quarta-feira, 19 de novembro de 2025

A Derrota do Ocidente

Emmanuel Todd

Este livro foi escrito durante os meses de julho, agosto e setembro de 2023, o verão da contraofensiva ucraniana. Era, pois, um livro de prospetiva. A derrota da Ucrânia é hoje uma evidência e este livro tornou--se, na realidade, uma explicação histórica mais clássica. É verdade que a reduzida dimensão da Ucrânia, em comparação com a da Rússia, a par da insuficiência militar-industrial dos Estados Unidos, facilitava a previsão. Bastava compreender que a lentidão da ação russa, no passado como no presente, não resultava de uma especial incapacidade, mas da vontade de economizar homens, ao contrário daquilo que os meios de comunicação ocidentais nos repetem incansavelmente. Com efeito, tanto a imprensa escrita como a televisão descrevem, dia após dia, uma estratégia russa que recorre massivamente a carne para canhão, como acontecia no tempo de Estaline. Ora, no momento em que escrevo estas linhas, 11 de junho de 2024, continua a verificar-se o contrário, e a análise feita neste livro continua a ser válida: o exército russo vai avançando ao longo de toda a frente, mas avança devagar.

O seu objetivo imediato não é a conquista de território, mas a destruição, em termos materiais e humanos, do exército ucraniano, que, sua vez, tem falta de soldados e não está a ser suficientemente abastecido de armas pela NATO. Jogando o jogo russo, este exército sacrifica, no seu esforço defensivo, homens acabados de recrutar e mal formados. Um dia, pelas contas russas, acabará por se afundar, e Kiev afundar-se-á com ele.

Nada disto é especialmente difícil de compreender. A hipótese de uma recuperação militar-industrial dos Estados Unidos está excluída, dada a pobreza deste país em engenheiros e a sua inabalável preferência pela produção de dinheiro, em detrimento da produção de máquinas. Mesmo que houvesse um ligeiro progresso na produção de armas, é manifesto que, nesse caso, a China, que continua a ser o alvo oficial dos Estados Unidos, se colocaria, do ponto de vista industrial do lado da Rússia, anulando assim os esforços ocidentais. Em termos gerais, contudo, o afundamento moral e social que resulta do estado zero do protestantismo — a tese que constitui o âmago teórico deste livro — garante que o declínio americano não seja reversível. Este não foi escrito por um consumidor de Clausewitz ou de Sun Tzu, mas por um leitor de Marx e de Weber.

Torna-se cada vez mais evidente que as preferências do «resto do mundo» vão para a Rússia. Aliás, foi a indiferença destes países às preocupações do Ocidente que permitiu que a economia russa resistisse ao choque das sanções económicas. Mais recentemente, a imoralidade ocidental face ao problema palestiniano veio reforçar a hostilidade deste resto do mundo. A matança levada a cabo em Gaza pelo Estado de Israel, aceite pela Europa e pelos Estados Unidos e feita com armamento americano, colocou o conjunto do mundo muçulmano do lado da Rússia. Tanto assim é que, com o contributo da fragilidade militar do mundo árabe e a patológica hostilidade dos Estados Unidos em relação ao Irão, a Rússia veio a erigir-se, na prática e sem necessidade de grande esforço diplomático, numa espécie de escudo de proteção do Islão.

Longe de ter sido marginalizada, a Rússia voltou a ocupar a posição de protagonista do mundo.

Assim, pois, a Ucrânia não tem nenhuma possibilidade de recuperar, como era seu objetivo (sob a orientação técnica do Pentágono), todos os seus territórios, incluindo populações da Crimeia e do Donbass que não são apenas russófonas, mas se consideram russas. Para os historiadores do futuro este projeto de sujeição de populações russas por parte do regime de Kiev será o marcador de uma guerra de agressão ocidental. Todos estes elementos são analisados com pormenor no livro, que é já, em certo sentido, um livro de história.

Gostaria, contudo, de aproveitar esta curta apresentação para colocar uma nova questão, esta sim, de prospetiva: porque é que o Ocidente não aceita a sua derrota? Porque parece disposto, no momento em que escrevo, a sacrificar a população ucraniana até ao último homem, e sobretudo, através do projeto de lançamento de mísseis de longo alcance sobre o território russo, a correr o risco de uma troca de ataques termonucleares com a Rússia?

A doutrina militar russa é explícita, e resulta da enorme superioridade demográfica do Ocidente após a desintegração da URSS: em caso de ameaça para a nação e o Estado, a Rússia autorizará lançamentos nucleares táticos, ou seja, sobre o campo de batalha. A minha sensação é que este elemento doutrinal visa, antes de mais, os polacos, tradicionalmente muito buliçosos na fronteira com a Rússia. A ligeireza com que os políticos e os jornalistas ocidentais tratam esta doutrina assusta-me.

Mas a cegueira face ao risco nuclear não é a única. Há outra cegueira, no fundo ainda mais estranha, que revela a componente niilista da atitude ocidental (o niilismo, que é um produto do estado religioso zero, é um dos conceitos fundamentais deste livro). Esta segunda, e surpreendente, cegueira pode ser formulada do seguinte modo: a possibilidade da paz é negada pelos nossos dirigentes como se fosse uma ameaça mais séria que uma troca de ataques termonucleares. Com efeito, os russos têm repetido vezes sem conta que não têm nenhuma intenção de conduzir o seu exército para além da Ucrânia. Qualquer historiador, qualquer demógrafo, tomará isto como uma evidência. Eu tive aliás ocasião de classificar, em declarações a um canal de televisão francês, como mentalmente «desequilibrados» os políticos, os jornalistas e os universitários europeus que estão convencidos de que a Rússia, que tem uma população de 144 milhões de habitantes, em queda, e que tem dificuldade em ocupar os seus 17 milhões de km2, pretende estender-se para Ocidente. Essas mesmas elites, que ontem não foram capazes de prever que os russos avançariam para a guerra (apesar de Moscovo ter anunciado que não aceitaria a integração da Ucrânia na NATO), são hoje incapazes de conceber que a Rússia queira restabelecer a paz o mais depressa possível, não pela bondade do seu coração, mas porque é a paz que melhor serve os seus interesses.

A Rússia não fará cedências no que à Ucrânia diz respeito. Esta atitude em nada ameaça a Europa. Deveria ser possível restabelecer a paz. Vou agora analisar as principais razões que, a despeito destas duas evidências — risco total no caso de agravamento da guerra e ausência de risco no caso de assinatura por parte dos russos de um tratado de neutralização da Ucrânia —, tornam impossível o restabelecimento da paz no estádio atual.

A impossibilidade do restabelecimento da paz (no estádio atual)

Em conformidade com o método geral adotado neste livro, que é obra de um historiador (ocidental, mas que recusa absolutamente qualquer ideologia), começarei por analisar o ponto de vista russo. Vou apresentar como verosímil uma atitude russa a que chego por reconstrução lógica, uma vez que não disponho de nenhuma informação pessoal com origem direta no Kremlin.

Perante uma NATO que eleva constantemente o seu nível de envolvimento, os russos viram-se obrigados a rever em alta os seus objetivos. Assim, a neutralização da Ucrânia e a anexação do Donbass deixaram de ser os únicos objetivos de Moscovo; três elementos novos se tornaram essenciais:

• O esforço empreendido pelos serviços britânicos para organizar, a partir de Odessa, lançamentos de drones navais contra a frota russa estacionada em Sebastopol tornaram a conquista de Odessa necessária para garantir a segurança da grande base naval russa. Neste momento, cortar o acesso da Ucrânia ao mar Negro tornou-se um objetivo da guerra;

• O fornecimento à Ucrânia de meios de lançamento de maior alcance obriga os russos a uma conquista de território que os levará até ao Dniepre, a fim de forçarem um recuo dessa ameaça;

• Este alargamento dos objetivos territoriais tornou-se inevitável em razão de um terceiro elemento, um elemento crucial, que se tornou um axioma da política externa dos dirigentes russos: o Ocidente não é fiável; a assinatura de tratados não voltará a proporcionar a segurança de uma paz duradoura. Os russos consideram hoje possível que, mesmo após a assinatura de um tratado de paz, a NATO torne, a qualquer momento, a investir política e militarmente na Ucrânia. Por isso, a única maneira de se protegerem de uma reabertura do processo de expansão da NATO é estabelecendo uma posição de força «técnica» e definitiva.

Resumamos, pois, aqueles que são atualmente os objetivos russos: conquista da margem esquerda do Dniepre e do oblast de Odessa, instauração em Kiev de um regime «amigo», que será fácil vigiar, dada a presença da Rússia na aglomeração de Kiev situada na margem esquerda do Dniepre.

O meu modelo comporta duas interrogações. Por um lado, não tenho uma hipótese «positiva» a propor a respeito do destino último da zona da Ucrânia Ocidental em torno de Lviv: terão os russos a intenção de separar essa zona do resto do território, entregando-a ao Ocidente e libertando a Ucrânia «independente» residual da influência da zona intensamente nacionalista do Ocidente? Deixar a gestão desta região, que é a mais agitada de todas, nas mãos da NATO seria pregar uma grande partida a essa organização. Mas reconheço que não é honesto misturar o sentido de humor com a especulação geopolítica.

A segunda interrogação diz respeito aos países bálticos, dois dos quais, a Estónia e a Letónia, incluem minorias russófonas importantes e maltratadas, sendo que o terceiro, a Lituânia, bloqueia o acesso ao enclave russo de Kaliningrado. Os russos poderão sentir-se tentados a pôr estes países na ordem, talvez parta mostrar à Europa que os americanos não são fiáveis e que a NATO tem um carácter mais publicitário que efectivo. Mas não creio que tal aconteça. Os russos não são adeptos do póquer, mas do xadrez. Deixar os Estados bálticos em paz, a despeito do belicismo, ridículo e insuportável, destes mesmos Estados, seria a melhor maneira de a Rússia mostrar à Europa o seu desejo de paz e de entendimento; este género de diplomacia não emocional está mais de acordo com a sua maneira de ser. Mistérios.

(“A Derrota do Ocidente”, Emmanuel Todd. Princípia Editora, 2025)

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