terça-feira, 8 de abril de 2025

Um novo 25 de Abril é possível por necessário

 

O grande capital norte-americano, representado pela administração Trump, entende que deve ter uma parte maior do que aquela que tem na distribuição do bolo da riqueza mundial e que a imposição de tarifas sobre as importações é a única forma de vencer a crise de recessão dos lucros em que se encontra mergulhado. E é com esta luta pela sobrevivência do capitalismo como pano de fundo que se deve compreender o que se passa no nosso país e as contradições que sobressaltam a doméstica burguesia, bem como as de toda a União Europeia.

As eleições de 18 de Maio vão realizar-se porque os partidos que representam os interesses de Bruxelas e das elites, cada vez menos nacionais, não conseguem entender-se quanto à forma de manter viva a fonte que os sustenta, a exploração dos que trabalham. É muito provável que que nem um governo de maioria absoluta PSD/CDS tenha essa capacidade e se tenha de passar para a musculação do actual regime, como se perspectiva com o lançamento do almirante acéfalo a Belém, que, por sua vez, irá pôr os partidos na devida ordem.

A oligarquia aposta em Montenegro e na AD

Pelas intervenções já conhecidas, ficamos a saber que a oligarquia aposta, para já, num governo de maioria absoluta AD, uma sigla que se mantem para enganar alguma classe média. Foi nesse sentido que se pronunciou a CEO do grupo Sonae, que viu na queda do governo de Montenegro a possível destruição de um rumo político que era do seu inteiro agrado. Não é por acaso que o seu órgão de propaganda, o jornal “Público”, se esforça em promover a coligação, bem como as televisões privadas, como a TVI/CNN (grupo Media Capital do oligarca Mário Ferreira), no topo da propaganda, talvez também por ser a que tem mais audiência.  Seguem-se de perto os restantes grupos privados, a CMTV/NOW (grupo Medialivre do oligarca Paulo Fernandes) e a SIC (do oligarca, senador do regime e sócio nº1 do PSD, Pinto Balsemão) em notório declínio e em falência económica. Os oligarcas limitam-se a defender os seus interesses e utilizam os meios ao seu alcance.

Parece que os partidos do establishment, os outros meios ao dispor da oligarquia, irão centrar o grosso do seu esforço de endrominar o cidadão eleitor nos debates dos serões televisivos, após os noticiários, porque se fosse a outra hora, muito provavelmente os candidatos ficariam a falar para o boneco. Eles já começaram, logo seguidos dos comentadores e paineleiros avençados que explicam aos portugueses ignaros o que na realidade os intervenientes querem dizer, embora o não tenham dito. Os propagandistas de serviço, qual deles o mais servil e zeloso, cortam e deturpam as falas dos candidatos que não são da cor, achincalham-nos, num exercício vil e despudorado, vale tudo. O que não deixa de ter como consequência a desqualificação das próprias eleições. Vamos lá ver como vão ser as abstenções.

Não é novidade para ninguém que os partidos do governo sempre estiveram em campanha eleitoral desde o dia 2 de Abril de 2024, quando tomaram posse como governo; ou melhor, nunca deixaram de estar em campanha com o objecto pouco dissimulado de virem a obter uma maioria absoluta que lhes permita impor ao povo português as medidas celeradas que o grande capital, com os bancos à cabeça, exige para debelar a crise, que prevê poder vir a ser violenta e prolongada. Essa é a exigência de uma CCP (Confederação do Comércio e Serviços de Portugal) que não quer perder o barco da exploração do trabalho, ao organizar uma “reflexão” sobre os efeitos do designado Relatório Draghi em Portugal, que mais não é que o programa do grande capital financeiro representado em Bruxelas, para a gestão não só da economia dos países da União Europeia como de todas as áreas da sociedade.

E quando o grande capital entra directamente na gestão da coisa pública, sem intermediários, então, isso significa que a democracia parlamentar faliu e será em breve substituída por um regime mais autoritário, independentemente da forma que possa vir a revestir. É também sinal de que a economia não vai assim tão bem, como o governo da AD e os seus propagandistas pintam. A crise é bem visível, a Alemanha, o motor industrial da Europa, está em pane há três anos consecutivos; e o CEO do maior fundo de investimentos do mundo, Larry Fink, foi claro: «a maioria dos CEOs acredita que os EUA já estão em recessão», se o dizem é porque é verdade. O que não quer dizer que a burguesia esteja em risco de falência imediato, pese todo o alarmismo relacionado com a queda das principais bolsas mundiais, incluindo o provinciano PSI (Portuguese Stock Index), cujas empresas irão distribuir pelos seus acionistas mais de 3 mil milhões de euros em dividendos este ano.  

O que está em causa é a continuidade dos lucros, o aumentar constante dos lucros, e nada disto está garantido. A classe dos capitalistas sente a insegurança e desconfiança quanto ao futuro, porque sabe que o seu poder vem da expropriação do trabalho alheio, embora para já não tenha razões de queixa: os 50 capitalistas mais ricos de Portugal possuem fortunas que somam cerca de 45 mil milhões de euros, ou seja, cerca de 17% do PIB português; no topo 10 as fortunas somadas chegam aos 24,2 mil milhões. As cinco famílias mais ricas são por ordem decrescente: herdeiras de Américo Amorim, Fernanda, Paula, Marta e Luísa, uma fortuna avaliada em cerca de 5.400 milhões; família Guimarães de Mello, cuja fortuna cresceu, este ano, para 3.329 milhões de euros; família Soares dos Santos que têm uma fortuna de 2.942 milhões de euros; Nuno, Paulo e Cláudia Azevedo contam com uma avaliação de 2.383 milhões de euros; família Alves Ribeiro, com uma fortuna de 1,770 milhões de euros. Esta gente aspira pelo fascismo caso necessário para salvar a riqueza.

As famílias dos trabalhadores estão mais pobres

Mas se uns estão bem, outros nem por isso. O endividamento das famílias dos trabalhadores portugueses cresce ao ritmo mais elevado dos últimos dois anos e meio, isto é, o nível de endividamento dos particulares contabiliza crescimentos homólogos constantes, e em Janeiro aumentou 4,2%, o valor mais elevado desde Junho de 2022 (da imprensa). A mão de obra nacional continua a ser baratinha: enquanto os custos médios horários da mão-de-obra na UE foram estimados em 33,5 euros, variando entre 10,6 euros na Bulgária e 55,2 euros no Luxemburgo, em 2024, em Portugal foram estimados em 18,2 euros/hora, os décimos mais baratos. Mas ainda não satisfeitos, os capitalistas nacionais querem pagar salários ainda mais baixos, daí defenderem a importação massiva de trabalhadores migrantes, de preferência ilegais, por mais vulneráveis e mais facilmente exploráveis. E o PS já se manifestou o seu acordo, concordando com o PSD em relação à imigração, defendendo a documentação como uma condição “indispensável”, num exercício de inteira hipocrisia já que este governo, à semelhança do anterior, tudo faz para que a legalização seja mera miragem. Não é por acidente que os serviços da AIMA não funcionam como os imigrantes reclamam.

Nas sondagens frequente e à la carte que são feitas quase diariamente para influenciar o sentido de voto, uma delas indicou que a Saúde, a Habitação e a Educação devem ser os temas prioritários na campanha eleitoral, e não a Segurança, ao contrário dos partidos da ordem caceteira, onde se incluem os partidos do governo. Quanto ao primeiro tema, estamos conversados, Montenegro e os seus capangas do PSD e CDS apostaram logo de início no rápido desmantelamento do SNS e na entrega do filet mignon (a parte mais lucrativa) aos diversos grupos privados, que fazem da doença e da desgraça alheia a sua principal fonte de rendimento e de existência. Enquanto o governo PS vai devagar e empata, o governo PSD/CDS vai rápido temendo que o mundo acabe antes da tarefa terminada. Nenhum destes partidos está interessado num Serviço (não “sistema”) Nacional de Saúde, por definição, universal, geral e gratuito e que só o Estado está em condições de garantir.

A área de obstetrícia e ginecologia está a ser privatizada sem disfarces, o mesmo acontece com os cuidados primários (não é coincidência que o número de pessoas sem médico de família subiu para as 1.593.802 no final de Março); meia dúzia de hospitais construídos com os dinheiros públicos são para a gestão privada; todos os novos hospitais são para ser construídos e geridos, como já o PS planeara, em regime de parceria público privada (PPP). O SNS continuará a pagar mal aos profissionais de saúde para que trabalhem no privado, mas por conta própria, e os que ainda se mantêm no público que acumulem também com o privado para ali fazerem o que não fazem no SNS, em clara intenção de sabotagem do SNS. Entretanto, as verbas gastas na Saúde aumentam de orçamento para orçamento mas para comprar serviços mais caros aos privados, num outsourcing onde administradores hospitalares e políticos do governo vão buscar grossas comissões, em despudorada e franca corrupção.

Quanto à Habitação, as propostas do PSD, CDS, PS e mais partidos da defesa do capital não se distinguem muito umas das outras. Resumem-se a: construir mais casas pelos privados, dar apoios às rendas e à aquisição de habitação por parte dos jovens, numa clara política de incentivo da especulação, quer nas rendas quer nos preço das habitações, com o resultado sobejamente conhecido: "Portugal tem o 3.º maior aumento  (11,6%) dos preços e casas na União Europeia, no quarto trimestre de 2024" (Eurostat). Se no país existem mais de 700 mil habitações devolutas, então, o Estado deve tomar conta delas, arrendando ou vendendo a preços controladas. Tomar posse administrativas das casas, no primeiro caso, ou expropriá-las, no segundo caso, se pertencentes a bancos, grandes grupos económicos ou a estrangeiros não residente em Portugal. A legislação actual permite estas medidas, bastando para tal invocar o interesse público; coisa que nunca deixa de ser feita quando é para extorquir o trabalhador ou o português mais pobre. Ou então, como aconteceu logo a seguir ao 25 de Abril, “O povo ocupa as casas!”.

O desempego e a luta dos trabalhadores irão disparar 

Não será preciso avançar por outros assuntos que atormentam a vida dos cidadãos portugueses comuns, ou seja, os que para viver precisam de trabalhar, para se perceber que estamos a assistir mais uma vez a um circo em torno das eleições do próximo dia 18 de Maio. Nenhum partido tem soluções, nomeadamente, para o desemprego, que se prevê galopante, porque nenhum deles quer pôr fim a esta economia capitalista, e os despedimentos irão disparar. O encerramento anunciado da Schmidt Light Metal, de Oliveira de Azeméis, com 500 trabalhadores em risco de perderem o emprego, é um forte sinal de que o exército de reserva engrossará rapidamente, e agora sem o escape da emigração, porque o resto da Europa é também atravessado pela crise do excesso de produção. Com a revolução 4.0, robótica e IA, cerca de 30% da mão-de-obra actual será rapidamente descartada e o desemprego será incontornável. Aos desempregados que já existem juntar-se-ão mais de 1,5 milhões de novos desempregados, uma realidade assustadora que obrigou o almirante vir botar faladura sobre o tema ainda há pouco.

É a crise económica que leva à guerra inter-imperialista, capitalismo é sempre sinónimo de guerra, nunca estivemos tão perto como agora de uma terceira guerra mundial, e os trabalhadores devem preparar-se para a guerra mas contra o capital. São os proletários, os desempregados, os portugueses mais pobres e todos os trabalhadores migrantes, a lutar contra os fascismos e os almirantes, que se prepararam para calcar o povo português a fim de salvar a oligarquia parasitária. Então, um novo 25 de Abril, sem cravos, é possível por necessário para derrubar a ordem estabelecida.

segunda-feira, 31 de março de 2025

Depois da pandemia teremos um “Sistema” Nacional de Saúde

Escrito em Abril de 2020, começava a campanha da pandemia, mantém a pertinência em tempo de outra campanha, a eleitoral, tipo banha da cobra, a que iremos assistir mais uma vez e por umas largas semanas.

Não tenhamos dúvidas que, depois da passada esta pandemia, iremos defrontar-nos com um SNS ainda mais degradado, com continuada falta de material, mas principalmente como menos trabalhadores, mais do que exaustos, completamente desmotivados, e que rapidamente será substituído por um “Sistema” Nacional de Saúde, onde os privados terão um maior protagonismo; o que tem sido, diga-se de passagem, uma reivindicação de quem andou até agora a parasitar e a sabotar o SNS, e sempre com a colaboração activa dos governos do PS e do PSD e das administrações hospitalares por si nomeadas.

Coronavírus, um bom negócio para os privados da Saúde

Esta pandemia pelo coronavírus tem servido como óptima oportunidade de obtenção de maiores lucros, nunca imaginados, por parte do sector privado, seja através de dinheiro extorquido directamente ao cidadão, seja ao Estado através de serviços que este já não conseguirá fazer por ter colocado o SNS no osso. São os laboratórios de meios complementares de análise, que têm ganho uma média de 2,6 milhões de euros por dia, só por testes ao coronavírus; são os hospitais de propriedade maioritariamente privada, Hospital da Cruz Vermelha, arrendados pelo Estado; são as Misericórdias e exigir mais dinheiro, uma fonte inesgotável de financiamento da Igreja Católica com fundos públicos; é a continuação das PPP, com a do Hospital de Cascais à frente; são os grupos privados a salivar para tratar dos doentes que o SNS vai ter de abandonar para atender aos infectados pelo SARS-CoV-2. Vai ser um fartar vilanagem!

O exemplo do encerramento do hospital do SAMS, com o despedimento dos funcionários durante um mês, mas que tudo indica que será definitivamente, mostra que no sector privado da Saúde haverá uma reconversão capitalista no sentido de uma maior rentabilidade, ficando mais uma vez demonstrado que a Saúde, para os privados, é um negócio como qualquer outro. O Hospital da Cruz Vermelha, agora gerido pelo ex-director da DGS, reformado com uma aposentação de mais de 4900 euros, já foi arrendado pelo Estado para tratamento exclusivo de doentes por coronavírus. Hospital que é arrendado e não requisitado, porque o estado de emergência é somente para os trabalhadores, muitos dos quais irão ficar no desemprego logo que seja passada a pandemia.

Este hospital, de maioria accionista privada (55%), não possui condições para receber este tipo de doentes, e tem tido muitos milhões de euros de prejuízo, tendo sido essa a verdadeira razão do negócio, para mais facilitado pela pessoa que agora o dirige. Se os hospitais do SNS vêem diminuir a ocorrência às urgências em cerca de 30%, esta não deixa de ser uma boa oportunidade dos privados se chegarem à frente para fazer o que o SNS de momento não consegue, consultas, cirurgias, etc., por estar a atender os doentes por SARS-CoV-2.

Torna-se cada vez mais claro e evidente que a principal preocupação do Governo e dos seus agentes locais, para além dar dinheiro às empresas (e não será a todas, as maiores e os bancos ficarão sempre a ganhar), é sobretudo poupar o mais que puderem quando se trata dos trabalhadores do SNS. O mesmo se passa quando se trata dos meios materiais para combater o coronavírus, e simultaneamente continuar a manter o SNS a funcionar com excelência de qualidade e de eficiência, porque, não nos esqueçamos, continua a haver outros doentes.

Voluntariado para ministros, deputados e familiares directos

O Estado/Governo não quer gastar dinheiro com a saúde dos seus funcionários e chega ao desplante de uma ministra da Saúde, expressão concentrada da chico-espertice e da incompetência, vir à televisão clamar aos portugueses para se voluntariar, aproveitando-se da emoção (principalmente do medo) criada pela situação, ou seja, para que trabalhem à borla, em vez de contratar os médicos, enfermeiros e assistentes operacionais em falta. Esperamos que, nesta questão, a ministra e os seus familiares mais directos dêem o exemplo e, já agora, os seus colegas do Governo façam o mesmo. Os deputados poderão também dar uma mãozinha já que a Assembleia da República reúne só uma vez por semana e com 20% do quórum.

Todos os detentores de cargos políticos, incluindo administradores hospitalares, devem contribuir com 50% do vencimento para um fundo de combate ao SARS-CoV-2

Mas não é só o problema de falta de pessoal, parece que o Governo se debate com falta de meios financeiros, porque só assim se compreende que a administração do Centro Hospitalar de Leiria (CHL), reconhecendo a “falta de equipamentos e de produtos”, tenha vindo a terreiro “convidar” cidadãos e empresas, embora dizendo que a iniciativa terá sido de alguns deles, a contribuir com donativos para “conta específica” bancária. Em relação a esta questão até apoiamos a proposta apresentada por ministro italiano de todos os deputados de suspenderem o seu salário, enquanto a pandemia perdurar, para ajudar as finanças públicas, algum tempo antes, houve deputados, senão estamos em erro, que já tinham proposto a doação de 50% do salário.

Mas ainda vamos mais longe: todos os políticos com cargos de governação ou de administração pública, contribuam com metade do salário para aquela conta, o que seria um bom exemplo para o país, à semelhança do voluntariado. Não deixa de ser pertinente recordar que o o país está ainda bem lembrado do verdadeiro destino dos dinheiros sacados à generosidade do povo e que em princípio seriam para ajudar as vítimas do incêndio de Pedrogão Grande em 2017. Aos ministros se poderiam juntar os administradores hospitalares que, durante o tempo da troika, e ao contrário dos funcionários públicos em geral, não se viram privados dos subsídios de férias e de natal. Os bancos que foram resgatados com dinheiros públicos e que têm estado a ganhar muitos milhões com a dívida pública nacional devem contribuir com 10% dos lucros líquidos (em 2019, os bancos tiveram lucros de 2,4 milhões de euros por dia), o que não é muito atendendo a que a percentagem dos lucros que não está sujeita a imposto é bem maior.

A solidariedade deve começar por cima e por aqueles que têm mais dinheiro!

01 de Abril 2020

Fonte 

segunda-feira, 24 de março de 2025

O resto de Israel

 

Giorgio Agamben

Nesse dia,
o resto de Israel e os sobreviventes da casa de Jacob
não confiarão mais naquele que os feriu,
mas confiarão no Senhor,
o Santo de Israel, na fidelidade.
O remanescente,
o remanescente de Jacob, regressará ao Deus poderoso.
Pois ainda que o teu povo, ó Israel,
seja como a areia do mar,
só um resto será salvo.

Isaías 10, 20-22

A profecia cumpriu-se. Israel já não existe. Só um resto se salvará e certamente não serão os poderosos que o governaram e o levaram ao fim. Agora é importante saber qual é o remanescente, onde está e como vai sobreviver.

18 de fevereiro de 2025

O Resto de Israel

Imagem: “Jacob lutando com o anjo”, gravura de Léon Bonnat, 1876; na Galeria de Arte da Universidade de Yale.

*

Só um Deus nos pode salvar

A declaração direta de Heidegger na entrevista de 1976 ao Der Spiegel: "Só um Deus nos pode salvar" sempre causou perplexidade. Para o compreender, é necessário primeiro retorná-lo ao seu contexto. Heidegger acaba de falar do domínio planetário da tecnologia que nada parece capaz de governar. A filosofia e outros poderes espirituais – a poesia, a religião, as artes, a política – perderam a capacidade de abalar ou, pelo menos, de dirigir a vida dos povos do Ocidente. Daí o diagnóstico amargo de que "não podem produzir qualquer mudança imediata no estado actual do mundo" e a consequência inevitável de que "só um Deus nos pode salvar". Que estamos aqui perante algo para além de uma profecia milenarista é confirmado imediatamente a seguir pela especificação de que nos devemos preparar não só "para o aparecimento de um Deus", mas também e melhor, "para a ausência de um Deus no seu crepúsculo, pelo facto de nos afundarmos diante do Deus ausente".

Escusado será dizer que o diagnóstico de Heidegger não perdeu nada da sua relevância hoje; A humanidade renunciou à posição decisiva dos problemas espirituais e criou uma esfera especial para os confinar: a cultura. A arte, a poesia, a filosofia e outros poderes espirituais, quando não são simplesmente extintos e esgotados, estão confinados aos museus e às instituições culturais de toda a espécie, onde sobrevivem como diversões mais ou menos interessantes (e muitas vezes não menos aborrecidas) e desvios do tédio da existência.

Como devemos então entender o diagnóstico amargo do filósofo? Em que sentido "só um Deus nos pode salvar"? Durante quase dois séculos – desde que Hegel e Nietzsche declararam a sua morte – o Ocidente perdeu o seu deus. Mas o que perdemos é apenas um deus a quem é possível dar um nome e uma identidade. A morte de Deus é, na verdade, a perda dos nomes divinos ("faltam os nomes divinos", lamentou Hölderlin). Para além dos nomes, o mais importante permanece: o divino. Enquanto formos capazes de perceber uma flor, um rosto, um pássaro, um gesto ou uma folha de erva como divinos, podemos viver sem um Deus que possa ser nomeado. O divino basta-nos, o adjetivo importa-nos mais do que o substantivo. Não “um Deus” – mas antes: “só o divino nos pode salvar”.

21 de março de 2025

Giorgio Agamben

Fonte

sábado, 15 de março de 2025

O escândalo ético: crise de governo ou o regime em crise?

 

O PR Marcelo falou ao país e, depois de ter auscultado o seu conselho de estado, anunciou a dissolução da Assembleia da República e marcou eleições legislativas antecipadas para o próximo dia 18 de Maio, isto é, depois dos católicos irem rezar a Fátima, comunidade religiosa onde ele e o seu partido se incluem. Deverão esperar por milagre ou por outra revelação da Virgem. A responsabilidade pelo facto de marcar as terceiras eleições para o Parlamento em pouco mais de três anos e juntar quatro eleições em menos de um ano, Marcelo não teve pejo em atribui-la à pessoa do primeiro-ministro, que persistiu em colocar a moção de confiança a votação depois de duas moções de rejeição terem sido chumbadas e de não ter até ao momento fornecido explicações claras e precisas quanto ao imbróglio de ter mantido a empresa familiar após a tomada de posse como chefe do governo. O governo cai por “falta de ética e moral”, a “desconfiança dos portugueses” em relação aos partidos do arco da governação não se pode estender ao regime democrático; contudo, não disse que a porta da instabilidade e da desconfiança foi ele que a abriu com o derrube do governo de maioria absoluta de Costa/PS. Marcelo, o rei da intriga, faz o mal e a caramunha.

Candidatura a salvador da pátria

As reações por parte do PSD e do anexo CDS-PP não se fizeram esperar: “Pedro Nuno Santos fez pior à democracia nestes últimos seis dias do que André Ventura nos últimos seis anos”, diz a dita “segunda figura de estado”; "Isto é o caminho para a ditadura", perora a fulana que sugeriu a suspensão da democracia por uns tempos para se arrumar a casa; o gajo que que levou com o escândalo ético em cima da cabeça incha o peito e arrota que “não vai desistir” e está “para dar e durar”; e o candidato a Bonaparte não se coibiu de, no seu jeito casernático e boçal, botar igualmente faladura: “não desejo apoios de nenhum partido”, aproveitando assim, embora negando, da crise política e criar “distrações”. Fica-se com a ideia de que estes gajos estão todos feitos uns com os outros e tudo fizeram para criar a crise e tirar proveito da mesma, cada um à sua maneira e segundo os seus interesses. Os partidos da putativa oposição são unanimes em afirmar que não estavam interessados em mais eleições, mas não passa de um engano, inclusivamente aqueles que se arriscam a desaparecer do Parlamento a breve prazo. Todos fazem bluff.

Ao contrário de alguma opinião, o governo não se suicidou e Montenegro actuou segundo plano pré-estabelecido, isto não quer dizer que as coisas lhe irão correr de feição, essa será outra história que ele não poderá controlar, para conseguir uma maioria absoluta. O homenzinho não se desfez da empresa familiar em tempo útil pela simples razão de que não quis, e, por arrogante, achou e acha que sairá vitorioso da peleja que ele próprio provocou, por carácter e por ganância, porque a dita empresa parece não passar de uma habilidade para lavagem das comissões (luvas, propinas) do negócio de lobbing (em português, tráfico de influências) que parece ser uma das principais fontes de rendimento. E o negócio é de tal modo evidente que dividiu o próprio partido, e levou ao manhoso Marcelo a distanciar-se e a aproveitar o facto para esconder as suas responsabilidades pela instabilidade governativa a até de descrédito de todo o regime – como demonstramos em crónica anterior, logo após a realização das eleições de 10 de março de 2024. Estamos apenas a assistir ao episódio seguinte de uma novela que estará longe de terminar.

O chefe do governo demissionário aspira a ser um chefete capaz de impor ao povo português as medidas que Bruxelas e a elite indígena reivindicam para fazer face à grave crise económica que já está a grassar em toda a União Europeia e que, mais cedo ou mais tarde e francamente ampliada, chegará a Portugal. Crise bem expressa pela recessão económica dos países mais ricos, daí também o risco de um confronto armado generalizado no espaço europeu, como forma de a debelar, e a militarização, com o duplo fim de relançar a economia em estagnação, por exemplo, o grupo Volkswagen já decidiu investir em equipamento militar. A crise já foi formalmente decretada. E, caso necessário, a vontade de impor a lei do cacete aos trabalhadores, na eventualidade de se revoltarem, também existe, haverá de se encontrar o cabo de esquadra adequado. Para a boa resolução destas questões, o homem até parecer possuir algumas qualidades: arrogância, ambição, teimosia e pouca inteligência.

E vejamos: questionado quanto à empresa, declara arrogantemente: “tenho mais que fazer do que vos estar a responder diariamente”, fazendo lembrar o Cavaco, que raramente tinha dúvidas e nunca se enganava: “para serem mais honestos do que eu têm que nascer duas vezes”. Deu muitas explicações quanto à empresa mas nunca disse tudo e levantou ainda mais dúvidas e suspeições. A Polícia Judiciária pediu-lhe para entregar os documentos da casa em Espinho, que parece ter sido beneficiada, quer pela câmara quer pelo fisco, entregou-os mas não a quem os pediu. Diz que é candidato a primeiro-ministro mesmo que seja constituído arguido, como se as eleições não fossem para deputados mas para um chefe presidencialista. Faz orelhas moucas a algumas críticas que vêm do interior do partido: “Num Governo normal, num tempo normal e num país normal, um primeiro-ministro nestas circunstâncias não se recandidata. Luís Montenegro está completamente agarrado ao poder", diz o ex-ministro experiente em assuntos de segurança e repressão. Como se constata, candidatos a chefetes, cabos de esquadra ou Bonapartes, não faltam em Portugal.

A diluição do regime

Esta gente não se cansa em esforços com o fim de degradar e liquidar o regime democrático, saído do golpe militar de 25 de Abril. O regime completou no ano passado cinquenta anos e por este andar o futuro é incerto, muito longe nos encontramos de uma “democracia madura”, como o rei beato gosta de referir. A tal “segunda figura ada nação”, ela também ligada ao negócio do imobiliário, faz por isso: “vivemos hoje uma crise de disponibilidade das pessoas de bem para a política”, e alerta para “problema transversal” de atrair os “melhores” para a política num ambiente mediático “armadilhado” de “desconfiança” e “voyeurista”. Traduzindo: a política é para os doutores, já dizia o velho das botas, e como tal devem ser remunerados como tal. Os trabalhadores, os operários, os mais deserdados da sociedade, a esses cabe-lhes unicamente de enfiar de quando em vez, um papel dobrado na urna e caucionar as patifarias de toda a sorte de oportunistas, arrivistas e chulos que venham a ocupar os lugares de deputado ou de governantes. Parece que ninguém ousa defender que um deputado da Nação não deve auferir mais do que o salário médio de um trabalhador, já que se trata de se servir a res publica, é que assim abria-se espaço para que houvesse deputados saídos da classe de quem trabalha e produz, porque é ela que sente na pele os verdadeiros problemas que afligem o país.

O chefe que quer ser chefete ri-se das acusações, goza com quem o critica e borrifa-se para a indignação do povo português porque sente-se protegido e imune. Parece que o Ministério Público irá investigar o que se passa com a empresa – que não é dele mas da mulher e dos filhos, mas que a eles terá passado depois de já a não ter (este gajo pensa que o povo é burro!) – já depois de ter arquivado o caso da casa de Espinho. Começará por uma “averiguação preventiva”, figura que não existe em lado nenhum no edifício legislativo português, em vez de um inquérito. Será a intenção, porque é a ideia com que se fica, de dar tempo para que sejam destruídas as provas das eventuais ilegalidades praticadas? Assim, não vão ser investigadas as contas bancárias, informações da família à Autoridade Tributária, nem os pagamentos feitos pelas empresas clientes à Spinumviva. Venham cá depois com a treta da separação dos poderes, legislativo e judicial no caso, porque o poder é só um, o da elite; ou seja e repetimos, estão todos feitos uns com os outros, uma verdadeira mafia.

Por onde quer que se espreite, só se vislumbra corrupção, ela é uma espécie de óleo lubrificante que faz rodar a engrenagem do sistema. Por exemplo, a Inspeção-Geral de Finanças (IGF) detectou que o estado (governo) concedeu 8.005 milhões de euros em subvenções e benefícios públicos, cerca de 3% do PIB, e mais de metade, 4.985 milhões de euros, foi atribuída a empresas do sector privado sem qualquer controlo. Nesta verba não se incluem os negócios feitos entre o estado e privados, concursos, ajustes directos, nem benefícios e perdões fiscais, fuga de capitais, dívidas à Segurança Social e ao Fisco que ficam por liquidar, etc.. Acrescentar ainda as privatizações, que estão suspensas devido à queda do governo, mas que serão para retomar com este ou outro governo mais rosado, das rodoviárias e ferroviárias às do aeroporto de Lisboa e da Saúde. Está projectada a passagem para a gestão privada de cinco hospitais e mais os 174 centros de saúde que lhes são agregados. Agora, já se entende para que foram cridas as denominadas ULS: facilitar a privatização, que vai em pacotes e embrulhada na mais despudorada corrupção.

Os media mainstream, em especial os mais conservadores, já estão a comparar a actual crise política com a da I República, 1910-26, através do número de eleições por ano e duração dos governos: “Quatro eleições legislativas em cinco anos e meio? Nem na 1.ª República” (Público, jornal da família oligarca Azevedo). Uma lógica de descredibilização do regime em vigor e, sub-repticiamente, deixando no ar a ideia de que a solução poderá ser uma saída autoritária, e o almirante até talvez venha a dar jeito, razão pela qual a mesma imprensa o tem levado ao colo desde há algum tempo. Há um sector da elite que aposta abertamente numa solução bonapartista para a crise económica e política: a estabilidade dos cemitérios. Esquece-se que se esse caminho vier a ser percorrido, o seu fim será apressado. Mal por mal, este ainda é o regime que mantem o povo mais entretido e sossegado, embora apenas até certo ponto, dependendo do grau em que os bolsos dos trabalhadores são esvaziados.

A crise económica está na raiz

Parece que os patrões “chumbam” as eleições antecipadas: “Já basta o elevado clima de incerteza de origem internacional” – dizem. Mas é só treta para que ninguém os acuse de desejarem a instabilidade política e a possível deterioração do regime democrático. Apenas mais um exercício de hipocrisia, muito semelhante aos praticados pelos seus funcionários políticos. As palavras do chefe da oposição e líder do PS sobre a incompetência do PSD em gerir a administração do estado, após o chumbo da moção de confiança, são mais que esclarecedoras sobre a verdadeira função dos partidos do establishment: gerir os negócios dos capitalistas e colocar ao seu serviço os instrumentos e os recursos públicos. Marx e Engels, no Manifesto Comunista, redigido entre Dezembro de 1847 e Janeiro de 1848, já tinham visto a realidade por tão evidente que ela era: “O governo do Estado moderno não é mais do que uma junta que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa”.

Temos afirmado constantemente, e iremos continuar a fazê-lo – porque não se pode apenas ver a árvore mas sempre a floresta –, de que a crise política é uma consequência da crise económica, e ela está bem evidente, apesar dos (des)governates passem quase todo o tempo a dizer o contrário. A dívida das famílias, empresas e estado, subiu, em termos absolutos, para 814.100 milhões de euros em 2024, dividindo-se em: 454.600 milhões de euros do setor privado (empresas privadas e particulares) e 359.400 milhões de euros do setor público. Como se pode ver, a dívida privada é superior à pública, e essa diferença não é maior porque o estado (governos) tem assumido parte dos prejuízos das empresas privadas, nomeadamente dos bancos, e durante a pandemia essa transferência foi particularmente brutal: “medidas de resposta à Covid-19 custaram 16,5 mil milhões em três anos”. Para se entender também para que serviu a pandemia, os confinamentos e tudo o mais a ela relacionada. Outros exemplos mostram que a pobreza tem aumentado em Portugal: “Mais de mil pessoas vivem em barracas em bairro de Almada”; “Funcionárias da fábrica Temasa protestam contra encerramento e acusam patrão de maus-tratos”; “Mais de 40% dos trabalhadores do alojamento e da restauração recebem o salário mínimo”; “Fábrica da Yazaki Saltano vai despedir 364 trabalhadores em Ovar”. Os despedimentos colectivos vão ser a epidemia de 2025 e que muito provavelmente irá prolongar-se pelos próximos tempos.

Dizer não ao mais do mesmo

Para rematar. Daqui a 2 meses vai haver de novo eleições, estamos curiosos em saber em que medida a desconfiança, que existe, de muitos cidadãos portugueses se vai traduzir em votos nos partidos mais marginalizados do sistema ou em abstenção, onde se pode incluir votos em branco ou nulos. É por demais evidente a necessidade de alternativa, seja em novos partidos seja em políticas que desmontem toda a artimanha da burguesia, que responda às reivindicações mais sentidas pela maioria do povo e dos trabalhadores portugueses. Reivindicações antigas, diga-se de passagem, e que o actual regime parlamentar burguês não conseguiu ou não quis responder: Pão, Paz, Habitação, Saúde e Educação. A Paz foi conseguida porque os soldados em Portugal se recusaram a a embarcar para as antigas colónias e continuar a guerra, mas agora tanto o PS como o PSD/CDS-PP querem a guerra, defendem a militarização, e se puderem vão enfiar os nossos jovens numa guerra ainda mais violenta do que a que passamos durante quatorze anos. E quanto a outras, Democracia e Liberdade, foram qb e estão prestes a irem pelo esgoto abaixo.

Decididamente que nem PS nem PSD (incluindo anexo CDS/PP) são a solução, mas quase de certeza que um deles vai ganhar de novo as eleições e, com Montenegro às voltas com as mentiras em relação à empresa ou sem ele, a crise não irá acabar, quanto muito será adiada. O PS só é de “esquerda” quando está na oposição, no governo é a direita a governar; a diferença está enquanto o PSD faz o papel de polícia mau, o PS faz o de polícia bom. Não basta mudar de política, como alguns partidos mais à esquerda defendem na ilusão de que o PS se for bem acompanhado até poderá de mudar de agulha, puro engano e que já por vezes demais experimentamos, é obrigatório mudar principalmente de partido.

Notas:

1. A crise económica mobiliza a tropa - Viva a caserna!

2. As eleições do dia 10: a instabilidade veio para ficar

sábado, 8 de março de 2025

8 DE MARÇO, DIA INTERNACIONAL DA MULHER TRABALHADORA

«Não se pode incorporar as massas operárias na política sem incorporar as mulheres, porque, sob o capitalismo, a metade feminina do género humano é duplamente oprimida. A operária e a camponesa são oprimidas pelo capital, e ademais, inclusive nas repúblicas burguesas mais democráticas, não usufruem da plenitude de direitos, uma vez que a lei lhes nega a igualdade com o homem. E em segundo lugar, o que é mais importante, permanecem na "escravatura caseira", são "escravas do lar", vivem abafadas pelo labor mais mesquinho, mais ingrato, mais duro e mais embrutecedor: o da cozinha e, em geral, o da economia doméstica familiar individual».

Lenine, 1921

Lenine considerava que para a libertação e emancipação da classe dos operários serem completas tinha que se integrar nesse processo a mulher operária, trabalhasse ela na fábrica ou no campo, processo que passaria pela sua retirada das tarefas domésticas e pela integração na produção. Por extensão deste raciocínio não só a mulher trabalhadora não se encontrava emancipada como a própria mulher burguesa, ambas duplamente oprimidas. Neste texto, datado de 8 de Março de 1921, Lenine não considera que na democracia burguesa a mulher tenha os mesmos direitos que o homem.

Actualmente, em princípio do século XXI, a situação ainda será a mesma descrita por Lenine?

Em relação à mulher que trabalha, e vamos referir-nos concretamente à situação em Portugal, esta é abertamente discriminada em relação ao homem e é submetida a uma maior exploração. Ela ganha entre 15% a 20% menos; sofre mais o desemprego que o homem, a maior parte dos despedidos nas indústrias consideradas em “crise” é constituída por mulheres; as mulheres detentoras de graus e formação académica superior experimentam maior dificuldade em encontrar emprego; é a mulher que mais facilmente é marginalizada e excluída socialmente.

Portugal, entre os países da União Europeia, é daqueles que possui uma das mais elevadas (senão a maior) taxas de participação das mulheres no trabalho activo. Esta realidade surge mais como uma necessidade imperiosa num país onde os salários são baixíssimos, tornando-se difícil que uma família consiga viver só com um ordenado ao fim do mês, do que resultado de uma tomada de posição consciente e deliberada. Mesmo a nível de funções executivas, a mulher possui uma menor participação, e se o número é maior no ensino, nomeadamente, ensino universitário, poucas vezes surge em lugares de chefia ou de destaque. Em determinadas profissões tradicionalmente “femininas”, enfermagem, por exemplo, a nível sindical e a nível superior de gestão, são os homens que detêm o protagonismo na maioria das vezes.

A mesma realidade se observa na administração das grandes empresas ou grupos económicos ainda em mãos de famílias portuguesas, aqui são os homens que tratam e herdam os negócios, mantendo a tradição da sucessão pela linha masculina e de primogenitura, características da velha aristocracia, ficando os assuntos da família e da vida social reservados para a mulher. A mulher burguesa é emancipada no que respeita às tarefas domésticas e na liberdade e independência que o seu estatuto lhe confere na distinção em relação à mulher trabalhadora.

O patriarcado atravessa toda a sociedade humana e encontra-se indissociavelmente ligado à existência da propriedade privada dos meios de produção, mas não nasceu com o capitalismo nem com a burguesia mercantil e há quem considere que é anterior ao surgimento da agricultura e da diferenciação da sociedade em classes. Entre os nossos ancestrais caçadores-recolectores já haveria o patriarcado e a divisão sexual do trabalho; enquanto que a mulher, devido à sua condição maternal, ficava perto de casa cuidando, para além da prole, da colheita de frutos e de plantas, o homem dedicava-se à caça, feita em cooperação, e à protecção do grupo contra os predadores. A mulher dominaria socialmente, nos primeiros tempos, através da religião, função essa que mais tarde passaria para as mãos do homem, mesmo nas sociedades matriarcais. A existência da poligamia em quase todas as cerca de trezentas sociedades de primatas, com excepção de uma (os gibões são os únicos monogâmicos e são-no por imposição ecológica) e a predominância da organização patriarcal, embora haja algumas espécies onde pontifica o matriarcado, são tidos como fortes argumentos para a ancestralidade do patriarcado na sociedade dos humanos.

Isto poderá querer dizer que a libertação da mulher é um processo longo e demorado, que levará gerações e se encontra intimamente ligado à emancipação do género humano. O primata humano ainda se encontra em estado de relativo primitivismo, a civilização encontra-se a dar os primeiros passos, e o esforço de libertação tem forçosamente de ser obra do próprio. Daí a emancipação da mulher ter de ser trabalho seu, não delegado em ninguém; daí o ridículo do estabelecimento de quotas para as mulheres em cargos públicos ou em lugares em listas de candidaturas políticas – a mulher é o sujeito da sua luta e ninguém a poderá substituir.

Reconhece-se que a constituição biológica e comportamental da mulher é diferente da do homem, que os tempos e modos de aprendizagem e de socialização não são também iguais, isso não quer dizer, como já pretendeu a Igreja católica ainda há não muito tempo, que tenha de ser discriminada em termos de direitos e de estatuto. Essas diferenças serão em competências que se poderão desenvolver não em caminhos antagónicos, mas diversos e complementares.

Tudo se conquista, nada se dá – este é um axioma essencial da sociedade em que vivemos – e será também um princípio de conduta. Se a mulher entra em competição com o homem, não quer dizer que este seja o seu inimigo, poderá quanto muito possuir, em determinadas ocasiões, interesses diferentes, o alvo não deixará de ser o sistema capitalista que a ambos discrimina e explora, daí a luta ser sempre uma luta de classes.

08 de Março 2009

Imagem: Clara Zetkin

Fonte

quarta-feira, 5 de março de 2025

O Assalto ao Serviço Nacional de Saúde

Business Roundtable Portugal: presidente Vasco de Mello (da José de Mello) e na vice-presidência estão Cláudia Azevedo (da Sonae) e António Rios de Amorim (da Corticeira Amorim) - Foto BRP/TSF

O processo de privatização da Saúde é um projecto comum ao PS e ao PSD/PP, mantido no tempo do PS em velocidade cruzeiro e agora acelerado de forma extrema pelo governo AD – quem na realidade vai arrecadar os lucros serão os grandes grupos económicos nacionais e estrangeiros. Texto redigido há algum tempo mas perfeitamente actual.

Ao longo dos últimos 30 anos temos vindo a assistir ao desmantelamento gradual e paulatino do SNS, umas vezes mais em modo rápido, quando o PSD e associado estão no governo (partido que não aprovou a Lei do SNS em 1979), ou mais lento e disfarçado, quando se trata do PS. Só que nos tempos actuais, tempos de pandemia covid-19 (bastante oportuna), o desmanchamento foi apressado e passará em breve para a privatização tout court.

E qual será o sector a ser desmembrado do SNS e a passar directamente para o domínio dos negociantes da saúde? Exactamente o sector tido como primário, ou seja, os centros de saúde. Não foi por acaso que foram estes os primeiros a fechar logo nos primeiros dias da pandemia, com o abandono dos utentes e, após os desconfinamentos, ainda se mantêm em modo lento – são mais que muitos os testemunhos de que nos centros de saúde ninguém atende as chamadas de telefone, embora seja essa a indicação para o acesso aos cuidados que deveriam prestar.

Não é estranho nem motivo para admiração que agora venham estudos, como o estudo “O impacto da pandemia covid-19 na prestação dos cuidados de saúde em Portugal”, mostrar que num ano de pandemia, Março 2020 a Fevereiro de 2021, em que o SNS fechou parcialmente e as pessoas foram atemorizadas em recorrer aos cuidados de saúde, houve “menos 13,4 milhões de contactos presenciais médicos e de enfermagem nos centros de saúde” e mais de um milhão de pessoas sem médico de família.

Em relação aos hospitais do SNS, houve menos 4,5 milhões de consultas, menos 176.057 cirurgias (162.424 programadas e 13.593 urgentes), menos 2,5 milhões de episódios de urgências (-40%), um número considerado “impressionante” pelo sacripanta do bastonário da ordem dos médicos e que desmonta claramente o alarmismo lançado pelos media (principalmente as televisões) quanto ao congestionamento dos serviços de urgência, e a menos internamentos. Como se constata, o SNS esteve muito longe de colapsar. Mas como a falta de vergonha não tem limites, estamos novamente a ouvir a mesma lengalenga, agora a propósito do aumento do número de “infectados”.

Se já havia um mercado de utentes não atendidos atempadamente pelo SNS, desde consultas a cirurgias, antes da pandemia, agora esse mercado aumentou desmesuradamente. Os privados estão neste momento a salivar pelos muitos milhões que irão arrecadar, quer directamente extorquidos aos bolsos dos cidadãos quer através dos protocolos com o estado ou dos subsistemas de saúde. Vai ser um fartar vilanagem!

Não deixa de ser patético ouvir um bastonário dos médicos, um profissional de saúde que acumula o público com o privado e dessa maneira um dos responsáveis pela degradação do SNS, dizer que esta é “uma situação difícil” e que a resolução da mesma deve ser “prioritária para o país”. O “país” a que se refere o bastonário da doença é o país dos sectores social e privado que ele considera importantes na “envolvência da execução do programa” de recuperação dos cuidados de saúde em atraso e da sua “monitorização” (palavras do dito). É o país das Misericórdias e dos grupos Luz Saúde, CUF e Lusíadas Saúde, entre outros, que (coitados!) fecharam o ano com resultados negativos de 58,6 milhões de euros (ao que dizem).

Ainda os milhões da bazuca europeia (Programa de Recuperação e Resiliência) não estão a ser distribuídos e logo um grupo dos líderes de 42 das maiores empresas a actuar em Portugal se comprometeram a contribuir de forma activa para o “crescimento de Portugal”, ou melhor, para aumento dos seus lucros por meio dos milhões que contam receber e da privatização dos sectores mais apetecíveis das funções do estado: saúde, educação e segurança social. A mesa redonda dos negócios de Portugal (em inglês para disfarçar alguma menos positiva conotação, Business Roundtable Portugal) para esse fim foi criada; e não é por acaso que tem como Presidente Vasco de Mello (CEO do  grupo José de Mello/CUF) coadjuvado pela CEO do Grupo Sonae, que possui o colégio para a elite Efanor (curiosamente classificado em nº1 no ranking dos exames) em Matosinhos, e o CEO do grupo Amorim.

O assalto ao SNS acontece porque foi sempre facilitado pelos governos, incluindo os governos do PS, apesar destes estarem sempre com a boca cheia de “defesa” do SNS, e por gente que dentro do SNS está pronta a enriquecer um pouco mais à custa das doenças dos portugueses. E ouvir um presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) dizer que “é um desígnio nacional, é uma tarefa prioritária nacional” a vacinação e que, portanto, para se recuperar os actos médicos e de enfermagem atrasados ter-se-á de recorrer às “instituições privadas de saúde” (palavras do dito), fazendo a manchete, para gáudio dos media corporativos, “Centros de saúde querem mais articulação com hospitais e privados para recuperar”.  

Enquanto os privados esfregam as mãos de contentes e alguns profissionais de saúde se preparam mais acumular mais uns tachos, o Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) vem afirmar que “não é compreensível” a ausência de investimento na saúde pública, na medida em que o Plano de Recuperação e Resiliência não contempla qualquer investimento no campo do sector da Saúde Pública. E alerta para os perigos da “municipalização” dos cuidados de saúde primários, cujos algumas competências já foram entregues aos municípios em 2017 (instalações e contratação de pessoal auxiliar). E diz ainda que é preciso repensar o Conselho Nacional de Saúde Pública; exactamente, o organismo que deveria assessorar o governo na tomada de medidas para o combate à pandemia e não o Infarmed, órgão este sob controle directo do lóbi do medicamento.

É cristalina como a água a estratégia política de cortar parte do SNS em fatias e entregar as mais apetecíveis ao sector dos negócios da saúde por parte do governo PS. A questão da descapitalização de recursos, quer materiais quer humanos, é evidente, não deixa dúvidas e bem significativa por si só. Em relação aos recursos humanos, os mais preciosos, a incompetente ministra da Saúde, que mais não passa que moça de recados do primeiro-ministro, veio agora dizer que mais de 230 médicos do SNS aposentaram-se este ano até ao mês de Maio, e dos quais 131 eram especialistas em medicina geral e familiar. No entanto, não diz como vai atrair novos médicos sem aliciantes na carreira, o mesmo acontecendo com os enfermeiros e assistentes técnicos, os sectores de maior carência, escondendo que nos centros saúde os médicos ou são já velhos, na casa dos 60 anos, quase na reforma, ou muito novos na casa dos 30, havendo um hiato, bem revelador que a intenção sempre foi a de privatizar. A intenção não é de agora, a pandemia é o mais que excelente pretexto.

Se o investimento em recursos humanos não chega sequer a pouco, quanto mais a suficiente, como alguns sindicatos dos enfermeiros, por exemplo, têm timidamente alertado para o facto de o governo impedir a contratação de novos enfermeiros que não tenham já contrato de trabalho no SNS, então quanto a investimento financeiro a situação é péssima e intencional. Se a despesa total em 2020 do SNS foi de 11.454 milhões de euros, a despesa prevista para este ano é de apenas mais 1,3%; mas comparando a despesa já efectuada nos primeiros cinco meses deste ano de 2021 com a do período homólogo do ano passado, verifica-se que é 5,5% mais elevada (números de Eugénio Rosa), o que irá aumentar o endividamento do SNS, se se mantiver o mesmo ritmo de despesa, e estrangular ainda mais o SNS. Facilita-se assim também a privatização do SNS enquanto se vai adquirindo mais serviços aos privados.

No estudo a que fazemos referências no início deste texto, “O impacto da pandemia covid-19 na prestação dos cuidados de saúde em Portugal”, salienta-se o facto de cerca de 450 mil portugueses que não fizeram rastreio do cancro e houve menos 29 milhões de actos de exames complementares de diagnóstico e terapêutica, no período apontado; o que significa que daqui para a frente devemos esperar um maior número de doenças que não foram atempadamente diagnosticadas, cancros, diabetes, doenças cardio-vasculares, casos de hipertensão, etc. e outras doenças graves de início silencioso, que irão aumentar a taxa de mortalidade por todas as doenças e fazer baixar a idade média de esperança de vida dos portugueses, contrariando a opinião daqueles que não se cansam de anunciar que a vacinação irá beneficiar a longevidade.

Esta vacinação em massa, usando uma vacina que só agora é que está a ser testada, e administrada à população a eito, incluindo crianças e adultos jovens, só irá aumentar um problema de saúde pública e aumentar a mortalidade entre os portugueses sãos. Parece que estamos a assistir a uma agenda de eugenia generalizada conduzida pela ganância do lucro das vacinas e dos tratamentos de doentes, que terão de ser doentes à força para que haja sempre mercado. E os criminosos não são só os negociantes da doença, mas todos os políticos, quer do governo quer do parlamento quer do poder autárquico, todos são responsáveis nem que seja pela omissão.

11 de Julho 2021

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Nazismo 2.0

Por Ilan Pappé

Continuo a acreditar que esta total falta de misericórdia e uma crueldade sem precedentes demonstram que estamos no fim do pior capítulo da história moderna da Palestina.

Se alguém se está a perguntar o que o último discurso louco e alucinante de Trump sobre Gaza produziu em Israel, tudo o que tem de fazer é aprender hebraico ou perguntar a alguém que perceba de hebraico, o discurso da política israelita e dos media.

«É claro que ninguém quer o povo sofredor de Gaza, e não estou a falar do Hamas, mas de todo o povo de Gaza; "É por isso que a Jordânia e o Egito rejeitam a fantástica proposta de Trump", explicou o principal comentador de assuntos árabes no principal canal de horário nobre de Israel, a 6 de fevereiro de 2025.

Pergunto-me se os nazis estavam a dizer algo assim sobre os judeus.

Todos os possíveis limites humanos e morais foram transcendidos para o domínio público em Israel.

Tudo é válido quando se trata dos palestinianos em geral e do povo de Gaza em particular. Já não se trata de falar deles como animais, é muito pior. São retratados como a pior forma de humanidade na nova narrativa, que absolve Israel de quaisquer crimes contra eles.

Os políticos falam assim, os grandes meios de comunicação legitima o seu discurso, e os rabinos nas sinagogas — instituições que estão mais povoadas por judeus israelitas do que nunca — pregam o genocídio dos palestinianos sem vergonha ou inibição.

Tudo isto prepara os próximos estágios do genocídio.

A calma temporária no genocídio não se deve ao facto de o mundo lhe ter posto fim. A operação foi interrompida porque Trump queria que os reféns fossem libertados à sua imagem e depois permitir que os israelitas fizessem o que bem entendessem.

Mesmo que deixássemos de construir colonatos e deixássemos de ver milhões de pessoas a manifestarem-se pela Palestina, estaríamos a enganar-nos. Não acabou. A insana nação de Israel tem agora mais pessoas e políticos dispostos a apoiar o genocídio do que aqueles que se opõem a ele, se é que existem.

Continuo a acreditar que esta total falta de misericórdia e uma crueldade sem precedentes são a manifestação de que estamos no fim do pior capítulo da história moderna da Palestina.

Na verdade, estou ainda mais certo de que, tal como na Alemanha pós-nazi, mais judeus israelitas do que eu esperava acordarão inicialmente e sentirão remorso e culpa pelo seu silêncio perante o holocausto que Israel está a infligir aos palestinianos.

Mas, por enquanto, é um apelo desesperado para não ficarmos apáticos ou complacentes por causa do cessar-fogo. Trump fez renascer todas as forças obscuras de Israel com o seu plano – ou capricho, o que quer que seja – de expulsar o povo de Gaza e transformar a terra numa Riviera Americana.

Os governos europeus, incluindo o britânico, condenaram a ideia, o que é de louvar. Por isso, mostre um pouco de humanidade. Mas isto não é suficiente, e não conseguem ver as implicações mais vastas não só da sua inacção actual, mas também da sua cumplicidade no genocídio desde 7 de Outubro de 2023.

Era a era das ilusões de ótica.  Líderes  como o fanático Naftali Bennett lideram agora as sondagens em Israel e, sim, ele pode derrotar Netanyahu, mas não oferece uma abordagem mais humana aos milhões de palestinianos sob o domínio israelita, que ainda são vistos como um problema que só pode ser resolvido através da destruição e eliminação.

A política interna de Israel nada tem a ver com a atitude e as políticas unanimemente partilhadas por Israel em relação aos palestinianos.

A grande imprensa ocidental – para não falar dos fiéis aliados de Israel, desde o  Jewish Chronicle, o porta-voz do fanático Israel no Reino Unido, à  Fox News  nos EUA – fornece a cobertura internacional que permite a Israel safar-se desta retórica e deste plano anunciado.

As 41 línguas em que a BBC transmite falam a mesma linguagem: desumanizar os palestinianos e garantir a imunidade a Israel e às suas políticas.

Temos ainda de acreditar que, a longo prazo, por mais horrível que este cenário seja, é o prelúdio de um futuro muito melhor. Devemos também acreditar que este prelúdio pode e deve ser reduzido ao mínimo.

Não tenho uma varinha mágica para uma reviravolta tão dramática, mas não estamos sozinhos, por isso vamos colocar as nossas mentes e esforços para além das capelas e da desunião e encontrar uma forma ainda melhor, para além do trabalho extraordinário que fizemos como movimento de solidariedade, para evitar as próximas fases do apagamento da Palestina como ideia. o povo e o país.

Uma coisa é certa: a resistência e a resiliência palestinianas continuam a ser as melhores garantias de que estes planos demoníacos não serão totalmente implementados. Mas o preço a pagar pode ser demasiado elevado e pode ser evitado.

Estamos num momento em que precisamos desesperadamente de liderança e direcção palestinianas, e ainda não as alcançámos. Mas há demonstrações esperançosas de unidade, como  nos descreveu  recentemente o nosso editor Ramzy Baroud.

Isto não é suficiente, mas dá esperança para o futuro próximo.

Ainda há tempo para acordar o Norte Global: se não os seus líderes, então os seus políticos ainda têm consciência, e se não os grandes meios de comunicação, então os meios de comunicação alternativos.

Temos o direito de exigir muito mais do Sul, encorajados pelo exemplo da Colômbia, e de nos interrogarmos: onde estão a Malásia e a Indonésia? Onde fica o Paquistão?

Isto tem a ver tanto com a justiça global como com a Palestina, e também com a descolonização do mundo como um todo, e não apenas da Palestina, para que a unidade global possa enfrentar em conjunto os formidáveis ​​desafios que só podem ser ultrapassados ​​em conjunto, desde o aquecimento global à pobreza global e ao movimento de milhões de pessoas do norte para o sul em busca de vida e sobrevivência.

Esta é a única forma de derrotar o populismo, o fascismo e o racismo, de que muitos de nós, especialmente os palestinianos, ainda hoje sofremos.

Fonte

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Sismo em Lisboa e a tasca dos bandidos

 

Alguma coisa tem tremido em Lisboa, mais do que o sismo de magnitude de 4,7 na escala de Richter e que terá sido o segundo no período de seis meses, prenúncio de sismo muito mais grave segundo a opinião dos entendidos. E essa coisa é o governo de Montenegro/PSD/CDS/PP mais a dita “casa da democracia” que ultimamente se tem assemelhado mais a uma praça da peixeirada ou tasca de bairro, ilustrando a verdadeira natureza da classe política do establishment que por ali pulula. Assim como o sismo que poderá ter réplicas mais fortes, as ondas de propagação da corrupção no governo e da bagunça no Parlamento irão ocorrer na política do país, e com mais violência.

Os casos e casinhos do governo AD

Antes de perfazer um ano de vida, o governo está a ser confrontado com “casos e casinhos”, muito à semelhança do governo que o antecedeu e que ditaram de certa forma o seu fim, apesar de gozar de maioria absoluta. Pouco tempo de ter procedido à remodelação governamental substituindo meia dúzia de secretários de estado em outros tantos ministérios, o chefe do governo é acusado de ter criado, juntamente com a família, uma empresa para o negócio do imobiliário, tal como fizera um dos seus secretários de estado demitido, que assim se iria aproveitar de uma alteração legislativa prevista antecipadamente e já em preparação.

Montenegro veio logo a terreiro dizer que não há conflito de interesses, porque – imaginem lá! – vendera a quota à mulher e aos filhos. Ou seja, uma forma assaz pouco rural de chamar idiotas aos portugueses.  No entanto, os factos não são desmentidos pelo próprio: a empresa em apenas três anos de vida facturou 650 mil euros e apresentou lucros de cerca de 345 mil euros. Ainda não são conhecidas as contas referentes a 2024. Ora, quem tem telhados de vidro, não pode atirar pedras aos do vizinho. O governo PSD/CDS/PP torna-se, embora já o fosse, cada vez mais parecido ao governo PS, no modus operandi e na qualidade dos figurões que o constituem. Quanto a esta questão Marcelo, ao contrário do que fez em relação ao PS, comenta que "não se mete" em remodelações, nem em caos e casinhos, pois Montenegro "é juiz".

A oposição indigna-se pela falta de delicadeza do governo em não se dar ao trabalho de apresentar explicações quanto às razões da referida remodelação e de esta não ter visado os ministros, em especial os mais visados pelas críticas, ministra da saúde e da Administração Interna, aliás, diga-se de passagem, as que mais têm exposto as suas ignorância e incompetência. Também se diga que sabedoria e competência são coisas que não lhes são necessárias porque o seu papel é o de comissárias políticas: uma para a destruição do SNS; a outra para controlo e reforço das polícias e do seu desempenho na repressão contra os trabalhadores e o povo que se manifesta descontente. Fica-se com a sensação de que a birra será mais de o PS não estar no governo a fazer o mesmo ou algo parecido.

Parlamento ou tasca dos bandidos?

Quanto à dita “casa da democracia” que tem sido abandalhada pelo partido da extrema-direita, que foi legalizado e promovido por todo o establishment, desde os partidos do poder aos media mainstream. Os primeiros querendo utilizá-lo na disputa pelo voto enfraquecendo o adversário mais directo: o PS querendo roubar votos ao PSD e este vitimizando-se com a putativa aliança entre PS e a extrema-direita. Os segundos expressando os interesses e a vontade de uma parte da elite que acha que a gestão da coisa pública se faz com mais eficiência se se utilizar o cacete e não a cenoura. O PS só se pode queixar de si próprio quando os seus deputados são agredidos verbalmente, e vai com muita sorte se não começarem a ser agredidos fisicamente. O feitiço em breve se virará contra o feiticeiro.

A selecção de marginais que se manifesta dentro do partido de extrema-direita, acusados de roubo, pedofilia, agressão sexual, violência doméstica ou violência na disputa pelo tacho dentro do próprio partido, racismo e xenofobia, é feita, segundo as denúncias internas, por critérios pessoais do chefe. Faz lembrar processos semelhantes ocorridos no passado e em outras bandas, por exemplo, como Louis Bonaparte tomou o poder em França no século XIX, usando precisamente um bando de rufias, pagos a dinheiro e a aguardente, e recrutados nas docas e no bas fond de Paris. Foi o abrir do caminho ao poder terrorista da elite, poder esse que também se mascarou de “apolítico” e de “anti-sistema”, e que levou a França à derrota militar e o povo francês à ruína e à miséria. Marx referiu na altura que a França já tinha sido governada por meretrizes mas a primeira vez por um chulo.

Em vez de denunciar a realidade da degradação do Parlamento e colocar-lhe ponto final, os partidos da ordem escudam-se por trás da segunda figura do estado, que, por sua vez, descarta a responsabilidade por “não ser polícia de deputados”. Todos conciliam e acabarão por serem corresponsáveis pela destruição do próprio regime democrático parlamentar burguês. Insultar pessoalmente deputados é caso de polícia, mas atendendo ao contexto o caso torna-se abertamente político. O insulto e a provocação rasteira não fazem parte da liberdade de expressão ou do confronto sério de ideias diferentes quanto à resolução dos problemas do país.

Sabemos todos da ambiguidade do significado de “liberdade de expressão”, que é de classe, ou de “discurso de ódio”, podem servir como arma política para perseguir todo aquele que, independentemente das razões, se oponha ao establishment. Mas o uso do ataque pessoal, por ausência de argumentos políticos, acompanhado pela violência terrorista, verbal ou física, faz parte do instrumentário do fascismo. E perante este, não pode haver tergiversação, mas sim um combate frontal. Os partidos que ora se indignam com os insultos soezes parecem que estão à espera que se repita o que aconteceu com o partido Aurora Dourada na Grécia. Foi preciso um dirigente daquele partido ter assassinado um rapper antifascista, ter havido mais uma morte de um trabalhador imigrante paquistanês, espancamentos graves de pescadores egípcios e de sindicalistas comunistas perpetrados por militantes do mesmo partido, para que a formação de extrema-direita fosse ilegalizada sob a acusação de “organização criminosa”.

 “O fascismo é uma minhoca que se infiltra na maçã. Ou vem com botas cardadas ou com pezinhos de lã” - Sérgio Godinho (aqui) - Vasco Gargalo

A arte da corrupção

A corrupção tem sido e é uma preocupação do PSD/CDS e de Montenegro, não para se combater e eventualmente erradicar, mas para a proteger e deixá-la funcionar livre e impunemente. Esta é a conclusão que retiramos dos factos, de algumas acções e da falta de outras por parte do governo AD. O PSD quer criar um alerta automático para os políticos e detentores de funções governativas, saberem em tempo útil quem consulta o seu património. Ora, esta medida não visa uma maior transparência sobre a origem e a forma de aquisição do património de quem gere a coisa pública, mas intimidar o curioso ou o denunciante e persegui-lo caso os políticos o entendam. Mais ainda, o PSD quer que os políticos e os detentores de altos cargos públicos passem a dar ou não autorização para que os seus dados sejam automaticamente confirmados no fisco e notariado. A preocupação é tornar o sistema ainda mais opaco e os corruptos poderem estar a salvo, o que contraria todas as directivas de Bruxelas.

Há razões de sobra para que o PSD esteja deveras preocupado, é que o caso resultante da operação Tutti Frutti foi descongelado e há deputados, presidentes de junta e vereadores do PSD, bem como do PS, entre os 60 acusados, que respondem por 463 crimes de corrupção ativa e passiva, prevaricação, tráfico de influência, branqueamento, burla qualificada, falsificação de documento, abuso de poder e recebimento indevido de vantagem, algum dos quais na forma agravada. O Ministério Público quer que 29 arguidos devolvam mais de 580 mil euros ao estado. Alguns destes acusados ainda resistem em abdicar do tacho a que estão agarrados e, pelo menos um, ainda são responsáveis pela escolha de candidatos do partido às próximas eleições autárquicas. É o bloco central da corrupção no seu melhor. Sendo questionado sobre as questões de segurança e corrupção, o monárquico PR Marcelo não está com meios termos: “o que interessa é a imagem que as pessoas têm”.

Para tornar os órgãos de comunicação social mais amigáveis, que não ousem pensar sequer em denunciar as torpezas do governo ou dos seus elementos, o governo foi enfiar nos bolsos dos proprietários dos ditos, na maioria grandes grupos económicos, alguns na falência como a Impresa/Pinto Balsemão, a módica quantia de 55,2 milhões de euros para concretizar as tais “30 medidas” que integram o “Plano de Ação para os Media”. O pretexto é fomentar a "literacia" dos cidadãos portugueses, isto é, comprar “a sustentabilidade, o pluralismo e a independência da comunicação social em Portugal, promovendo um ecossistema mediático robusto, transparente e de referência”. A preocupação não é a liberdade de expressão, para os cidadãos, mas o controlo dos media na justa medida em que o PSD pretende obter maioria absoluta nas próximas eleições legislativas.

O governo está para durar?

Não deixa de ser interessante ver as posições dos partidos perante a ameaça do chefe da extrema-direita de apresentar na Assembleia da República uma moção de censura ao governo por se terem adensado “as dúvidas sobre a integridade do primeiro-ministro”, isto é, se venham a confirmar as suspeitas da sua empresa (que agora não é dele mas da família, uma paródia!) ter feito negócios com o estado. O PS, pela boca do seu líder, foi peremptório jamais irá apoiar tal moção. Os restantes partidos da oposição seguiram posição semelhante. Parece que todos temem a antecipação de eleições legislativas. O chefe do PSD saliva para que aconteçam e o mais depressa possível, está desejoso de aplicar medidas que neste momento não consegue ou teme fazer, como seja, mexer na Segurança Social, como já afirmara, não será nesta legislatura, mas será na próxima atendendo ao facto que acha que o PS de lhe deu "um livro verde" para o fazer. Montenegro diz: “eu estou aqui para dar e durar”, mas esse não é o seu pensamento quanto a este governo, é apenas quanto à sua pessoa.

É tempo de se correr com toda esta gente do poder e de vez!

Imagem de destaque: "Indigitação de meia-noite"

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Bem e mal

Giorgio Agamben

A antiga doutrina segundo a qual o mal é apenas a privação do bem e, portanto, não existe em si mesmo, deve ser corrigida e integrada no sentido de que não é tanto privação, mas antes a perversão do bem (com o codicilo, formulado por Ivan Illich, corruptio optimi pexima, «não há nada pior que um bem corrupto»). A ligação ontológica com o bem permanece desta forma, mas resta pensar sobre como e em que sentido um bem pode tornar-se pervertido e corrompido. Se o mal é um bem pervertido, se ainda reconhecemos nele uma figura corrompida e distorcida do bem, como podemos combatê-lo quando hoje nos encontramos diante dele em todas as esferas da vida humana?

A corrupção do bem era familiar ao pensamento clássico na doutrina política de que cada uma das três formas justas de governo – monarquia, aristocracia e democracia (o governo de um, de poucos ou de muitos) – degenerou fatalmente em tirania, oligarquia e oclocracia. Aristóteles (que considera a própria democracia uma corrupção do governo de muitos) usa o termo parekbasis, desvio (de parabaino, andar ao lado, para). Se perguntarmos agora onde eles se desviaram, descobriremos que eles se desviaram, por assim dizer, em direção a si mesmos. As formas corruptas de constituição assemelham-se, de facto, às saudáveis, mas o bem que nelas estava presente (o interesse comum, o koinon) voltou-se agora para o seu próprio e para o particular (idion). Ou seja, o mal é um certo uso do bem e a possibilidade desse uso perverso está inscrita no próprio bem, que assim sai de si mesmo, move-se, por assim dizer, ao seu lado. É numa perspectiva semelhante que devemos ler o teorema da corruptio optimi pexima que define a modernidade. O gesto do samaritano, que imediatamente ajuda o próximo sofredor, ultrapassa-se e transforma-se na organização de hospitais e serviços assistenciais, que, embora orientados para o que se acredita ser bom, acabam por se converter num mal. Isto é, o mal que enfrentamos resulta da tentativa de erigir a bondade num sistema social objectivo.

hospitalidade que todos podem e devem dar aos outros transforma-se assim em hospitalização gerida pela burocracia estatal.

Isto é, o mal é uma espécie de paródia (também aqui há uma paródia, um desvio para o lado) do bem, uma objetivação hipertrófica que o move para sempre para fora de nós. E não é precisamente uma paródia tão mortal que todo o tipo de progressismo nos impõe hoje em todo o lado como a única forma possível de coexistência entre os homens? O “Estado administrativo” e o “Estado de segurança”, como os chamam os cientistas políticos, pretendem governar o bem, tirando-o das nossas mãos e objectivando-o numa esfera separada. E será a chamada inteligência artificial outra coisa senão um deslocamento para fora de nós do “bem do intelecto”, quase como se, numa espécie de Averroísmo exasperado, o pensamento pudesse existir sem uma relação com um sujeito pensante?

Diante dessas perversões, devemos reconhecer cada vez o pequeno bem que foi arrancado de nossas mãos para libertá-lo da máquina letal na qual está, “para bons propósitos”, capturado.

21 de Janeiro de 2025

Fonte

Imagem: Solomon, Simeon. Corruptio Optimi Pessima. 1843. Woodblock. The British Museum, London.

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Conjuntura e revolução

Giorgio Agamben

É um facto que não nos devemos cansar de reflectir que um dos termos-chave do nosso vocabulário político – revolução – foi retirado da astronomia, onde designa o movimento de um planeta à medida que viaja na sua órbita. Mas outro termo que, na tendência geral de substituir categorias económicas por categorias políticas que caracteriza o nosso tempo, tomou o lugar de revolução, também provém do léxico astronómico. Pretendemos referir o termo “conjuntura”, para o qual Davide Stimilli chamou a atenção num estudo exemplar.

Este termo, que designa “a fase do ciclo económico que a actividade económica atravessa num determinado curto período”, é na verdade uma modificação do termo “conjunção”, que significa a coincidência da posição de várias estrelas num determinado momento.

Stimilli cita a passagem do ensaio de Warburg sobre a Antiga Adivinhação Pagã em Textos e Imagens da Era de Lutero, em que a conjunção e a revolução são justapostas: «Só dentro de vastos períodos de tempo, chamados revoluções, se poderiam esperar tais conjunções. Num sistema cuidadosamente elaborado, distinguiam-se grandes e grandes conjunções; estas últimas eram as mais perigosas, devido ao encontro dos planetas superiores Saturno, Júpiter e Marte. Quanto mais conjunções coincidiam, mais aterrador parecia o facto, embora o planeta com carácter mais favorável pudesse influenciar o pior." E é significativo que um revolucionário como Auguste Blanqui, desiludido com as suas expectativas, tenha conseguido conceber no final da sua vida a história dos homens como algo que, tal como o movimento das estrelas, se repete infinitamente e recita eternamente as mesmas representações.

O que hoje se passa diante dos nossos olhos é precisamente um fenómeno deste tipo, em que uma situação económica que é por natureza contingente e arbitrária tenta impor o seu domínio terrível sobre toda a vida social. Seria bom, então, abandonar sem reservas a ligação entre a política e as estrelas e cortar em todas as áreas o vínculo que afirma unir o destino astronómico e a revolução, a necessidade e a conjuntura económica, as ciências naturais e a política. A política não está inscrita nas esferas celestes nem nas leis da economia: está nas nossas mãos fracas e na clareza com que negamos qualquer pretensão de aprisioná-las em conjunturas e revoluções.

15 de Janeiro de 2025

Imagem: Aqui

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Nove meses depois, o secretário demitido e o deputado cleptomaníaco

 

O governo minoritário do PSD e CDS vai-se aguentando no poleiro por várias razões: não tem oposição que se veja dentro da Assembleia da República, o PS aprova as medidas mais gravosas para os interesses do cidadão comum, exemplo, alteração à Lei dos Solos, que vai exponenciar a especulação imobiliária e agravar a falta de habitação popularmente acessível, vai distribuindo algumas migalhas pelos diversos sectores da população activa e pelos aposentados. Montenegro continua a jogar em possível maioria absoluta resultante de eleições antecipadas, que infatigavelmente vem procurando. Mas antes que aquelas aconteçam, há que acautelar as eleições autárquicas que acontecerão antes do final do ano. No entrementes, o holandês secretário-geral da Nato encontrou-se com o presidente e o primeiro-ministro “sugerindo” que o governo tem de gastar mais de 3% do PIB na indústria da guerra, à custa das saúde, da educação e das pensões de reforma; o PR Marcelo convocou o seu conselho de estado, para o qual convidou o homem da alta finança (Goldman Sachs) na União Europeia, Mario Draghi, aonde irá “aconselhar” Portugal a entregar a Bruxelas 5% do PIB, para “investir” no desenvolvimento económico para a competitividade europeia.

Quanto à solidez do governo AD, deve-se dizer que a sua fragilidade advém mais da fraca qualidade de quem o integra do que propriamente de factores externos. A demissão do secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, que terá criado duas empresas para investir no imobiliário, precisamente sector em que o governo estava a legislar, mostra que este governo não difere muito do de Costa/PS quanto a esta matéria. O perfil do governante não foge ao habitual: já tinha sido presidente da câmara de Bragança, onde é acusado de algumas habilidades ainda não bem explicadas. E se, até ao momento, os estragos são menores do que os sofridos em mesmo período tempo pelo governo anterior, o facto deve-se a que não tem estado sujeito às intrigas do PR Marcelo, aos ataques cerrados da oposição ou dos media mainstream. Contudo, mais episódios de demolição se seguirão.

Enquanto o governo procura segurança e estabilidade, rebenta o caso do deputado da extrema-direita que terá andado a gamar umas malas de viagem nos aeroportos, e que a imprensa diz já ter sido do PS. De certeza que ficará para a história da criminalidade dos pilha-galinhas, eventualmente da psiquiatria, apesar dos distúrbios de personalidade não terem tratamento, e dos anais do parlamentarismo saído do 25 de Abril. Depois de conhecidas as proezas e ter saído do partido pelo próprio pé, segundo as suas palavras, a figura passou a deputado “não inscrito” vendo duplicar assim os seus proventos mensais para mais de 10 mil euros. Chamem-lhe doido! Muito dificilmente irá renunciar ao mandato, com ou sem baixa psiquiátrica. A Assembleia da República revela à evidência a natureza que sempre foi a sua desde o início, ou seja, desde a entrada em vigor da Constituição da República, 1976, um centro de nepotismo, vacuidades e corrupção. Uma casa mal frequentada.

Poderá dizer-se que será um caso raro e insólito, mas deveremos recordar que, só nestes nove meses de legislatura, já foram constituídos arguidos nove parlamentares do PS, PSD, Chega e IL, uns por corrupção, outros por zangas partidárias, o que significa disputas pelo tacho. Convêm referir que são onze os deputados do partido de extrema direita - legalizado pelo Tribunal Constitucional em aparente contradição conhecendo-se o texto da dita Lei Fundamental do República - que tiveram ou ainda têm problemas com a Justiça. Este partido e o seu chefe chegaram ao ponto de se arvorarem em agentes denunciantes, vulgo “bufos”, para alijarem o fardo incómodo de terem incluído nas fileiras um vulgar gatuno que lhes poderá fazer perder muitos votos nas próximas eleições. É que esta quase certa quebra de votos será uma condição sine qua non para que o PSD possa alcançar a tão desejada maioria absoluta.

O líder actual do PS, apresentado pelos media do regime como homem à esquerda e um radical, com o intuito de o afastar da classe média que decide eleições, resolveu, não conseguindo esconder o que lhe vai na alma e na mente, abraçar-se ao ideário ultra-liberal do montenegrino PSD. Começou pela viabilização do Orçamento de Estado de 2025, passou pela aprovação da Lei dos Solos, preparou o terreno e instrumentos para a privatização da TAP e da “reforma” da Segurança Social, recentemente anunciada pela ministra e esposa de banqueiro, a pretexto de assegurar a sua sustentabilidade, e acabando na reposição do partido quanto à questão da imigração. Mas haverá mais. Ao cabo e ao resto, assistimos à continuação do bloco central de interesses. Ambos os partidos da governação não diferem muito da extrema-direita, nacionalista e xenófoba, agora nem no discurso, todos almejam o apoio eleitoral da pretensa e medrosa classe média – estamos em ano eleitoral autárquico.

Mal o Nuninho Santos fechou a boca, as reacções dentro do partido de imediato choveram, umas de apoio e outras de aparente repúdio. Parece que estas questões não são discutidas amplamente a nível entre dirigentes e militantes, mas decididas por um restrito núcleo de caciques com o único objectivo de reconquistar o poder governativo. Este partido que, segundo dizem, surgiu no quadro da luta contra o fascismo, está rapidamente a apodrecer e por este caminho irá desaparecer ou fundir-se com o PSD, porque não será governo na década mais próxima. E com o agravamento da situação económica do país e/ou de uma possível guerra na Europa, cenário que não é de todo impossível nem disparatado, o PS, o partido do “socialismo democrático” desaparecerá de vez. E talvez seja uma coisa boa, clarificará os campos.

Ainda sobre a solidez do governo AD e da sua durabilidade intrínseca, se perdurar será graças aos apoios externos, a demissão do director executivo da SNS por razões de falta de ética pessoal, acumulando as funções oficiais com os biscates no SNS, diz bem das linhas ou das agulhas com que se cose o governo. Este órgão de direcção do SNS visa essencialmente, embora o disfarça, a privatização da Saúde através da diluição do SNS em "Sistema" de Saúde onde os interesses dos lóbis privados do sector serão reis e senhores. Relembrar que este organismo é muito semelhante ao que foi criado no Reino Unido para liquidar o Serviço Público de Saúde. Esta privatização, tal como todas as anteriores, está a ser feita em meio da maior das corrupções e dos assaltos aos dinheiros públicos. No momento, estamos a assistir a toda a sorte de discussões, debates e opiniões, vazadas em todos os órgãos de comunicação social mainstream e a toda a hora, sobre qual a melhor forma de privatizar a saúde de molde a satisfazer os apetites de todos os parasitas interessados, desde seguros de saúde e clínicas privadas a instituições sociais e grupos de médicos empresários (como a directora da urgência do Hospital de Portimão que está de baixa há sete meses mas trabalha no privado) e outros afins; a fila é imensa.

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Voltando ao parlamento português, este já se orgulha de um assaz rico curriculum, algumas dezenas de deputados perderam a imunidade parlamentar para poderem responder à justiça nos últimos anos. Entre 2016 e 2019, foram 23 deputados, todos do PS e do PSD; quase o dobro em relação ao governo de Coelho/Portas, quando 13 deputados estiveram às contas com os tribunais; o mesmo número do tempo do governo PS/Sócrates; conclui-se que o número tem vindo a acelerar ultimamente. Acontece um pouco à semelhança do que se passa no Parlamento Europeu, considerado um dos mais corruptos do mundo. Quase um quarto dos eurodeputados, que serviram durante a legislatura anterior (2019-2024), estiveram envolvidos em alguns negócios obscuros; isto é, dos cerca de 700 deputados, 163 estão envolvidos em 253 casos de ilegalidades ou crimes, incluindo o célebre Qatargate - segundo a plataforma independente de jornalismo de investigação “Follow the Money”. A corrupção medra e constitui o selo neste ocidental atlântico.

A corrupção, o compadrio, o nepotismo sem disfarce, a fraude são mais do que tiques da sociedade burguesa, são-lhe intrínsecos. Fazem parte do ADN do capitalismo, sem esses elementos este não poderia funcionar e prosperar. Contudo, andam por aí uns partidos e políticos, tipicamente pequeno-burgueses, que sonham o impossível de um capitalismo fofinho, com justiça para os trabalhadores, que, por sua vez, deveriam ficar agradecidos pela doçura da sua exploração, mas que, quando se distraem dá-lhes para enfiar a pata na poça. É o que aconteceu com o BE, dito "Bloco de Esquerda", que, não conseguindo dissimular a sua natureza de aprendiz de patrão, despediu funcionários, um deles já antigo no partido, e outros recém-mães, que se viram na rua a pretexto de diminuição das receitas devido à perda de deputados (embora, nessa altura, tivesse cerca de 700 mil euros nas contas bancárias), muito à semelhança de qualquer e vulgar empresa capitalista e contrariando completamente o seu discurso social-democrata. Como se costuma dizer, vale mais um acto do que mil palavras. O BE não deixa de ser também um espelho desta democracia parlamentar burguesa em avançado estado de decomposição. Em próximas eleições legislativas, esta organização, sem ideologia nem referências de classe, arrisca-se a ser uma mera recordação.

Não nos cansamos de salientar que a situação política do país resulta directamente das condições da sua economia, que, também relembramos, é uma economia periférica, frágil, subjugada por uma moeda forte, o euro, que impede o crescimento das exportações, bem como da economia considerada no seu todo. Uma economia aberta, sem indústria pesada, assente maioritariamente no consumo de produtos de importação, com o turismo à cabeça, e na especulação imobiliária. E cujos principais parceiros para compra e venda são os países da União Europeia, mais de 70%. Quando as principais potências económicas da União espirram, o país apanha bronco-pneumonia grave. O desemprego aumentou 5,7% em Dezembro, para 335 mil pessoas; em 2024, os despedimentos colectivos aumentaram 15,3% em relação ao ano anterior, foram 497 despedimentos, isto é, o valor mais elevado desde 2020, segundo dados da Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT); os beneficiários do CSI aumentaram 51% (70 mil) ao longo de 2024.

Ora, onde há fome e exploração há revolta e para a elite será melhor prevenir do que remediar. Daí que, e ao pretexto de se combater a criminalidade resultante do aumento da imigração, se reivindique por alguns dos políticos do regime um reforço do aparelho policial e repressivo. Mais polícias porque estes são poucos!, apesar do rácio de polícias por 100 mil habitantes ser de 450, ou seja, mais 50% acima da média europeia, que é de 300 polícias, e existindo já uma força militar (GNR) a fazer a função de policiamento. O governo AD está receptivo à ideia e limita-se a dar continuidade às políticas do PS neste campo. As instituições veneráveis do estado são assustadiças, como bem ficou comprovado com os envelopes que continham um pó branco enviados à Presidência da República, ao Parlamento e a dois ministérios, da Administração Interna e das Infra-estruturas, e que pôs os nossos corajosos políticos em pânico, tendo mobilizado PSP e GNR. No afinal, veio-se a apurar que o pó não passava de pudim instantâneo. Estariam os políticos da ordem com falta de sobremesa.

Outra dimensão da nossa democracia está no complexo judicial, que não sofreu alteração de remonta desde o 25 de Abril. Relembremos que os juízes do Tribunal Plenário do fascismo – tribunal controlado directamente pela PIDE e responsável pela condenação de muitos cidadãos anti-fascistas, puderam gozar os seus últimos dias abonados por principescas pensões. E como já referimos, por vezes vale mais um acto do que mil palavras: «O Supremo Tribunal libertou um dos traficantes de droga mais procurados de Espanha, o homem estava detido em Portugal e prestes a ser extraditado, mas a detenção foi considerada ilegal porque a Justiça não conseguiu cumprir prazos e agora pode estar fora do país» (da imprensa). Terá sido um oportuníssimo “erro burocrático”! Portugal passou a paraíso para os grandes criminosos, porque já não é o primeiro caso deste género. 

É a democracia que temos, onde a justiça possui uma rede de malha larga que deixa escapar os grandes patifes, mas de malha estreita para os pilha-galinhas ou trabalhadores, imigrantes ou não, que não aceitem as regras do establishment. A democracia liberal burguesa é uma democracia de classe, não é para todos os cidadãos, e o governo limita-se a gerir os negócios da elite enquanto ilude o eleitorado.

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