terça-feira, 19 de novembro de 2024

Esquecimento organizado

 

Por Chris Hedges

NOVA IORQUE: Estou no Centro de Informação de Krikor e Clara Zohrab, junto à Catedral Arménia de St. Vartan, em Manhattan. Tenho nas mãos um livro de memórias escrito à mão, encadernado, que inclui poesia, desenhos e imagens de álbuns de recortes, de Zaven Seraidarian, um sobrevivente do genocídio arménio. A capa do livro, um dos seis volumes, diz “Bloody Journal”. Os outros volumes têm títulos como “Drops of Springtime”, “Tears” e “The Wooden Spoon”.

“O meu nome permanecerá imortal na terra”, escreve o autor. “Vou falar sobre mim e contar-vos mais.”

O centro  alberga  centenas de documentos, cartas, mapas desenhados à mão de aldeias que desapareceram, fotografias sépia, poemas, desenhos e histórias – muitas das quais não traduzidas – sobre os costumes, tradições e famílias notáveis ​​das comunidades arménias perdidas.

Jesse Arlen, o diretor do centro, olha desamparado para o volume que tenho na mão.

“Provavelmente ninguém leu, olhou ou sabia que estava aqui”, diz.

Abre uma caixa e entrega-me um  mapa desenhado à mão  por Hareton Saksoorian da aldeia de Havav em Palu, onde os arménios em 1915 foram massacrados ou expulsos. Saksoorian desenhou o mapa de memória depois de escapar. Os desenhos das casas arménias têm nomes minúsculos pintados com nomes de pessoas mortas há muito tempo. 

Este será o destino dos palestinianos em Gaza. Também irão em breve lutar para preservar a memória, para desafiar um mundo indiferente que assistiu enquanto eram massacrados. Procurarão também obstinadamente preservar restos da sua existência. Escreverão também memórias, histórias e poemas, desenharão mapas de aldeias, campos de refugiados e cidades que foram destruídas, contarão histórias dolorosas de carnificina, carnificina e perda. Também nomearão e condenarão os seus assassinos, lamentarão o extermínio de famílias, incluindo milhares de crianças, e lutarão para preservar um mundo desaparecido. Mas o tempo é um mestre cruel.

A vida intelectual e emocional daqueles que são expulsos da sua terra natal é definida pelo cadinho do exílio, o que o estudioso palestiniano Edward Said me disse ser “a ruptura incurável forçada entre um ser humano e um local de origem”. O livro “Out of Place” de Said é um registo desse mundo perdido.

O poeta arménio  Armen Anush  foi criado num orfanato em Alepo, na Síria. Capta a sentença de prisão perpétua daqueles que sobrevivem ao genocídio no seu poema “Sacred Obsession”.

Ele escreve:

      País da luz, visitas-me todas as noites enquanto durmo.

      Todas as noites, exaltada, como uma venerável deusa,

      Trazes novas sensações e esperanças à minha alma exilada.

      Todas as noites alivias as oscilações do meu caminho.

      Todas as noites revelas os desertos sem limites,

      Os olhos abertos dos mortos, o choro das crianças ao longe,

      O crepitar e a chama vermelha dos inúmeros corpos queimados,

      E a caravana desabrigada, sempre insegura, sempre vacilante.

      Todas as noites a mesma cena infernal e mortal –

      O cansado Eufrates lavando o sangue dos cadáveres selvagens,

      As ondas divertindo-se com os raios de sol,

      E aliviar o fardo desse peso inútil e cansativo.

      Os mesmos poços húmidos e negros de corpos carbonizados,

      O mesmo fumo espesso envolvendo todo o deserto sírio.

      As mesmas vozes das profundezas, os mesmos gemidos, suaves e sem sol,

      E a mesma barbárie brutal e implacável da máfia turca.

O poema termina, no entanto, com um apelo não para que estes terrores nocturnos acabem, mas para que “venham ter comigo todas as noites”, para que “a chama dos seus heróis” “acompanhe sempre os meus dias”. 

“A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”, recorda-nos Milan Kundera.

É melhor suportar um trauma incapacitante do que esquecer. Quando esquecemos, quando as memórias são expurgadas – o objectivo de todos os assassinos genocidas – somos escravizados a mentiras e mitos, separados das nossas identidades individuais, culturais e nacionais. Já não sabemos quem somos.

“É preciso tão pouco, tão infinitamente pouco, para uma pessoa atravessar a fronteira para além da qual tudo perde o sentido: o amor, as convicções, a fé, a história”, escreve Kundera em “O Livro do Riso e do Esquecimento”. “A vida humana — e aqui reside o seu segredo — realiza-se na proximidade imediata dessa fronteira, mesmo em contacto direto com ela; não está a quilómetros de distância, mas a uma fração de polegada.”

Aqueles que atravessaram essa fronteira regressam a nós como profetas, profetas que ninguém quer ouvir.

Os antigos gregos acreditavam que, enquanto as almas dos defuntos eram transportadas para o Hades, eram obrigados a beber a água do rio Lete para apagar a memória. A destruição da memória é a obliteração final do ser, o último ato de mortalidade. A memória é a luta para deter a mão do barqueiro.

O genocídio em Gaza reflecte a aniquilação física dos cristãos arménios pelo Império Otomano. Os turcos otomanos, que temiam uma revolta nacionalista como a que convulsionou os Balcãs, expulsaram quase todos os dois milhões de arménios da Turquia. Homens e mulheres eram geralmente separados. Os homens eram muitas vezes imediatamente assassinados ou enviados para campos de extermínio, como os de Ras-Ul-Ain – em 1916, mais de 80 mil arménios foram ali massacrados – e de Deir-el-Zor, no deserto sírio. Pelo menos um milhão foram forçados a marchas da morte – não muito diferentes dos palestinianos em Gaza que foram deslocados à força por Israel, até uma dúzia de vezes – nos desertos onde hoje são a Síria e o Iraque. Aí, centenas de milhares de pessoas foram massacradas ou morreram de fome, exposição e doença. Cadáveres cobriam a extensão do deserto. Em 1923, cerca de 1,2 milhões de arménios estavam mortos. Os orfanatos de todo o Médio Oriente foram inundados com cerca de 200 mil crianças arménias indigentes.

A resistência condenada de várias aldeias arménias nas montanhas ao longo da costa da actual Turquia e Síria que optaram por não obedecer à ordem de deportação foi captada no romance de Franz Werfel “Os Quarenta Dias de Musa Dagh”.  Marcel Reich-Ranicki, um crítico literário polaco-alemão que sobreviveu ao Holocausto, disse que o livro foi amplamente lido no gueto de Varsóvia, que organizou uma revolta condenada em Abril de 1943.

Em 2000, quando tinha 98 anos,  entrevistei  o escritor e cantor  Hagop H. Asadourian, um dos últimos sobreviventes do genocídio arménio. Nasceu na aldeia de Chomaklou, no leste da Turquia, e foi deportado, juntamente com o resto da sua aldeia, em 1915. A sua mãe e quatro das suas irmãs morreram de tifo no deserto da Síria. Passariam 39 anos até que se reunisse com a sua única irmã sobrevivente, de quem foi separado uma noite perto do Mar Morto, enquanto fugiam com um bando de órfãos arménios da Síria para Jerusalém.

Disse-me que escreveu para dar voz às 331 pessoas com quem se arrastou para a Síria em Setembro de 1915, das quais apenas 29 sobreviveram.

“Nunca se pode realmente escrever o que aconteceu”, disse Asadourian. “É muito macabro. Ainda luto comigo mesmo para me lembrar de como foi. Escreve porque precisa. Tudo brota dentro de si. É como um buraco que se enche constantemente de água e nenhuma quantidade de água o esvaziará. É por isso que continuo.”

Parou para se recompor antes de continuar.

“Quando chegou a altura de enterrar a minha mãe, tive de pedir a dois outros rapazes para me ajudarem a carregar o corpo dela até um poço onde estavam a despejar os cadáveres”, disse. “Fizemos isto para que os chacais não os comessem. O fedor era terrível. Havia enxames de moscas negras a zumbir na abertura. Empurrámo-la primeiro com os pés, e os outros rapazes, para escapar ao cheiro, desceram a colina a correr. Eu fiquei. Eu tive de assistir. Vi a cabeça dela, ao cair, bater de um lado do poço e depois do outro antes de desaparecer. Na altura, não senti absolutamente nada.”

Parou, visivelmente abalado.

“Que raio de filho é este?” – perguntou com voz rouca.

Finalmente encontrou o caminho para um orfanato em Jerusalém.

“Estas coisas penetram em si, não apenas uma vez, mas ao longo da vida, ao longo da vida, ao longo de todos os dias”,  disse  a um entrevistador da USC Shoah Foundation. “Tenho 98 anos. E hoje, até hoje, não me posso esquecer de nada disto. Esqueci-me do que vi ontem talvez, mas não podia esquecer estas coisas. E, no entanto, temos de implorar às nações que reconheçam o genocídio. Perdi 11 membros da minha família e tenho de implorar às pessoas que acreditem em mim. Isso é o que mais te magoa. É um mundo terrível, uma experiência terrível.”

Os seus 14 livros foram uma luta contra o apagamento, mas quando falei com ele admitiu que o trabalho do exército turco estava agora quase completo. O seu último livro foi “The Smoldering Generation”, que disse ser “sobre a perda inevitável da nossa cultura”. 

O presente é algo em que os mortos não têm qualquer participação.

“Ninguém toma o lugar daqueles que já partiram”, disse, sentado em frente a uma janela panorâmica que dava para o seu jardim em Tenafly, Nova Jérsia. “Os seus filhos não o compreendem neste país. Não pode culpá-los.

O mundo dos arménios no leste da Turquia, mencionado pela primeira vez pelos gregos e persas em 6 a.C., tal como Gaza, cuja história abrange 4.000 anos, praticamente desapareceu. As contribuições da cultura arménia são esquecidas. Foram os monges arménios, por exemplo, que resgataram do esquecimento obras de escritores gregos antigos, como Fílon e Eusébio. 

Tropecei nas ruínas de aldeias arménias quando trabalhava como repórter no sudeste da Turquia. Tal como as aldeias palestinianas destruídas por Israel, estas aldeias não apareciam nos mapas. Aqueles que cometem genocídio procuram a aniquilação total. Nada deve permanecer. Especialmente a memória. 

Esta será a nossa próxima batalha. Não nos devemos esquecer.

Imagem: “Não nos esqueça” - por Mr. Fish

Fonte

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Direito à Saúde: A validade da análise crítica das desigualdades de Marx

 

Stéphane Barbas*

O formidável filme de Raoul Peck, O Jovem Marx, reaviva o interesse pelo pensamento de Marx e convida à sua (re)leitura.

Desde a crise de 2008, com os perigos que tem causado ao planeta, que o capitalismo já não é visto como o fim da História. Este interesse pelo marxismo estende-se também a áreas como a medicina e a saúde, mesmo entre aqueles que estão longe dos círculos militantes. A revista The Lancet, antiga e prestigiada revista médica britânica, publicou numa edição recente uma contribuição do seu editor-chefe, Richard Horton, sob o título "Medicine and Marx" (vol. 390, 4 de novembro de 2017).

O autor sublinha que, apesar do descrédito provocado pela queda da União Soviética, o pensamento de Marx é irrefutavelmente atual. O aniversário do nascimento de Marx, que será comemorado a 5 de maio de 2018, será um momento propício para reavaliar os seus contributos. As ideias marxistas estão mais uma vez a permear o debate político, particularmente sobre os problemas de saúde, aos quais o capitalismo e os mercados são incapazes de responder.

A privatização, o poder das elites médicas, a crença eufórica no progresso técnico, o capitalismo filantrópico, as tendências neo-imperialistas da política de saúde global, as doenças inventadas pelos laboratórios ou a exclusão e estigmatização de populações inteiras são alguns dos problemas para os quais o marxismo pode contribuir uma análise crítica.

O marxismo é também um apelo à luta por valores como a igualdade social, o fim da exploração e a luta contra a saúde considerada mais uma mercadoria. O agravamento das desigualdades à escala global confere ao debate sobre os pontos acima referidos a sua verdadeira relevância. Como demonstra o epidemiologista inglês Richard Wilkinson, não é de todo necessário ser marxista para avaliar o que a medicina ainda pode aprender com Marx.

Recorde-se ainda que as preocupações com a saúde pública são contemporâneas do nascimento do marxismo com o livro de Engels, A Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra, (1845). Marx referir-se-á frequentemente a este livro do seu amigo.

No Livro I de O Capital, particularmente no capítulo sobre a jornada de trabalho, Marx denuncia veementemente as consequências da violência da exploração sobre a saúde dos trabalhadores. O problema do trabalho infantil é o exemplo mais significativo desta violência. Há em Marx um interesse real tanto nos problemas de saúde como na protecção das crianças. O filósofo alemão cita numerosos testemunhos de médicos que denunciam nos seus relatórios o estado de saúde dos trabalhadores e a exploração das crianças. Segundo o médico inglês Arledge, por exemplo, os oleiros têm “uma altura atrofiada, são anémicos, estão sujeitos a dispepsia, problemas hepáticos e renais e reumatismo”. Haveria mesmo asma e tuberculose (tuberculose) típicas dos oleiros.

Crianças de 5 ou 6 anos trabalham frequentemente em fábricas de fósforos químicos numa atmosfera saturada de fósforo. É o inferno de Dante, diz Marx. O médico-chefe do hospital de Worcester escreve que “ao contrário das afirmações egoístas de alguns empregadores, declaro e certifico que a saúde das crianças sofre muito com estas condições”. Isto não impede aqueles a quem Marx chama ironicamente “amigos do comércio” de justificar o trabalho infantil, invocando muitas vezes a moralidade e a educação.

Marx sublinha o seguinte: “O capital usurpa o tempo necessário para o crescimento, o desenvolvimento, bem como o necessário para manter o corpo em boa saúde… Rouba o tempo que deveria ser utilizado para respirar ar puro e desfrutar da luz solar.”

“A antropologia capitalista (acrescentou Marx) decreta que a infância deve durar até aos dez anos, no máximo onze.” Hoje, no século XXI, a “antropologia capitalista” decreta a idade em que nos podemos reformar.

Marx gostava de dar ao capital a imagem de um vampiro. “O capital é trabalho morto que, tal como um vampiro, só ganha vida sugando o trabalho vivo.”

A saúde é o sangue da força de trabalho com que o capital é alimentado. Mas se a saúde dos trabalhadores é a fonte da riqueza, o capitalista não tem de cuidar dela, de cuidar dela. Tem “o exército industrial de reserva” que fornecerá sempre mão-de-obra graças, ontem, à sobrepopulação de trabalhadores, ao desemprego, hoje. O direito à saúde foi sempre uma conquista da classe trabalhadora contra o capital.

É necessário, hoje mais do que nunca, lembrar que os sistemas de Segurança Social são financiados com aquela parte dos salários extraída do capital para garantir a saúde dos trabalhadores a longo prazo e não apenas a saúde que é imediatamente útil para a produção. Não deve, por isso, surpreender ninguém que esta parte diferida do salário que permite “respirar o ar puro e desfrutar do sol” seja rebatizada de “fardo social” e vergonhosamente acusada de aumentar “o custo do trabalho”, de provocar a histeria “dos amigos do comércio.” Para estes últimos, os seus benefícios serão sempre muito mais valiosos do que a saúde dos homens e das mulheres.

A riqueza inerente à força de trabalho não é explicada através da fisiologia ou de algum misterioso princípio vital guardado secretamente pela medicina, mas através das relações sociais.

A medicina, por sua vez, permitirá que o homem social seja muito mais tido em conta naquilo que determina a saúde. 

*Psiquiatra infantil.

Fonte

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

A Democracia e o Estado

 

Friedrich Engels

A democracia dos EUA vista por Engels em 1891 e perfeitamente actual: "A nação é impotente contra estes dois grandes cartéis de políticos pretensamente ao seu serviço, mas que na realidade a dominam e saqueiam"

A Comuna teve mesmo de reconhecer, desde logo, que a classe operária, uma vez chegada à dominação, não podia continuar a administrar com a velha máquina de Estado; que esta classe operária, para não perder de novo a sua própria dominação, acabada de conquistar, tinha, por um lado, de eliminar a velha maquinaria de opressão até aí utilizada contra si própria, mas, por outro lado, de precaver-se contra os seus próprios deputados e funcionários, ao declarar estes, sem qualquer excepção, revogáveis a todo o momento.

Em que consistia a qualidade característica do Estado, até então? A sociedade tinha criado originalmente os seus órgãos próprios, por simples divisão de trabalho, para cuidar dos seus interesses comuns. Mas estes órgãos, cuja cúpula é o poder de Estado, tinham-se transformado com o tempo, ao serviço dos seus próprios interesses particulares, de servidores da sociedade em senhores dela. Como se pode ver, por exemplo, não meramente na monarquia hereditária, mas igualmente na república democrática. Em parte alguma os «políticos» formam um destacamento da nação mais separado e mais poderoso do que precisamente na América do Norte.

Ali, cada um dos dois grandes partidos aos quais cabe alternadamente a dominação é ele próprio governado por pessoas que fazem da política um negócio, que especulam com lugares nas assembleias legislativas da União e de cada um dos Estados, ou que vivem da agitação para o seu partido e são, após a vitória deste, recompensados com cargos. É sabido que os americanos procuram, desde há trinta anos, sacudir este jugo tornado insuportável e que, apesar de tudo, se atascam sempre mais fundo nesse pântano da corrupção.

É precisamente na América que podemos ver melhor como se processa esta autonomização do poder de Estado face à sociedade, quando originalmente estava destinado a ser mero instrumento desta. Não existe ali uma dinastia, uma nobreza, um exército permanente — exceptuados os poucos homens para a vigilância dos índios — nem burocracia com emprego fixo ou direito à reforma. E, não obstante, temos ali dois grandes bandos de especuladores políticos que, revezando-se, tomam conta do poder de Estado e o exploram com os meios mais corruptos para os fins mais corruptos — e a nação é impotente contra estes dois grandes cartéis de políticos pretensamente ao seu serviço, mas que na realidade a dominam e saqueiam.

Contra esta transformação, inevitável em todos os Estados até agora existentes, do Estado e dos órgãos do Estado, de servidores da sociedade em senhores da sociedade, aplicou a Comuna dois meios infalíveis. Em primeiro lugar, ocupou todos os cargos administrativos, judiciais, docentes, por meio de eleição por sufrágio universal dos interessados, e mais, com revogação a todo o momento por estes mesmos interessados. E, em segundo lugar, ela pagou por todos os serviços, grandes e pequenos, apenas o salário que outros operários recebiam. O ordenado mais elevado que ela pagava era de 6000 francos. Assim se fechou a porta, eficazmente, à caça aos cargos e à ganância da promoção, mesmo sem os mandatos imperativos que, além do mais, no caso dos delegados para corpos representativos ainda foram acrescentados.

Esta destruição do poder de Estado até aqui existente e a sua substituição por um novo, na verdade democrático, está descrita em pormenor no terceiro capítulo da Guerra Civil. Mas era necessário entrar resumidamente aqui, mais uma vez, nalguns traços daquele porque, precisamente na Alemanha, a superstição do Estado transpôs-se da filosofia para a consciência geral da burguesia e mesmo de muitos operários.

Segundo a representação filosófica, o Estado é a «realização da Ideia», ou o reino de Deus na terra traduzido para o filosófico, domínio onde se realizam ou devem realizar-se a verdade e a justiça eternas. E daí resulta, pois, uma veneração supersticiosa do Estado e de tudo o que com o Estado se relaciona, a qual aparece tanto mais facilmente quanto se está habituado, desde criança, a imaginar que os assuntos e interesses comuns a toda a sociedade não poderiam ser tratados de outra maneira do que como têm sido até aqui, ou seja, pelo Estado e pelas suas autoridades bem providas. E crê-se ter já dado um passo imensamente audaz quando alguém se liberta da crença na monarquia hereditária e jura pela república democrática.

Mas, na realidade, o Estado não é outra coisa senão uma máquina para a opressão de uma classe por uma outra e, de facto, na república democrática não menos do que na monarquia; no melhor dos casos, um mal que é legado ao proletariado vitorioso na luta pela dominação de classe e cujos piores aspectos ele não poderá deixar de cortar imediatamente o mais possível, tal como no caso da Comuna, até que uma geração crescida em novas, livres condições sociais, se torne capaz de se desfazer de todo o lixo do Estado.

(Introdução de Friedrich Engels à Edição de 1891 de “A Guerra Civil em França”, Karl Marx)

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Os "Tumultos" e a "Musculação" do Regime

  

A discussão e aprovação do Orçamento de Estado para 2025 foram quase esquecidas com os acontecimentos de há uma semana, a morte de um trabalhador imigrante, de nacionalidade cabo-verdiana, às mãos de uma patrulha policial que entendeu resolver o conflito a tiro mortal de pistola glock; e foi toda uma semana com os media mainstream e respectivos paineleiros e comentadores a soldo a perorar sobre os eventuais contornos e causas, próximas e últimas, do acontecimento. A tónica centrou-se na criminalização dos tumultos, que sucederam à morte do trabalhador pobre e negro, nas virtualidades de um corpo policial ao serviço das elites e, cereja sobre o bolo, e nas afirmações dos chefes do partido de extrema direita nacional no sentido de que questões deste género devem ser resolvidas, antes, durante a pós de ocorrerem, a tiro. A pobreza, os baixos salários, a falta de habitação e de transportes de qualidade, a marginalização e estigmatização de amplas franjas da população, a falência de empresas e o correspondente desemprego crescentes foram, e continuam a ser, temas para depois. Muito possivelmente para futura e próxima campanha eleitoral, coisa para a qual os partidos do governo apostam cada vez mais.

A paz social e o endurecimento do músculo policial 

Parece que a elite e os seus funcionários e representantes entraram em pânico com os autocarros e os contentores do lixo a arderem em bairros periféricos,  dos quais os políticos e os responsáveis camarários se lembram somente em tempos de campanha de mentiras eleitorais para caçar o precioso voto, mas ocorrências que já são coisas corriqueiras em países de capitalismo mais desenvolvido e habituado às consequências que ele próprio produz em termos de empobrecimento dos trabalhadores e de conflitualidade social.

Montenegro foi obrigado a afirmar que: "não somos país onde o ódio e questões raciais" sejam "preocupação". Se afirma isto, é porque a realidade é o seu contrário. Após de pouco mais de meio ano de promessas e de distribuição de bodo aos pobres, contando com possíveis eleições legislativas a breve trecho, lá houve o azar de dois agentes da PSP, ao que parece, ainda maçaricos, terem estragado a farsa da paz social. O PSD, diga-se de passagem, nunca soube lidar com este tipo de questões, sempre foi o partido que agarra logo no cacete para resolver a contenda com os trabalhadores e o povo, ao contrário do PS, este mais habilitado a usar o ardil e a cenoura. 

Não é despiciendo relembrar os dois ex-ministros da Administração Interna do PSD, Ângelo Correia e Miguel Macedo, agora comentadores televisivos encartados, o primeiro responsável político pela morte dos trabalhadores Pedro Vieira e Mário Emílio Gonçalves (1º de Maio de 1982), o outro pela repressão violenta sobre os manifestantes durante a Greve Geral Nacional de 14 de Novembro de 2012. Se o PSD conseguir a maioria absoluta nas próximas eleições legislativas, antecipadas ou não, depressa abandonará o discurso da moderação.

Este “incidente” policial vai servir, por outro lado, de pretexto para a criminalização de qualquer contestação social, independentemente da justeza ou não das causas do seu eclodir. E fica-se, atendendo à crueza e objectividade dos factos, com a sensação de que é própria elite (o governo não passa de um instrumento) está interessada neste processo de estigmatização e de repressão policial. Não se percebe, aparentemente, porque razão a câmara de Lisboa permitiu uma segunda manifestação, convocada pela extrema-direita, para o mesmo dia, mesma hora e confluindo no mesmo local com a manifestação já marcada por organizações defensoras dos direitos das população pobres e racializadas, que as câmaras dirigidas pelos partidos do poder acantonaram em bairros periféricos. 

A provocação é o objectivo claro por parte de um partido, legalizado na base de assinaturas falsas e cujos estatutos ainda não estarão conforme a lei, que se assume abertamente como instrumento nas mãos da elite, do governo AD e da câmara de Lisboa, como tropa de choque contra a classe dos trabalhadores - os jagunços de serviço. O partido de extrema-direita e as polícias complementam-se, uns provocam, os outros reprimem, daí haver muitas centenas de polícias militantes do partido. Mas onde é que já vimos estas cenas? O actual regime que vigora em Portugal parece querer seguir o caminho da República de Weimar, fossilizar-se em regime autoritário, versão fascismo soft.

Como já referimos em crónica anterior, uma das intenções deste governo, bem como de alguns homens de mão que proliferam em outros órgãos do estado, é reforçar o aparelho policial. Por exemplo, Moedas reitera necessidade de reforçar a polícia em Lisboa com mais efectivos e dar mais competências à Polícia Municipal, não contabilizando o número total de agentes em Lisboa, os que passaram da PSP para a PM, e o número de 8 mil parece-lhe ser insuficiente. 

E o ministro da Presidência, após reunião com os autarcas dos bairros “incendiados” e substituindo-se à inútil ministra da Administração Interna, não se engasgou ao prometer todos os “meios de vigilância, desde presencial à cibernética, às redes para serem detetados e prevenidos todos os comportamentos errados”. 

Desta forma, os trabalhadores esperarão mais controlo e mais repressão em caso de não se portaram bem e as redes sociais, tão vituperadas pelos media mainstream que temem a concorrência, irão ser submetidas a vigilância mais apertada e para a qual Bruxelas já aprovou legislação nesse sentido e que rapidamente será replicada em cada estado membro. Agora, há que ter muito cuidado com os “comportamentos errados”, qualificação essa dada pelo próprio interessado Estado/Governo. A nova PIDE organiza-se.

O empobrecimento do povo e o discurso autoritário

Não deixa de ser interessante que as coisas ocorram em tempo de empobrecimento acelerado de grande parte da população portuguesa, e os números estão aí. “Pobres estão mais pobres em Portugal” é o título que faz as manchetes nos órgãos de informação de referência, o que levou o governo a anunciar a criação da Prestação Social Única; ou a “taxa de risco de pobreza subiu pela primeira vez em sete anos, a intensidade da pobreza também sofreu o maior aumento desde 2012. 

E mais recentemente: a «subida de insolvências e 'lay-off' são já "uma realidade", alerta presidente da AEP»; ou “as empresas despediram mais pessoas até Agosto do que em todo o ano de 2023”. A notícia de que a Volkswagen irá encerrar três fábricas e proceder a vários milhares de despedimento colocou em alerta máximo os políticos e os media do establishment na medida em que o mesmo poderá acontecer à AutoEuropa e, então, será um problema assaz difícil de ser tratado pelo governo AD. Por outro lado, a Galp teve um aumento de lucros de 24%, para 890 milhões de euros até o mês de Setembro.

Todos os indícios apontam para que o desemprego, a contínua degradação dos salários reais (poder de compra) e a miséria em geral corram em paralelo no ano que vem com o endurecimento do discurso político dos responsáveis políticos e o intensificar da repressão policial. Agora foi um cidadão negro e estrangeiro que foi baleado, amanhã poderá muito provavelmente ser um operário, ou um funcionário público ou outro trabalhador dos serviços, a ser baleado porque teve um comportamento “errado”.

Contudo, já se assiste a uma arrogância mal disfarçada por parte de alguns membros do governo, possível sinal de mistura de arrogância, frustrações pessoais mal resolvidas e autoritarismo. O ministro dos Negócios Estrangeiros resolveu puxar dos galões de "ministro de estado" para se arrogar a posição de privilégio no aeroporto militar de Figo Maduro quando esperava pelos repatriados do Líbano, desrespeitando os oficiais presentes, o chefe do Estado Maior da Força Aérea e o comandante da base, recusando o cumprimento e vociferando: "camelos", "burros" "isto com os militares é sempre a mesma merda". 

Os militares até foram bem educados e com certeza não deixarão cair os insultos em saco roto, conhecendo os militares como realmente são. Se o recruta político fosse militar levaria uma pena de entre 3 meses a 2 anos de prisão, segundo o Código de Justiça Militar. O chefete do governo veio a público tentar explicar, não dando qualquer esclarecimento sobre o ocorrido, só depois de passados dezoito dias e porque o assunto foi tema nas redes sociais. É por estas e por outras semelhantes que os media detestam as redes sociais, porque ainda não totalmente controladas.

O Orçamento de Estado será aprovado pelo Bloco Central

Ao mesmo tempo que os instrumentos policiais são reforçados, o governo pretende fidelizar ainda mais os principais órgãos de propaganda, dita informação, com o, já apresentado, “Plano de Ação para os Media”, que inclui 30 medidas para “estimular a Comunicação Social” e o fim da publicidade na estação pública RTP, o que não apenas "significa perda de relevância da RTP" mas a sua liquidação, o que já indignou os próprios trabalhadores e o Sindicato dos Jornalistas, já que prevê redução substancial dos seus funcionários. Verbas estas que já estão asseguradas no OE-2025 e cuja viabilização é certa pela abstenção do PS, antecipadamente aprovada por unanimidade pela Comissão Política daquele partido. 

O bloco central dos interesses e dos negócios está a funcionar em pleno, mas não haveria problema se, por qualquer razão, deixasse de funcionar, o Orçamento seria aprovado na mesma já que o partido da extrema-direita se disponibilizara a fazê-lo, apesar do engulho para o mantra de “não é não” de Montenegro. Mas os “superiores interesses da nação”, leia-se da elite nacional e Bruxelas, estão acima de tudo e de todos os cidadãos comuns deste bocado de terra à beira-mar plantado. 

Até a ICAR, ainda antes da posição do PS ser conhecida, pela voz do prior José Ornelas, declarara que quer o Orçamento porque “o país ganharia muito em ter um (mais propriamente "este") orçamento” e acredita que “alguns passos" já teriam "sido dados” para o facto consumado. E os "passos" são a ICAR receber borlas fiscais como aquela de mais de 6,5 milhões de euros em IRC na realização da Jornada Mundial da Juventude, passando a Fundação respectiva para o topo das fundações que mais benefícios receberam em 2023. Não falando do resto.

Convém esclarecer mais uma vez que este Orçamento de Estado prevê muitos milhões em benesses directas para os amigos, os clientes e os lóbis mais obscuros, que se habituaram todos os anos a locupletarem-se com os dinheiros públicos - cerca de 10% (13 mil milhões de euros) do Orçamento são o saco azul de “Despesas Excepcionais”. No entanto, o governo deixa que os grandes processos fiquem parados nos tribunais fiscais, levando à perda de mais de 12 mil milhões de euros de receitas para o estado.

Para que a divisão do saque segundo a lógica capitalista, a melhor parte para o capital e o restante para o trabalho, que sempre veio a minguar durante os governos do PS, esteja garantida com a continuação da exploração dos trabalhadores é conveniente que o cacete esteja sempre à mão de semear. E se houver eleições legislativas antecipadas com maioria absoluta para o PSD, e as recentes sondagens visam criar e reforçar essa tendência, então a receita é certa e sabida. Os tempos que se avizinham serão de intensa luta de classes.

Imagem: "Populares incendeiam autocarro no bairro do Zambujal" em Sábado

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Privatizar a saúde a todo o vapor

  

Quando se comemoraram os 40 anos do SNS o PS andou por Coimbra a plantar uma oliveira no parque da cidade, e mandou erguer uma estátua de ferro em 2D no mesmo local do considerado “pai” do Serviço Nacional de Saúde. Este ano e nos 45 anos, com o PSD e CDS-PP no governo, alguém alvitrou a criação de um hino de louvor (ou de requiem) sobre um serviço moribundo e cuja doença se acelerou particularmente nos últimos cincos anos. Quando se celebrar o cinquentenário de certeza que o moribundo estará mais que morto e enterrado.

O momento é mais que oportuno para que os profissionais que trabalham no SNS marquem uma posição e se oponham firmemente a este processo de demolição praticado pelo actual governo. Neste sentido, os médicos e os profissionais de enfermagem vão iniciar amanhã uma greve de dois dias, com os objectivos de defesa dos cuidados de saúde gerais e universais para os cidadãos portugueses e para a resolução dos seus principais problemas de classe: actualização das grelhas salariais, dignificação das carreiras, melhoria das condições de trabalho e aumento de investimento no SNS e não no financiamento do sector privado do negócio da doença.

O governo AD fez a promessa de liquidar rapidamente o SNS e as medidas propostas e algumas já aplicadas vão nesse sentido: privatização de parte dos cuidados primários e a seguir os serviços de obstetrícia e de ginecologia. Estes já integrados na teia do turismo de saúde, onde os privados projectam vir a ter dentro em breve o predomínio. Numa primeira fase, desacreditar estes serviços do SNS, levando a população utente a deixar de neles ter confiança e logo a seguir justificar as insuficiências dos mesmos e da inevitabilidade da sua substituição em parte ou no todo pelo privado.

Os médicos e os enfermeiros devem fazer o esforço de coordenarem as suas lutas e atrair outros sectores profissionais de trabalhadores, começando pelos assistentes operacionais, os mais explorados e pior remunerados. Devem denunciar as tentativas de divisão entre si e de descrédito da luta que o governo irá inevitavelmente fazer, e já está a fazê-lo, perante a opinião pública. A medida do governo de querer alterar as férias dos médicos em períodos de Natal, Fim de Ano, e mais tarde de Páscoa, para colmatar as faltas nas escalas de serviço é uma forma ignóbil de responsabilizar em bloco os médicos pelo encerramento daqueles serviços e do “caos” nas urgências em geral.

Privatização da saúde em passo acelerado

Para não ficar isolado e sabendo da situação precária dentro da Assembleia da República, o governo PSD/CDS-PP procura com os partidos da oposição, os mais à direita e com o PS, este corresponsável pelo desastre do SNS, um pretenso "amplo consenso nacional" para a putativa “reforma”, que será para liquidar o SNS como ele foi projectado há 45 anos. A farmacêutica, que chefia a comissão liquidatária, justifica o pacto pela dimensão da tarefa e do tempo que poderá levar, ultrapassando a legislatura, que se presume que será de 4 anos. Será o “Sistema” de Saúde de que tanto gosta e fala o presidente Marcelo.

Outro figurão do PSD e segunda figura do Estado, Aguiar-Branco, que já possui experiência de liquidação de empresas pública para depois as entregar a privados, caso dos Estaleiros da Lisnave que foram oferecidos de bandeja à Martifer, de amigos e correligionários do partido, faz coro: a reforma no SNS para combater "crise de confiança". Defende abertamente a entrega ao sector privado e ao sector social da Igreja Católica, como resposta, em lógica enviesada, ao crescimento dos seguros privados. Deixar o SNS no osso, ou seja, um serviço assistencialista para os pobres.

O facto de o governo AD de ter acabado de anunciar a criação de uma unidade “para monitorizar desempenho económico-financeiro do SNS” define, por si só, o seu conceito, inteiramente economicista, do que devem ser os cuidados de saúde prestados à população, baratinhos e que não ponham em causa as contas certas do Orçamento de Estado. Com certeza que não é para fiscalizar os milhões de euros que são enfiados nos bolsos das empresas privadas do sector ou nas misericórdias da Igreja. Milhares de milhões que já andarão perto dos cinquenta por cento do orçamento total para a Saúde.

A imprensa apregoa que o “número de pessoas sem médico de família aumentou um milhão em cinco anos”, nunca houve tantos cidadãos sem assistência de cuidados de saúde primário como agora, mais de um milhão e meio. Logo e de imediato, o governo AD apresenta a solução milagrosa: “Governo alarga acesso a médico de família a 75 mil utentes da Grande Lisboa”; “Misericórdia vai assegurar consultas a mais 5000 utentes sem médico de família”. A farmacêutica adianta que serão abertas 10 USF em Lisboa e Vale do Tejo, cinco em Leiria e cinco no Algarve, geridas por setores privado e social. Até chegar a toda a população carenciada, outro orçamento da saúde não chegará para satisfazer a gula dos negociantes da doença.

Não serão necessários mais estudos e nem mais especialistas virem confirmar que sai mais barato ao Estado investir nos cuidados primários públicos, ou seja, na educação para a saúde e na prevenção da doença, coisas que só o SNS público pode fazer, do que investir nos cuidados secundários, isto é, no modelo biomédico de curar a doença. No entanto, o apetite insaciável pelo lucro, por parte das empresas privadas, das misericórdias e de muitos médicos, mais empresários que clínicos, levou a que o modelo biomédico já passasse dessa fase, tratar a doença, para a fase seguinte, de não tratar a doença, mas torná-la crónica.

É evidente que se torna mais rentável não curar a doença, no entanto, com o cuidado de não matar o doente para que esta venha a ser um consumidor para o resto da vida de medicamentos, exames complementares de diagnóstico, de consultas e outros ditos “tratamentos” médicos. Todos os negociantes da doença regozijarão, o mercado é certo. De maneira semelhante, o SNS dever ser tratado, não o liquidar por completo, mantê-lo em vida assistida porque ainda será necessário. É aí que os médicos se formam e estagiam, onde traficam os doentes, e para onde os enviam ou devolvem quando as coisas correm mal no privado ou os tratamentos são demasiado dispendiosos. Veja-se a propósito o caso das “gémeas”, que beneficiaram de um tratamento de 4 milhões de euros, em que hospital privado ou da Igreja isso seria possível?

Ainda voltando ao problema da falta de médicos nas urgências e serviços de pediatria, obstetrícia e ginecologia, é notícia quase diária e muitas vezes abertura de telejornais o encerramento dos mesmos. Nunca se questiona porque há falta de médicos, estão no privado porque aí pagam melhor?! A imprensa que se encontra ao serviço dos interesses do negócio privado da doença deveria esclarecer duas coisas: a quase totalidade, haverá pequenas excepções, dos médicos que trabalham no privado não são aí empregados mas empresários por conta própria, limitam-se a alugar as instalações e os serviços; oitenta por cento dos médicos que trabalham no privado acumulam com o público.

Por que não instituir a dedicação EXCLUSIVA de médicos e enfermeiros, e outros profissionais, em vez da farsa da “dedicação plena”, aumentando os salários de forma adequada? Ficaria mais barato do que dar dinheiro às empresas privadas para fazer o que os médicos que trabalham no SNS, ou que lá deveriam trabalhar, não fazem. A sabotagem do SNS, com a criação artificial das longas listas de espera para cirurgias, consultas, exames complementares de diagnóstico, etc., já vem de há muito e muita gente dentro dos hospitais não deixa de ser conivente, desde directores de serviço a administrações hospitalares. Os governos superintendem e velam pela boa execução do processo, sempre de acordo com as directivas de Bruxelas.

O governo AD indicou para comissária da Saúde uma farmacêutica, como poderia ter nomeado qualquer outra pessoa se tivermos em conta que o cargo é meramente executivo, a política está previamente definida: privatizar, é a palavra de ordem. Se fosse para tomar decisões com conhecimento de causa, qualquer assistente operacional com experiência hospitalar seria pessoa mais capaz e competente. Com uma pessoa ligada aos negócios da big pharma, ou seja, dos grandes grupos económicos farmacêuticos que dominam o mercado da saúde, temos de reconhecer que é a pessoa mais habilitada para levar a cabo a tarefa incumbida: destruir o SNS público. Não é por acaso que o governo vai gastar 7,6 milhões de euros com vacinação contra a gripe e a covid-19 nas farmácias e o consumo de medicamentos nos hospitais continua a aumentar exponencialmente. Bem pode pregar a dirigente sindical que a pessoa nada percebe de saúde, é que nem precisa.

24 de Setembro de 2024

Imagem: "DC"

Publicado em Moves

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Obras de Extermínio. Inicialmente. “Se Israel não for parado”…

 

Israel continuará os seus assassinatos em massa para atingir os seus objectivos imediatos, mas a longo prazo o revés do seu genocídio condenará o Estado sionista.

Por Chris Hedges

O extermínio funciona. Inicialmente. Esta é a terrível lição da História. Se Israel não for travado – e nenhuma potência externa parecer disposta a travar o genocídio em Gaza ou a destruição do Líbano – alcançará os seus objectivos de despovoar e anexar o norte de Gaza e de transformar o sul de Gaza num cemitério onde os palestinianos são queimados vivos e dizimados por bombas e morrem de fome e de doenças infecciosas, até serem expulsos. Alcançará o seu objectivo de destruir o Líbano – 2.255 pessoas foram mortas e mais de um milhão de libaneses foram deslocados – numa tentativa de o transformar num Estado falhado. E poderá em breve realizar o seu sonho há muito acalentado de forçar os Estados Unidos a entrar em guerra com o Irão. Os líderes israelitas estão publicamente a salivar com as propostas para assassinar o líder iraniano, o ayatollah Ali Hosseini Khamenei, e realizar ataques aéreos contra as instalações nucleares e petrolíferas do Irão.

O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu e o seu gabinete, como os que dirigem a política para o Médio Oriente na Casa Branca - Antony Blinken, criado numa família sionista convicta, Brett McGurk, Amos Hochstein, que nasceu em Israel e serviu nas forças armadas israelitas, e Jake Sullivan – são verdadeiros crentes na doutrina de que a violência pode moldar o mundo para se adequar à sua visão demente. O facto de esta doutrina ter sido um fracasso espectacular nos territórios ocupados de Israel, e não ter funcionado no Afeganistão, no Iraque, na Síria e na Líbia, e uma geração antes no Vietname, não os desanima. Desta vez, garantem-nos, será um sucesso.   

No curto prazo têm razão. Isto não é uma boa notícia para os palestinianos nem para os libaneses. Os EUA e Israel continuarão a utilizar o seu arsenal de armas industriais para matar um grande número de pessoas e transformar cidades em escombros. Mas, a longo prazo, esta violência indiscriminada semeia dentes de dragão. Cria adversários que, por vezes, uma geração mais tarde, superam em selvajaria – chamamos-lhe terrorismo – o que foi feito aos que foram mortos na geração anterior. 

O ódio e o desejo de vingança, como aprendi ao cobrir a guerra na antiga Jugoslávia, são transmitidos como um elixir venenoso de geração em geração. As nossas intervenções desastrosas no Afeganistão, no Iraque, na Síria, na Líbia e no Iémen, juntamente com a invasão do Líbano por Israel em 1982, que criou o Hezbollah, deveriam ter-nos ensinado isto. 

Aqueles de nós que cobriam o Médio Oriente ficaram surpreendidos com o facto de a administração Bush imaginar que seria saudada como libertadora no Iraque, quando os EUA passaram mais de uma década a impor sanções que resultaram numa grave escassez de alimentos e medicamentos, causando a morte de pelo menos um homem. Denis Halliday , o Coordenador Humanitário das Nações Unidas no Iraque, demitiu-se em 1998 devido às sanções impostas pelos EUA, chamando -as de “genocidas” porque representavam “uma política deliberada para destruir o povo do Iraque”.

A ocupação da Palestina por Israel e o bombardeamento de saturação do Líbano em 1982 foram o catalisador do ataque de Osama bin Laden às Torres Gémeas na cidade de Nova Iorque em 2001, juntamente com o apoio dos EUA aos ataques contra muçulmanos na Somália, Chechénia, Caxemira e no Sul da as Filipinas, a assistência militar dos EUA a Israel e as sanções ao Iraque.

Irá a comunidade internacional continuar passivamente e permitir que Israel leve a cabo uma campanha de extermínio em massa? Haverá limites? Ou será que a guerra com o Líbano e o Irão proporcionará uma cortina de fumo – as piores campanhas de limpeza étnica e assassinatos em massa de Israel sempre foram feitas sob o disfarce da guerra – para transformar o que está a acontecer na Palestina numa versão actualizada do genocídio arménio?

Receio que, dado que o lobby de Israel comprou e pagou o Congresso e os dois partidos no poder, bem como intimidou os meios de comunicação social e as universidades, os rios de sangue continuarão a crescer. Há dinheiro a ganhar na guerra. Muito disso . E a influência da indústria de armamento, sustentada por centenas de milhões de dólares gastos em campanhas políticas pelos sionistas, será uma barreira formidável à paz, para não falar da sanidade mental. 

A não ser que, como escreve Chalmers Johnson em Nemesis: The Last Days of the American Republic,  “abolimos a CIA, restauremos a recolha de informações para o Departamento de Estado e removamos todas as funções do Pentágono, excepto as puramente militares”, “nunca mais saberemos a paz, nem com toda a probabilidade sobreviverá por muito tempo como nação.”

O genocídio é feito por atrito. Quando um grupo-alvo é privado dos seus direitos, os próximos passos são a deslocação da população, a destruição das infra-estruturas e o assassinato em massa de civis. Israel está também a atacar e a matar monitores internacionais , organizações de direitos humanos , trabalhadores humanitários e funcionários das Nações Unidas , uma característica da maioria dos genocídios. Jornalistas estrangeiros estão a ser presos e acusados ​​de “ajudar o inimigo, enquanto jornalistas palestinianos são assassinados e as suas famílias exterminadas. Israel realiza ataques contínuos em Gaza à Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras para os Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA), onde dois terços das suas instalações foram danificadas ou destruídas e 223 dos seus funcionários foram mortos. Atacou a Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL), onde as forças de manutenção da paz foram alvejadas , gaseadas com gás lacrimogéneo e feridas . Esta táctica reproduz os ataques dos sérvio-bósnios em Julho de 1995, que cobri, aos postos avançados das Forças de Protecção da ONU em Srebrenica. Os sérvios, que interromperam o fornecimento de alimentos ao enclave bósnio, resultando em desnutrição grave e fome, invadiram os postos avançados da ONU e fizeram 30 soldados da ONU reféns, antes de massacrarem mais de 8.000 homens e rapazes muçulmanos bósnios. 

Estas fases iniciais estão concluídas em Gaza. A fase final é a morte em massa, não só por balas e bombas, mas também pela fome e pelas doenças. Nenhum alimento entrou no norte de Gaza desde  o início deste mês. 

Israel tem lançado panfletos exigindo a evacuação de todos os que se encontram no norte. 400 mil palestinianos no norte de Gaza devem partir ou morrerão. Ordenou a evacuação de hospitais – Israel também tem como alvo hospitais no Líbano – destacou drones para disparar indiscriminadamente contra civis, incluindo aqueles que tentavam levar os feridos para tratamento, bombardeou escolas que servem de abrigos e transformou o campo de refugiados de Jabaliya  num fogo livre . Como sempre, Israel continua a atacar jornalistas , entre os quais Fadi Al-Wahidi, da Al Jazeera, que foi baleado no pescoço e permanece em estado crítico. Estima-se que pelo menos 175 jornalistas e trabalhadores dos meios de comunicação social tenham sido mortos pelas tropas israelitas em Gaza desde 7 de Outubro, segundo o Ministério da Saúde palestiniano.

O Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários alerta que os envios de ajuda para toda a Gaza estão no nível mais baixo dos últimos meses. “As pessoas ficaram sem meios para lidar com a situação, os sistemas alimentares entraram em colapso e o risco de fome persiste”, observa.

O cerco total imposto ao norte de Gaza será, na próxima fase, imposto ao sul de Gaza. Morte incremental. E a principal arma, tal como no Norte, será a fome. 

O Egipto e os outros Estados árabes recusaram-se a considerar a possibilidade de aceitar refugiados palestinianos. Mas Israel aposta na criação de um desastre humanitário de proporções tão catastróficas que estes países, ou outros países, cederão para poderem despovoar Gaza e voltarem a sua atenção para a limpeza étnica da Cisjordânia. Esse é o plano, embora ninguém, incluindo Israel, saiba se vai funcionar.

O Ministro das Finanças israelita, Bezalel Smotrich, queixou -se abertamente em Agosto de que a pressão internacional está a impedir que Israel deixe os palestinianos passar fome, “mesmo que isso possa ser justificado e moral, até que os nossos reféns sejam devolvidos”. 

O que está a acontecer em Gaza não é inédito. Os militares indonésios, apoiados pelos EUA, levaram a cabo uma campanha de um ano em 1965 para exterminar os acusados ​​de serem líderes comunistas, funcionários, membros do partido e simpatizantes. O banho de sangue – grande parte levado a cabo por esquadrões da morte e bandos paramilitares – dizimou o movimento sindical, juntamente com a classe intelectual e artística, os partidos da oposição, os dirigentes estudantis universitários, os jornalistas e a etnia chinesa. Um milhão de pessoas foram massacradas. Muitos dos corpos foram atirados para os rios, enterrados à pressa ou deixados a apodrecer nas bermas das estradas.

Esta campanha de assassinato em massa é hoje mitificada na Indonésia, tal como o será em Israel. É retratado como uma batalha épica contra as forças do mal, tal como Israel equipara os palestinianos aos nazis. 

Os assassinos na guerra indonésia contra o “comunismo” são aplaudidos em comícios políticos. São celebrizados por salvar o país. São entrevistados na televisão sobre as suas batalhas “heróicas”. A Juventude Pancasila, com três milhões de membros – o equivalente indonésio aos “camisas castanhas” ou à Juventude Hitleriana – em 1965, juntou-se ao caos genocida e é considerada os pilares da nação. 

O documentário de Joshua Oppenheimer, “The Act of Killing”, que demorou oito anos a ser produzido, expõe a psicologia negra de uma sociedade que se envolve em genocídio e venera os assassinos em massa. 

Somos tão depravados como os assassinos na Indonésia e em Israel. Mitologizamos o nosso genocídio dos nativos americanos, romantizando os nossos assassinos, pistoleiros, bandidos, milícias e unidades de cavalaria. Nós, tal como Israel, fetichizamos os militares.

Os nossos assassinatos em massa no Vietname, no Afeganistão e no Iraque – aquilo a que o sociólogo James William Gibson chama “guerra tecnológica” – definem o ataque de Israel a Gaza e ao Líbano. O Technowar está centrado no conceito de “exagero”. O exagero, com o seu número intencionalmente elevado de vítimas civis, justifica-se como uma forma eficaz de dissuasão.

Nós, tal como Israel, como Nick Turse salienta em “Kill Anything That Moves: The Real American War in Vietnam” mutilamos, abusamos, espancamos, torturamos, violamos, ferimos e matamos deliberadamente centenas de milhares de civis desarmados, incluindo crianças. 

Os massacres, escreve Turse, “foram o resultado inevitável de políticas deliberadas, ditadas aos mais altos níveis das forças armadas”. 

Muitos dos vietnamitas – tal como os palestinianos – que foram assassinados, relata Turse, foram inicialmente sujeitos a formas degradantes de abusos públicos. Quando foram detidos pela primeira vez, estavam, escreve Turse, “confinados em minúsculas ‘gaiolas para vacas’ de arame farpado e, por vezes, espetados com varas de bambu afiadas enquanto estavam dentro delas”. Outros detidos “foram colocados em grandes bidons cheios de água; os contentores foram então atingidos com muita força, o que causou ferimentos internos, mas não deixou cicatrizes.” Alguns foram “suspensos por cordas durante horas a fio ou pendurados de cabeça para baixo e espancados, uma prática chamada ‘viagem de avião’”. As plantas dos pés foram batidas. Os dedos foram desmembrados. Os detidos foram cortados com facas, “sufocados, queimados por cigarros ou espancados com bastões, mocas, paus, manguais de bambu, tacos de basebol e outros objetos. Muitos foram ameaçados de morte ou mesmo sujeitos a simulações de execuções.” Turse descobriu – novamente como Israel – que “os civis detidos e os guerrilheiros capturados eram frequentemente utilizados como detetores humanos de minas e morriam regularmente no processo”. E enquanto os soldados e os fuzileiros navais estavam envolvidos em actos diários de brutalidade e assassinato, a CIA “organizou, coordenou e pagou” um programa clandestino de assassinatos selectivos “de indivíduos específicos, sem qualquer tentativa de os capturar vivos ou qualquer pensamento de um julgamento legal”...” 

“Depois da guerra”, conclui Turse, “a maioria dos estudiosos descartou os relatos de crimes de guerra generalizados que se repetem nas publicações revolucionárias vietnamitas e na literatura anti-guerra americana como meramente propaganda. Poucos historiadores académicos pensaram sequer em citar tais fontes, e quase nenhum o fez de forma extensiva. Entretanto, My Lai passou a representar – e assim apagar – todas as outras atrocidades americanas. As estantes da Guerra do Vietname estão agora repletas de histórias gerais, estudos sóbrios de diplomacia e táticas militares e memórias de combate contadas a partir da perspetiva dos soldados. Enterrada em arquivos esquecidos do governo dos EUA, trancada nas memórias dos sobreviventes das atrocidades, a verdadeira guerra americana no Vietname praticamente desapareceu da consciência pública.”

Não há diferença entre nós e Israel. É por isso que não paramos o genocídio. Israel está a fazer exatamente o que faríamos em seu lugar. A sede de sangue de Israel é a nossa . Como noticiou a ProPublica , “Israel bloqueou deliberadamente a ajuda humanitária a Gaza, concluíram dois organismos governamentais. Antony Blinken rejeitou-os.” 

A lei norte-americana exige que o governo suspenda os envios de armas para países que impeçam a entrega de ajuda humanitária apoiada pelos EUA.

A amnésia histórica é uma parte vital das campanhas de extermínio quando terminam, pelo menos para os vencedores. Mas, para as vítimas, a memória do genocídio, juntamente com o desejo de retribuição, é uma vocação sagrada. Os vencidos reaparecem de formas que os assassinos genocidas não conseguem prever, alimentando novos conflitos e novas animosidades. A erradicação física de todos os palestinianos, a única forma de o genocídio funcionar, é uma impossibilidade, dado que só seis milhões de palestinianos vivem na diáspora. Mais de cinco milhões vivem em Gaza e na Cisjordânia.

O genocídio de Israel enfureceu 1,9 mil milhões de muçulmanos em todo o mundo, bem como a maior parte do Sul Global. Desacreditou e enfraqueceu os regimes corruptos e frágeis das ditaduras e monarquias no mundo árabe, onde vivem 456 milhões de muçulmanos, que colaboram com os EUA e Israel. Alimentou as fileiras da resistência palestiniana. E transformou Israel e os EUA em párias desprezados.

Israel e os EUA provavelmente vencerão esta ronda. Mas, em última análise, assinaram as suas próprias sentenças de morte. 

Fonte

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

O Che e a economia global

 

Remy Herrera

As pesquisas sobre o pensamento de Ernesto Che Guevara sobre a economia são numerosas, mas raras são as que abordam a sua dimensão em relação à economia global [1]. Com efeito, este aspecto é frequentemente negligenciado, relegado para segundo plano em comparação com as posições que expressou em relação à política internacional e, por isso, também mal compreendido – mesmo manipulado, ora para o opor artificialmente a Fidel Castro, ora para o voltar contra a URSS.

10 de outubro de 2018

Che não era um economista (com formação académica); foi talvez isto que lhe permitiu pensar por caminhos heterodoxos, questionar verdades estabelecidas na economia, aventurar-se em reflexões originais e corajosas da época. A realidade das suas responsabilidades na liderança da revolução cubana (comandante militar, chefe do Banco Central, Ministro da Indústria, etc.) obrigou-o a articular, nesta dimensão internacional, a dimensão nacional das questões estudadas. O seu pensamento sobre a política internacional não pode ser separado do que diz respeito à economia global.

Comecemos por um ponto crucial: Che apoia-se, no seu raciocínio, no aparato teórico-prático do Marxismo-Leninismo. Era, quer se queira quer não, um comunista. Mas, desde muito cedo, mostrou uma certa preocupação com a inadequação do socialismo realmente existente para desenvolver os seus próprios mecanismos económicos para fortalecer a sua posição na competição que lhe é imposta pelo sistema capitalista, dominante à escala global. Certa vez, disse: “Pertenço, através da minha formação ideológica, ao campo daqueles que pensam que a solução para os problemas do mundo está por detrás da Cortina de Ferro”. Mas não hesitou em criticar o uso acrítico das relações de mercado e monetárias no quadro das reformas implementadas na URSS na década de 1960 – como também fez Fidel, por exemplo, no seu discurso por ocasião do 6º aniversário da Revolução Cubana (1965). . É nesta perspectiva que devemos interpretar os apelos lançados por Che aos países socialistas para que apoiem os países do Terceiro Mundo e formem juntos uma frente comum, a fim de modificar o equilíbrio global de forças em favor do bloco progressista, em particular, para proporcionar aos países que alcançaram a independência os meios para terem um escudo protector contra a agressividade do imperialismo.

É claro que Che saudou a divisão no sistema mundial – e o enfraquecimento das posições capitalistas – após a independência política dos países do Terceiro Mundo; mas também mostrou preocupação com as grandes dificuldades destes países em consolidar a sua independência política, uma vez que a dependência económica das suas antigas potências coloniais permaneceu tão significativa. No seu discurso em Argel, em Fevereiro de 1965, proferido durante o 2º Seminário Económico Afro-Asiático, Che declarou: "Cada vez que um país se liberta, é uma derrota para o sistema imperialista mundial, mas o facto de conseguir romper com isso Este sistema não pode ser considerado uma vitória pela simples proclamação da independência, ou mesmo o triunfo de uma revolução pelas armas: só há vitória quando a dominação imperialista deixa de existir sobre um povo.

Compreender isto requer interagir as dimensões nacional e internacional, porque a base nacional dos países em questão é o subdesenvolvimento. Che define-o assim: “Um anão com uma cabeça enorme e um peito estreito é “subdesenvolvido” no sentido em que as suas pernas fracas e os seus braços curtos não são proporcionais ao resto da sua anatomia. O subdesenvolvimento é o produto de um fenómeno teratológico [isto é, relativo à ciência das anomalias da organização anatómica, congénita e hereditária dos seres vivos... Che também foi médico!] que distorceu o seu desenvolvimento. É isto que somos, nós que somos tão delicadamente descritos como “subdesenvolvidos”: países coloniais, semicoloniais e dependentes; países cujas economias foram distorcidas pela acção imperial, que desenvolveram de forma anormal ramos industriais e agrícolas, para além da sua própria economia imperial complexa. O subdesenvolvimento, ou desenvolvimento distorcido, envolve especializações perigosas no sector das matérias-primas, que mantêm o nosso povo sob a ameaça da fome. Nós, povos “subdesenvolvidos”, somos também os países da monocultura, da monoprodução, do monomercado.”

Portanto, o Che não caracteriza apenas a realidade socioeconómica dos países do Terceiro Mundo na sua componente interna; explica ainda os factores que condicionam esta situação a nível internacional, na sua componente externa. Estes países estão distorcidos, diz, porque são explorados. É um contributo teórico, em comparação com o corpus da economia do desenvolvimento dos anos 50. Mas é também, num certo sentido, um avanço em comparação com o próprio Marx, na medida em que, durante muito tempo, Marx e Engels acreditaram que o. a expansão global irremediável do sistema capitalista conduziria à homogeneização do mundo, à generalização nesta escala da oposição das classes burguesas/proletárias, ou seja, ao antagonismo fundamental. Mesmo que Marx e Engels, em certos casos, tentassem articular a exploração de classe e a dominação de nação para nação. Ao insistir nesta dominação internacional, Che é, pois, neste sentido, muito leninista.

De acordo com a definição de subdesenvolvimento que propõe, as economias do Terceiro Mundo não estão apenas distorcidas – porque então poderiam ser encontradas várias soluções. O que é mais grave é que estas economias são dependentes e que o seu domínio externo determina a reprodução das condições que geram e explicam o subdesenvolvimento. Na verdade, este subdesenvolvimento não é mais do que a forma distorcida que o desenvolvimento assume no Sul nos países capitalistas do Norte. A natureza do sistema capitalista é, portanto, contraditória: este sistema produz no mesmo movimento desenvolvimento num pólo e subdesenvolvimento no outro pólo. Para Che, é por isso necessário insistir na necessidade de independência económica dos países do Sul como forma de evitar a sua recolonização económica ou neo-colonização pelo Norte.

Mas devemos compreender os mecanismos específicos do neocolonialismo, que reconhece a independência dos Estados formais que permanecem dependentes. Numa conferência realizada a 20 de Março de 1960 para a "Universidade Popular" em Cuba, Che disse: "Os conceitos de soberania política e nacional permanecem ficções se a independência económica também não ocorrer." Percebeu a grande importância do contributo dos países socialistas para o esforço dos países do Terceiro Mundo para alcançar esta independência económica. É isto que o leva a dizer: “O desenvolvimento dos países subdesenvolvidos deve custar aos países socialistas…”. Esta citação é frequentemente citada, mas truncada e sobretudo desviada com o intuito de apresentar um Che contrário aos países socialistas da época, hostil à URSS. Na verdade, insiste, logo a seguir, na responsabilidade que recai também sobre os países do Terceiro Mundo de alcançar a independência económica e contribuir para a consolidação das forças revolucionárias, acrescentando: "... mas estes países subdesenvolvidos devem também mobilizar-se e comprometer-se resolutamente no caminho da construção de uma nova sociedade. Não podemos ganhar a confiança dos países socialistas tentando encontrar um equilíbrio entre o capitalismo e o socialismo, para usar estas duas forças como contrapesos entre si para obter algumas vantagens da sua concorrência.” Isto é tão claro como o início da citação – mesmo que esta clareza perturbe alguns…

Analisa também os instrumentos utilizados pelo imperialismo para subjugar e explorar estes países do Terceiro Mundo e sublinha o papel dos investimentos estrangeiros na tomada de controlo dos recursos naturais do Sul, ou o papel das trocas desiguais no comércio mundial. Pode ser considerado um precursor das ideias terceiro-mundistas de defesa da soberania do Sul sobre as suas actividades económicas - uma reivindicação que posteriormente se generalizou, na década de 1970. Também enfatiza o problema da dívida externa, no início da década de 1960, antecipando . Esta é mais uma contribuição do Che.

Durante a primeira reunião da UNCTAD, em 1964, em Genebra, denunciou os princípios – fictícios segundo ele – da igualdade formal entre os países, da reciprocidade nas relações comerciais, bem como a injustiça da ordem económica mundial, incluindo exigiu a transformação. Propôs estabelecer uma ligação entre os preços das matérias-primas e os pagamentos de dividendos e juros que antecipava a ideia de indexar os preços das matérias-primas aos dos produtos manufacturados, que a UNCTAD iria promover em breve.

A chave do raciocínio de Ernesto Guevara é a identificação entre a luta contra o subdesenvolvimento, a luta contra o imperialismo e a luta contra a ordem mundial tal como ela é. Segundo ele, a superação do subdesenvolvimento não pode ser separada do anti-imperialismo, porque o imperialismo é o obstáculo que reproduz a dependência do Sul. Mas, ao mesmo tempo, não podemos lutar contra o imperialismo sem quebrar, concretamente, os instrumentos de exercício do seu poder. É por isso que defendeu uma “nova ordem mundial” e – para conseguir esta transformação – a favor de uma unidade do Terceiro Mundo. Em Argel, em 1965, declarou: “Se o inimigo imperialista, americano ou qualquer outro, continuar a sua acção contra as nações subdesenvolvidas e os países socialistas, uma lógica elementar dita a necessidade da aliança dos povos subdesenvolvidos e dos países socialistas. E assim, “se não houvesse outro factor unificador, o inimigo comum teria de ser um só”.

Cheguemos agora a um ponto sensível, que deve ser abordado para esclarecer um mal-entendido. A importância que Che deu às relações Norte-Sul levou alguns comentadores a leituras erradas do seu pensamento; como quando se sugeriu que, segundo ele, a verdadeira contradição não estaria entre o capitalismo e o socialismo, mas entre os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos. Deve compreender-se que, embora Che tenha repetidamente enfatizado o papel determinante das relações Norte-Sul, não eliminou o papel das relações de classe. Eu disse: o Che era comunista, marxista-leninista. Todos os seus escritos e discursos tendem para o objectivo do advento do socialismo mundial. Nisso é muito marxista. Porque é difícil, senão impossível, apreender o pensamento de Marx, político mas também teórico, sem o ligar sistematicamente a esta convicção da vitória global do socialismo.

Mas Che fez com que os países socialistas enfrentassem a sua responsabilidade. Estava consciente da necessidade de consolidar as posições do socialismo mundial e criticou as ações que corriam o risco de excluir os países subdesenvolvidos do socialismo. Falou mesmo de intercâmbio desigual entre os países socialistas e o Terceiro Mundo, assim: "Se estabelecermos este tipo de relação [de intercâmbio desigual] entre estes dois conjuntos de países, teremos de concordar que os países socialistas são, de uma forma em de alguma forma, cúmplice da exploração imperial. Pode argumentar-se que o volume do comércio com os países subdesenvolvidos representa uma parte insignificante do comércio externo desses países. Isto é perfeitamente verdade, mas não elimina a natureza imoral da troca.” E para concluir: “Os países socialistas têm o dever moral de liquidar toda a cumplicidade com os países ocidentais exploradores”. Foi corajoso. Mas isso não faz de Che, longe disso, um inimigo da URSS. Porque isso não era a realidade. Che não foi mais complacente, nem menos crítico, para com os países do Terceiro Mundo, aos quais se dirigiu para que liquidassem nos seus solos os instrumentos para exercer o poder efectivo do imperialismo e que decidissem “empenhar-se resolutamente no caminho da construção” do socialismo. A tarefa histórica dos povos do Sul consiste, portanto, em eliminar as bases do imperialismo nos seus países, ou seja, todas as fontes de lucros, extracção de matérias-primas ou abertura de mercados.

Para Che, o inimigo é o imperialismo, considerado tanto como um sistema mundial – como diz na sua mensagem ao Tricontinental: “O imperialismo é um sistema mundial, a última etapa do capitalismo, que deve ser derrotado através de um grande confronto global”; e como um sistema dinâmico, adaptando-se às mudanças nas condições mundiais e utilizando ferramentas sempre inovadoras para atingir os seus objectivos de destruir os países do Sul – foi o que declarou na conferência da Organização dos Estados Americanos de 1961. Daí a sua estratégia revolucionária . : a luta popular deve ser multidimensional, global, longa, mobilizar todos os países explorados pelo imperialismo, ser implantada em todos os terrenos. O imperialismo, antes de mais nada americano, é o inimigo comum da humanidade e, face a ele, os países socialistas e os progressistas devem unir-se, quaisquer que sejam as suas diferenças ocasionais. Tais diferenças são uma fraqueza, mas sob os golpes do imperialismo a união prevalecerá.

Cinquenta anos se passaram desde a morte de Che. O mundo mudou enormemente desde então, mas a essência do seu pensamento sobre a economia global continua, creio, actual e relevante.

Remy Herrera - Investigador do CNRS, Centro de Economia da Sorbonne.

[1] Citemos aqui, além das Obras escogidas do próprio Che, publicadas pelas Ediciones Ciencias sociales (La Habana), as obras do grande economista cubano Silvio Baro, a quem este artigo muito deve, e ao qual é dedicado para ele.

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