O Serviço Nacional de Saúde que, por definição, é publico, inteiramente financiado pelos impostos dos cidadãos, por natureza dos direitos do indivíduo e consagrado na Constituição da República, é, ou deveria ser, universal, geral e gratuito, vai em estado deveras adiantado de degradação e o seu colapso é iminente. Este processo, como aqui várias vezes alertámos e por demasiado evidente, é consciente, deliberado e planeado, feito por encomenda, no interesse dos variadíssimos lóbis económicos, e sob orientação de Bruxelas. A ministra que é responsável mais directa pela boa prossecução do plano não passa de uma executiva que segue directivas e cumpre ordens e, nesta matéria, temos de reconhecer que é, ao contrário do que dizem, funcionária assaz competente.
A morte de uma mãe, por acaso, nascida no
mesmo país da ministra da saúde, Guiné-Bissau, e do seu bebé, por falta de
assistência competente no Hospital de Amadora-Sintra, que tem sido ultimamente
o mais fustigado pelas notícias de longos períodos de espera nas urgências, fez
disparar as críticas à política para a Saúde do governo Montenegro/PSD/CDS e o
clamor para a demissão da guineense (por nascimento) farmacêutica em funções de
ministra, alegando “incompetência” para o cargo, por “racismos” e “falta de sensibilidade”
para a tragédia alheia, especialmente quando as vítimas são diferentes,
eventualmente pobres e sem instrução. Epítetos críticas que a não terão
incomodado, contrariamente ao que querem fazer supor. A mulher está blindada.
Foi-se buscar o exemplo da demissão da
ex-ministra Marta Temido, do governo do PS/Costa, que, eventualmente para
proteger o chefe, de imediato colocou o cargo á disposição. A razão foi algo
parecida, a morte de uma mãe estrangeira, indiana, que teria vindo a Portugal
beneficiar dos bons cuidados de saúde prestados pelo SNS, ocorrida durante a
transferência do Hospital de Santa Maria para o de São Francisco Xavier, por
falta de vagas no serviço de Neonatologia. Os problemas eram os mesmos de
agora, falta de vagas nos serviços e serviços de urgência encerrados por
insuficiência de pessoal médico. Como se pode verificar, muda governo, muda
partido, muda ministra, mas os problemas mantêm-se e até se agravam.
Decididamente, que se trata antes do mais de uma estratégia, de uma política,
que não se vem alterando ao longo do tempo.
Quem espera pela demissão da comissária para a
Saúde em Portugal pode esperar sentado, porque vai ter muito que esperar.
Montenegro já veio manifestar inteira e sólida confiança, outra coisa não seria
de esperar; o ministro Leitão foi peremptório, garantindo que a ministra vai “continuar”
o trabalho de melhoria do SNS, com certeza, quereria dize do “sistema” de saúde
onde se metem no mesmo saco, o sector privado e o (dito) social, ambos
fartamente financiados pelo Orçamento de Estado. E mais, o ministro dos
Negócios Estrangeiros (e de outros negócios) veio de igual modo a terreiro
manifestar a ideia de que se a ministra está a ser contestada como está a ser,
é porque está a fazer o trabalho correcto e a enfrentar “interesses
poderosíssimos”; será um problema mental ou de visão que percepciona a
realidade de forma invertida, ou então quer fazer de nós todos parvos. O jornal
do regime, o inefável “Expresso” já informou que a “remodelação” ministerial
será feita, mas só lá para o fim do ano, ou seja, quando o menino Jesus for mais
crescido.
As medidas para a construção do “sistema” de
saúde, ou melhor dizendo, da doença, estão a ser tomadas com rapidez e pouca
eficiência. São, por exemplo, encerramento das urgências de proximidade de
Ginecologia e Obstetrícia, que já mereceram a mais veemente contestação de
médicos e enfermeiros, alegando a velha lógica usada por governos anteriores de
“racionalização” dos meios “escassos” existentes. A imprensa mainstream
aplaude, interessante verificar onde fecha o público, abre, ou já está aberto,
o privado. Com a mesma lógica de “racionalização de meios humanos” procedeu-se na
última sexta-feira ao encerramento da urgência do Hospital dos Covões em
Coimbra. Alguns médicos e jornalistas em geral aplaudiram, uma “decisão certa”,
contudo, não denunciaram o facto de já estar a funcionar as urgências de dois
hospitais privados na cidade, LUZ e CUF. Constrói-se o privado sobre as ruínas
do público.
A ministra fez um despacho que permite que os
utentes dos cuidados primários do SNS sejam atendidos em unidades privadas,
convencionadas para o efeito. Ora, nada de novo, esta contratação já estava
prevista nos governos do PS, as USF de modelo C, contratadas por concurso ou
até por ajuste directo, que alegadamente iriam colmatar as lacunas deixadas
pelas USF públicas. A FNAM (Federação Nacional dos Médicos) veio, muito
justamente, criticar a medida pela simples razão de que representa "um
grave retrocesso" nos cuidados de saúde primários, ameaçando não só a
continuidade dos mesmos, como, dizemos nós, vai transformar a saúde primária em
mera saúde secundária, isto é, a pouca prevenção e educação para a saúde será
substituída pelo rentável e proveitoso modelo curativo, o conhecido “modelo biomédico”.
Porque só este transforma a saúde em doença, e sem doentes não há negócio; torna-se
imperioso promover a necessidade interminável de exames complementares de
diagnóstico, desdobramento de consultas e outros cuidados, é trabalhar à peça
que se ganha dinheiro.
Há um velho hábito em Portugal de se mudar o
nome às coisas para depois se afirmar que houve reformas, que a coisa melhorou,
ou então, o que é ainda pior, camuflar a deterioração do que já está mal,
porque a intenção é mesma essa. É o que está a acontecer com o INEM (Instituto
Nacional de Emergência Médica) que passou a chamar-se ANEM, que não quer dizer Associação
Nacional de Estudantes de Medicina, nem Associação Nacional de Esclerose
Múltipla, mas Autoridade Nacional de Emergência Médica. A falta de
originalidade do nome revela bem a qualidade da política desta gente, para não
dizer da inteligência individual – será excesso de IA? – ao mesmo tempo que se
substitui o boy à frente do organismo. O novo nome combina bem como uma
possível, se não certa, privatização deste serviço de emergência.
Entretanto, ao INEM/ANEM faltam mais de 700
técnicos, que a própria ministra reconhece, também não se vê vontade nem medida
imediata para colmatar esse vazio, e os meios de transporte são os conhecidos,
ambulâncias paradas, por avariadas, e helicópteros que não existiam devido a
ajustes directos fraudulentos que foram contestados. Passados quatro meses lá
surgiram, alugados a empresa privada, que os terá, por sua vez, alugado ao
estrangeiro e, depois da bazófia ministerial, logo houve o azar de um que
avariou, obrigando ao transporte por ambulância de criança em estado crítico (hemorragia
cerebral congénita), de Portimão para Lisboa, cerca de 270 quilómetros.
Faltava-lhe uma peça, facto ocultado pela RTP que se referiu a “condições
climatéricas severas” para impedimento do voo, facto logo desmentido pelo INEM.
Lá veio a peça, para dois dias depois, ter avariado novamente quando foi
chamado para socorro a um acidente grave na Estrada Nacional 2, em Castro Verde.
O INEM e os seus (que não são seus) helicópteros dão bem a imagem da política
do governo Montenegro/PSD/CDS para a saúde, e para o resto.
O director executivo do SNS – boy
indisfarçável e pelos vistos moço de recados do governo, sucedendo passado
pouco tempo ao primeiro nomeado por este governo, já que as incompatibilidades
e conflitos de interesses em que este se viu envolvido eram mais que muitas –
terá ordenado ou transmitido a directiva do governo, em reunião de
administradores hospitalares, que a palavra de ordem no SNS era “cortar” na
despesa. Foi o escândalo mediática perante a “fuga” de informação, obrigando
Montenegro a vir publicamente explicar que não eram bem “cortes”, mas “poupar”,
porque a “despesa na Saúde não pode continuar a crescer 10% ao ano” e a
“redução” passará por “compras centralizadas”, “novas regras para transporte de
doentes e uso de medicamentos”. Dentro das “poupanças” estarão os mais de 200
milhões a menos em medicamentos e material de consumo clínico, ou a falta de
investimento na actualização do sistema informático do SNS. Este com falhas
frequentes, afectando o funcionamento de hospitais e centros de saúde em todo o
país, aconteceu no caso da grávida em referência, e ainda hoje está a acontecer,
segundo confirmação da presidente da FNAM.
Cortar no SNS para acrescentar nas compras de
serviços aos privados e aos outsourcings. Os encargos com as PPP, por
exemplo, vão aumentar 40%, para 325 milhões de euros, segundo a proposta do
Orçamento do Estado para 2026. Quase de certeza que o Hospital Amadora-Sintra
vai ser o primeiro a ser entregue de novo à gestão privada. Como está a ser
referenciado por toda a comunicação (dita) social pelas horas (mais de 20
horas) de espera no serviço de urgência, fica-se com a sensação de que estamos
perante uma campanha orquestrada e com conivência de alguém de dentro do
hospital, para além do governo e dos grupos privados; relembrar que já esteve
nas mãos do grupo CUF, que sacou largos milhões de euros de forma ilegítima.
Outros hospitais irão parar à gestão privada, os que vão ser construídos ou que
estão em construção e que ficam atrasados, como vai acontecer com o Hospital de
Lisboa Oriental que ficou sem 100 milhões de euros do PRR, por decisão do
governo de Montenegro.
A questão dos médicos tarefeiros é outro
exemplo como se esmifra o SNS, em vez de se contratar em definitivo os médicos,
actualizar-lhes a carreira e salários, se paga balúrdios (727 mil euros por
dia/266 milhões de euros por ano) às empresas de trabalho temporário, um valor
muito mais elevado ao que é auferido pelos médicos do quadro, mantendo-se aqueles
médicos desligados das equipas e com muito menor eficiência. Os médicos
tarefeiros nas urgências dizem que vão fazer greve, não aceitam o novo diploma
que o governo tem preparado mas ainda não teve coragem de o revelar nem colocar
em prática. É muito provável que façam greve, têm a vantagem de não serem
funcionários públicos, não estão sujeitos a serviços mínimos nem a requisição
civil, são meros prestadores de serviços em nome individual, fácil lhes é a
chantagem, e têm o governo à sua mercê. O ministro auxiliar de Montenegro já
veio a público apelar ao “sentido de serviço” destes empresários, esquecendo-se
que ele e o seu governo são corresponsáveis pela comercialização da Saúde, e
até o decadente PR Marcelo veio pedir esclarecimento sobre quem na realidade
manda no SNS, o governo ou o Director Executivo. Parece que estão algo desorientados.
Esta ameaça de greve e a possibilidade alguns serviços,
não só urgências, poderem fechar em quase todos os hospitais do SNS destapam a
evidência de que os governos que nos têm desgovernado há algumas décadas, não só
agora, fragilizaram o SNSD com o intuito claro de o entregar aso apetites do
lucro dos lóbis privados e inclusivamente com o risco de o destruir. Facilita-se
que os médicos que trabalham no público acumulem com a actividade no sector
privado, serão mais de 70%, tendo sido neste sentido que a carreira dos médicos
foi reformulada em 2012. Promoveu-se abertamente a parasitagem do SNS, foi às
claras, sem disfarces. Diz Montenegro, o gerente de turno dos negócios privados
das elites indígenas e outras, que "não é o setor privado que vai salvar o
SNS, o SNS é que pode salvar o privado se não mandar tantos utentes para
lá". Pois, é exactamente o contrário, é o sector privado que precisa dos
doentes, precisa dos hospitais públicos para formação gratuita dos médicos,
precisa do próprio SNS para financiamento da sua actividade curativa
empresarial, e tentará sugar o SNS até o tutano, até o exaurir em definitivo;
mas pode acontecer-lhe como o vírus, se mata o hospedeiro, suicida-se. O SNS
está a entrar em situação comatosa, no entanto, ainda estamos em tempo de o
salvar. Apoio às lutas dos profissionais de saúde, manifestações públicas de
repúdio desta política, repudiar o governo odiento, são objectivos imediatos.
Imagem: O apêndice - Henrique Monteiro

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