este só conseguiu recuperar 2 mil milhões, e um dos gestores, o marido da
ministra mais rica do governo recebeu um bónus de mais de 7 milhões de euros
pela venda do Novo Banco aos franceses. Os lucros foram para os americanos da
Lone Star e dos homens de mão de conduziram o saque. Entretanto, o governo
polaco vai taxar os bancos em 30%, ao contrário do que faz o governo Montenegro/PSD/Chega.
E falando em “ministros ricos”, não confundir
com “ricos ministros”, constata-se que este é o governo cujos ministros possuem
maior património, será o governo mais rico que Portugal alguma vez teve. O
património, pelo menos o declarado, de tal gente atinge os 20,9 milhões de
euros, são 17 ministros ricos, claro que uns são mais riquinhos que outros. Os
ministros do Trabalho, da Justiça e do Ambiente são os mais ricos, por sinal
até são ministras, são mulheres, parece assim que na casta dos ministros a
mulher não é assim tão duplamente explorada, como se pinta para as mulheres
trabalhadoras. Uma delas, a do Trabalho, é a mais rica, com um património de mais
de 5,36 milhões de euros, exactamente a esposa do tal banqueiro que agora vai
receber ou já recebeu uma pipa de dinheiro pelo negócio do Novo Banco, com
certeza que não enriqueceu a trabalhar. Coloca-se a questão: quando saírem do
governo, estarão mais ricas ou mais pobres? Não nos parece que seja difícil
acertar na resposta correcta, porque sabemos antecipadamente que não será graças
aos grandes vencimentos que actualmente auferem, provavelmente, será por outros
negócios.
E, continuando com o tema dos impostos, deve
dizer-se que Portugal não é o país da União Europeia onde se pagam em média
mais impostos, ao contrário da propaganda dos media e dos chefes das
associações patronais. Portugal registou, em 2024, um rácio de impostos em
percentagem do PIB de 37,1%, abaixo da média da UE, que é de 40,4%, e da zona
euro, 40,9%, segundo o Eurostat. Neste país quem paga impostos é o povo e os
trabalhadores por conta de outrem, os que não podem escapar e acabam por pagar
por todos. Neste OE, há uma rúbrica designada “excepções”, que constitui a
segunda maior despesa do Estado para 2026, ou seja, 15,6 mil milhões de euros,
que mais não é que um verdadeiro “saco azul” para dar aos grandes capitalistas,
aos empresários rentistas amigos do PSD e que o financiaram, bem como ao Chega.
Estes dois partidos, juntamente com a IL,
podem ser considerados como os agentes do neo-liberalismo extremo, isto é, do
capitalismo mais selvagem, que visa como prioridade o empobrecimento rápido do
povo português. Os ricos em Portugal, para além de praticamente estarem isentos
de pagar impostos, ainda recebem do Estado dinheiro que é extorquido a quem
trabalha. O Orçamento de Estado é um saque aos trabalhadores. São também mais
de 2 mil milhões de euros, através da redução do IRC, são benefícios fiscais às
grandes empresas, 1,8 mil milhões de euros, às parcerias público-privadas, 1,5
mil milhões de euros, e aos residentes não habituais, 1,9 mil milhões de euros.
Ou seja, é mais do que gozar com quem trabalha, é roubar os pobres para dar aos
ricos.
in "Observador"
Greve geral nacional contra todo o
establishment
Diz a ministra mais rica do governo: "A
lei em vigor é que tem desequilíbrio a favor dos trabalhadores". Ora, quem
assim fala só pode ver no trabalhador um inimigo a abater, nenhum dirigente da
CIP, por exemplo, seria tão eloquente. Não se poderá esperar outra coisa de uma
figura (que não terá enriquecido a trabalhar) quanto a questões de defesa dos
trabalhadores, porque são estes a parte mais frágil, não se encontram no mesmo
plano dos patrões, se não ataques aos seus direitos e à sua sobrevivência. Só por
esta afirmação se justifica a GREVE GERAL, que facilmente obteve a concordância
das duas centrais sindicais – se estas não tivessem apressado a convocar a greve,
os trabalhadores iriam eles, por iniciativa própria, fazer inúmeras greves que
o governo teria mais dificuldade controlar.
Os motivos são sobejamente conhecidos e
suscitaram o maior dos repúdios do mundo do trabalho, tanto no sector público
como no privado: liberdade de despedimentos e de trabalho precário, tão
defendido e elogiado pelos partidos da extrema-direita e pela ministra, incluindo
na administração pública e já anunciados subliminarmente pelo ministro da dita “Reforma
do Estado”, onde se privilegiam os CIT (contratos individuais de trabalho) e a
contratação de serviços a terceiros (outsourcing); a imposição de trabalho não
pago com os bancos de horas (escravatura pura e simples); diminuição brutal dos
salários reais e até nominais, que na prática ficarão abaixo do salário mínimo
nacional actual; dias de férias não pagos; retirada dos subsídios de férias e
de natal diluindo-os ao longo dos 12 meses do ano; aumento do horário de
trabalho para 50 ou mais horas semanais, como já aprovado em outros países da UE,
etc.
Em suma, é nivelar por baixo, em retrocesso
histórico jamais visto, colocando ao mesmo nível tanto os trabalhadores
nacionais como os imigrantes, que, em alguns casos, como se ficou a saber nesta
semana, há em Portugal trabalhadores migrantes a ganhar 80 euros por mês. Pior escravatura
do que esta nem na antiga África portuguesa. Esta política em relação aos
trabalhadores é ipsis verbis a política da extrema-direita, Chega, IL,
que o PSD consciente e alegremente deseja colocar em prática, com a colaboração
(pouca) “exigente” do PS.
Neste sentido, não é de estranhar o recente
caso de escravatura de trabalhadores rurais imigrantes no Alentejo (Beja) que,
para além de serem abjectamente explorados, eram vigiados por agentes da GNR –
a velha GNR que se imortalizou pela repressão dos trabalhadores alentejanos no
tempo do salazarismo, parece que lhe está nos genes ser a guarda pretoriana dos
senhores de escravos. Estes militares (em função de polícias, já era tempo de
se acabar com esta estrutura por anacrónica) “trabalhavam” em horas de serviço,
devidamente fardados, utilizando viaturas da GNR, com conhecimento e protecção
de alguns graduados, auferindo 200 euros por dia e 400 ao fim de semana,
integrados numa organização que funcionava em moldes mafiosos, ou seja
violentos, onde se encontrava também um agente da PS e era dirigida por um
português. Podemos afirmar, sem exagero, que estamos perante um verdadeiro study
case de empreendedorismo nacional, tão incensado por governo e media
mainstream.
Estes indivíduos, ainda antes de serem
julgados e condenados, deviam ser rapidamente expulsos das respectivas
corporações, mas isso não vai acontecer pela simples razão de que estas instituições
policiais foram criadas para isso mesmo: reprimir quem trabalha e ao serviço
dos esclavagistas nacionais. Estas coisas acontecem porque existe na mente
desta putativa “gente” a ideia da impunidade, podem fazer o que lhes der na real
gana que nunca serão punida e se houver alguma pena será também meramente simbólica.
Aconteceu na GNR e na PSP, e de igual modo na Associação de Bombeiros do Fundão,
onde um jovem bombeiro foi sodomizado em ambiente de praxe pelos colegas e com
o conhecimento, e quase incentivo, do comandante da corporação. São mentalidades,
são práticas que se enquadram bem no establishment, que desumaniza o ser humano,
que o escraviza e considera que não há limite para quem possui o poder – a lei
é sempre para os outros.
A sociedade burguesa e o seu poder dito
democrático revelam à evidência a sua verdadeira natureza nestes casos
escabrosos e que indignam qualquer cidadão honesto. Não é apenas uma política,
dimanada de um certo e determinado governo, ou a instigação de uma extrema-direita,
levada ao colo pelos media de referência e a quem ninguém coloca freio, é todo um
sistema que se encontra podre. É um velho mundo de exploração do capital, em
fase de vida terminal, que é necessário derrubar. A greve geral nacional do 11
de Dezembro não é somente uma greve contra o “ataque brutal” efectuado pelo
governo de Montenegro, como conclama a CGTP e que constitui o referido “pacote
laboral”, mas essencialmente contra o governo que a assume e quer concretizar, contra
a oligarquia a quem serve essa política, bem como contra todo o establishment.
Outro mundo é possível porque necessário.
Imagem: Diane Arbus estava
interessada em fotografar aberrações, sentia-se atraída por elas como
sujeitos porque, como pessoas, elas não estavam esperando pela sua tragédia, mas
em vez disso nasceram com ela. (Will Cappelmann)