Emmanuel Todd
Este livro foi escrito durante os meses de
julho, agosto e setembro de 2023, o verão da contraofensiva ucraniana. Era,
pois, um livro de prospetiva. A derrota da Ucrânia é hoje uma evidência e este
livro tornou--se, na realidade, uma explicação histórica mais clássica. É
verdade que a reduzida dimensão da Ucrânia, em comparação com a da Rússia, a
par da insuficiência militar-industrial dos Estados Unidos, facilitava a
previsão. Bastava compreender que a lentidão da ação russa, no passado como no
presente, não resultava de uma especial incapacidade, mas da vontade de
economizar homens, ao contrário daquilo que os meios de comunicação ocidentais
nos repetem incansavelmente. Com efeito, tanto a imprensa escrita como a
televisão descrevem, dia após dia, uma estratégia russa que recorre
massivamente a carne para canhão, como acontecia no tempo de Estaline. Ora, no
momento em que escrevo estas linhas, 11 de junho de 2024, continua a
verificar-se o contrário, e a análise feita neste livro continua a ser válida:
o exército russo vai avançando ao longo de toda a frente, mas avança devagar.
O seu objetivo imediato não é a conquista de
território, mas a destruição, em termos materiais e humanos, do exército
ucraniano, que, sua vez, tem falta de soldados e não está a ser suficientemente
abastecido de armas pela NATO. Jogando o jogo russo, este exército sacrifica,
no seu esforço defensivo, homens acabados de recrutar e mal formados. Um dia,
pelas contas russas, acabará por se afundar, e Kiev afundar-se-á com ele.
Nada disto é especialmente difícil de
compreender. A hipótese de uma recuperação militar-industrial dos Estados
Unidos está excluída, dada a pobreza deste país em engenheiros e a sua
inabalável preferência pela produção de dinheiro, em detrimento da produção de
máquinas. Mesmo que houvesse um ligeiro progresso na produção de armas, é
manifesto que, nesse caso, a China, que continua a ser o alvo oficial dos
Estados Unidos, se colocaria, do ponto de vista industrial do lado da Rússia,
anulando assim os esforços ocidentais. Em termos gerais, contudo, o afundamento
moral e social que resulta do estado zero do protestantismo — a tese que
constitui o âmago teórico deste livro — garante que o declínio americano não
seja reversível. Este não foi escrito por um consumidor de Clausewitz ou de Sun
Tzu, mas por um leitor de Marx e de Weber.
Torna-se cada vez mais evidente que as
preferências do «resto do mundo» vão para a Rússia. Aliás, foi a indiferença
destes países às preocupações do Ocidente que permitiu que a economia russa resistisse
ao choque das sanções económicas. Mais recentemente, a imoralidade ocidental
face ao problema palestiniano veio reforçar a hostilidade deste resto do mundo.
A matança levada a cabo em Gaza pelo Estado de Israel, aceite pela Europa e
pelos Estados Unidos e feita com armamento americano, colocou o conjunto do
mundo muçulmano do lado da Rússia. Tanto assim é que, com o contributo da
fragilidade militar do mundo árabe e a patológica hostilidade dos Estados
Unidos em relação ao Irão, a Rússia veio a erigir-se, na prática e sem
necessidade de grande esforço diplomático, numa espécie de escudo de proteção
do Islão.
Longe de ter sido marginalizada, a Rússia
voltou a ocupar a posição de protagonista do mundo.
Assim, pois, a Ucrânia não tem nenhuma
possibilidade de recuperar, como era seu objetivo (sob a orientação técnica do
Pentágono), todos os seus territórios, incluindo populações da Crimeia e do
Donbass que não são apenas russófonas, mas se consideram russas. Para os historiadores
do futuro este projeto de sujeição de populações russas por parte do regime de
Kiev será o marcador de uma guerra de agressão ocidental. Todos estes elementos
são analisados com pormenor no livro, que é já, em certo sentido, um livro de
história.
Gostaria, contudo, de aproveitar esta curta
apresentação para colocar uma nova questão, esta sim, de prospetiva: porque é
que o Ocidente não aceita a sua derrota? Porque parece disposto, no momento em
que escrevo, a sacrificar a população ucraniana até ao último homem, e
sobretudo, através do projeto de lançamento de mísseis de longo alcance sobre o
território russo, a correr o risco de uma troca de ataques termonucleares com a
Rússia?
A doutrina militar russa é explícita, e
resulta da enorme superioridade demográfica do Ocidente após a desintegração da
URSS: em caso de ameaça para a nação e o Estado, a Rússia autorizará lançamentos
nucleares táticos, ou seja, sobre o campo de batalha. A minha sensação é que
este elemento doutrinal visa, antes de mais, os polacos, tradicionalmente muito
buliçosos na fronteira com a Rússia. A ligeireza com que os políticos e os
jornalistas ocidentais tratam esta doutrina assusta-me.
Mas a cegueira face ao risco nuclear não é a
única. Há outra cegueira, no fundo ainda mais estranha, que revela a componente
niilista da atitude ocidental (o niilismo, que é um produto do estado religioso
zero, é um dos conceitos fundamentais deste livro). Esta segunda, e
surpreendente, cegueira pode ser formulada do seguinte modo: a possibilidade da
paz é negada pelos nossos dirigentes como se fosse uma ameaça mais séria que
uma troca de ataques termonucleares. Com efeito, os russos têm repetido vezes
sem conta que não têm nenhuma intenção de conduzir o seu exército para além da
Ucrânia. Qualquer historiador, qualquer demógrafo, tomará isto como uma
evidência. Eu tive aliás ocasião de classificar, em declarações a um canal de
televisão francês, como mentalmente «desequilibrados» os políticos, os
jornalistas e os universitários europeus que estão convencidos de que a Rússia,
que tem uma população de 144 milhões de habitantes, em queda, e que tem
dificuldade em ocupar os seus 17 milhões de km2, pretende
estender-se para Ocidente. Essas mesmas elites, que ontem não foram capazes de
prever que os russos avançariam para a guerra (apesar de Moscovo ter anunciado
que não aceitaria a integração da Ucrânia na NATO), são hoje incapazes de
conceber que a Rússia queira restabelecer a paz o mais depressa possível, não
pela bondade do seu coração, mas porque é a paz que melhor serve os seus
interesses.
A Rússia não fará cedências no que à Ucrânia
diz respeito. Esta atitude em nada ameaça a Europa. Deveria ser possível
restabelecer a paz. Vou agora analisar as principais razões que, a despeito
destas duas evidências — risco total no caso de agravamento da guerra e
ausência de risco no caso de assinatura por parte dos russos de um tratado de
neutralização da Ucrânia —, tornam impossível o restabelecimento da paz no
estádio atual.
A impossibilidade do restabelecimento da
paz (no estádio atual)
Em conformidade com o método geral adotado
neste livro, que é obra de um historiador (ocidental, mas que recusa
absolutamente qualquer ideologia), começarei por analisar o ponto de vista
russo. Vou apresentar como verosímil uma atitude russa a que chego por
reconstrução lógica, uma vez que não disponho de nenhuma informação pessoal com
origem direta no Kremlin.
Perante uma NATO que eleva constantemente o
seu nível de envolvimento, os russos viram-se obrigados a rever em alta os seus
objetivos. Assim, a neutralização da Ucrânia e a anexação do Donbass deixaram
de ser os únicos objetivos de Moscovo; três elementos novos se tornaram
essenciais:
• O esforço empreendido pelos serviços
britânicos para organizar, a partir de Odessa, lançamentos de drones navais
contra a frota russa estacionada em Sebastopol tornaram a conquista de Odessa
necessária para garantir a segurança da grande base naval russa. Neste momento,
cortar o acesso da Ucrânia ao mar Negro tornou-se um objetivo da guerra;
• O fornecimento à Ucrânia de meios de
lançamento de maior alcance obriga os russos a uma conquista de território que
os levará até ao Dniepre, a fim de forçarem um recuo dessa ameaça;
• Este alargamento dos objetivos territoriais
tornou-se inevitável em razão de um terceiro elemento, um elemento crucial, que
se tornou um axioma da política externa dos dirigentes russos: o Ocidente não é
fiável; a assinatura de tratados não voltará a proporcionar a segurança de uma
paz duradoura. Os russos consideram hoje possível que, mesmo após a assinatura
de um tratado de paz, a NATO torne, a qualquer momento, a investir política e
militarmente na Ucrânia. Por isso, a única maneira de se protegerem de uma
reabertura do processo de expansão da NATO é estabelecendo uma posição de força
«técnica» e definitiva.
Resumamos, pois, aqueles que são atualmente os
objetivos russos: conquista da margem esquerda do Dniepre e do oblast de Odessa,
instauração em Kiev de um regime «amigo», que será fácil vigiar, dada a
presença da Rússia na aglomeração de Kiev situada na margem esquerda do
Dniepre.
O meu modelo comporta duas interrogações. Por
um lado, não tenho uma hipótese «positiva» a propor a respeito do destino
último da zona da Ucrânia Ocidental em torno de Lviv: terão os russos a intenção
de separar essa zona do resto do território, entregando-a ao Ocidente e
libertando a Ucrânia «independente» residual da influência da zona intensamente
nacionalista do Ocidente? Deixar a gestão desta região, que é a mais agitada de
todas, nas mãos da NATO seria pregar uma grande partida a essa organização. Mas
reconheço que não é honesto misturar o sentido de humor com a especulação
geopolítica.
A segunda interrogação diz respeito aos países
bálticos, dois dos quais, a Estónia e a Letónia, incluem minorias russófonas
importantes e maltratadas, sendo que o terceiro, a Lituânia, bloqueia o acesso
ao enclave russo de Kaliningrado. Os russos poderão sentir-se tentados a pôr
estes países na ordem, talvez parta mostrar à Europa que os americanos não são
fiáveis e que a NATO tem um carácter mais publicitário que efectivo. Mas não
creio que tal aconteça. Os russos não são adeptos do póquer, mas do xadrez. Deixar
os Estados bálticos em paz, a despeito do belicismo, ridículo e insuportável,
destes mesmos Estados, seria a melhor maneira de a Rússia mostrar à Europa o seu
desejo de paz e de entendimento; este género de diplomacia não emocional está
mais de acordo com a sua maneira de ser. Mistérios.
(“A Derrota do Ocidente”, Emmanuel Todd. Princípia Editora, 2025)

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