Mireille Fanon comenta a atualidade do pensamento do pai e avalia que a situação é ainda pior
Entrevista por Juliana Passos
No ano em que Frantz Fanon completaria 100
anos de idade, a presidente da Fundação Frantz Fanon e filha do médico,
filósofo, psicanalista e revolucionário martinicano, Mireille Fanon
Mendés-France vem ao Brasil para
participar da mesa de abertura da 15ª edição da Festa Literária das Periferias
(Flup) em novembro. A conversa aconteceu antes da chacina mais letal da
história do país que vitimou ao menos 121 pessoas nos Complexos da Penha e do
Alemão na última semana.
Mireille é jurista, consultora da Organização
das Nações Unidas (ONU) e é ativista de direitos humanos. Nesta entrevista
concedida por telefone ao Brasil de Fato, ela defende que o mundo
mudou pouco desde a publicação de Os Condenados da Terra, em 1961,
em que Fanon discute os processos de libertação das colônias e a violência
usada pelos colonizadores para a manutenção do domínio sobre a população
escravizada.
Para Mireille, essa força é ainda mais brutal
e tem levado a governos fascistas diante da crise estrutural do capital. E ela
lembra, conforme defende Fanon, que esse uso da violência não mata apenas a
vítima, mas também aqueles que cometem atos de brutalidade.
E essa violência não é apenas física, mas
também passa pelos meios intelectuais, diante da construção de uma hegemonia
que nega a existência da população negra no Brasil, palestinos e imigrantes ao
redor do globo. Para ela, essa invisibilidade é parte do genocídio.
Confira a conversa.
Brasil de Fato: A
senhora virá ao Brasil em novembro. Já esteve aqui antes? Quais são suas
expectativas para esta visita?
Mireille Fanon Mendés-France: Sim, já estive no Brasil várias vezes. Acho que a primeira vez
foi para o Fórum Social Mundial, em 2005. Depois, como especialista das Nações
Unidas para pessoas de ascendência africana. Nessa nova visita, espero que
tenhamos uma boa conversa sobre a atualidade do pensamento de Frantz Fanon. E
como ele pode, neste momento, nos dar algumas reflexões sobre engajamento,
solidariedade, responsabilidade. E a maneira de perceber o mundo atual, o mundo
atual horrível, o mundo pré-fascista.
Fanon falou sobre a necessidade de criar
uma nova humanidade. O caminho para construir essa nova humanidade é o mesmo
hoje que era na década de 1950?
Sim, claro que é exatamente o mesmo, porque
desde meados do século XV continuamos sob o mesmo sistema capitalista e
racista. Nada mudou. O mesmo paradigma continua presente.
Os mesmos paradigmas de organização,
escravidão, colonização, colonialismo, genocídio, crimes contra a humanidade e violação dos direitos humanos
ainda estão presentes. Porque é liderado pelo sistema capitalista e financeiro.
É exatamente a mesma coisa.
Se acreditávamos nos anos 1960 e 1970 que o
colonialismo já havia acabado, isso era um erro. O colonialismo ainda está
presente e a situação está ainda pior diante da crise estrutural do capital.
Por que a senhora está dizendo que estamos
voltando ao passado?
Basta olhar para a situação dos
migrantes, a situação da
população negra em seu país, na Europa, nos Estados Unidos. A apropriação de terras, o extrativismo. Para onde quer que você
olhe, é a mesma violação em todo o mundo. E estamos voltando para trás porque o
sistema capitalista está em crise e eles sabem que, se não forem mais fortes,
mais violentos, mais genocidas, perderão.
É por isso que, neste momento, em todo o
mundo, podemos ver figuras fascistas. Alguns presidentes são totalmente
fascistas. E temos que entender isso. É nossa responsabilidade entender isso.
Esta entrevista ocorre na mesma semana em
que Israel e o Hamas assinaram um cessar-fogo. Como as ideias de Fanon se
relacionam com a luta palestina pela
libertação?
É muito simples de entender. Se estamos
lutando contra o colonialismo como Fanon fez, engajando-se com a Frente de
Libertação Nacional da Argélia e pedindo a unidade africana após a guerra de
libertação da Argélia, agora é exatamente a mesma coisa. Portanto, temos que
nos engajar.
Se acreditamos em um novo ser humano, temos
que mudar o paradigma da dominação. Não temos outra escolha. Um outro mundo só
é possível se mudarmos o paradigma da dominação. Portanto, se tivermos uma
ruptura, se introduzimos uma ruptura com o sistema capitalista. É somente nessa
condição que podemos obter um novo ser humano. E é exatamente o que Fanon
disse.
Qual é a importância dos trabalhadores,
negros, imigrantes, palestinos, moradores de favelas escreverem suas próprias
histórias?
É muito importante. Como Fundação Frantz
Fanon, somos totalmente contra essa política que trata a população explorada
como se fossem invisíveis e a denunciamos. Porque tentar tornar essas pessoas
invisíveis e até mesmo mentir sobre sua própria história, como é feito com a
história palestina, é parte de um ato genocida. É muito grave, é realmente
muito grave.
E ignorar que mais da metade da população
brasileira é negra é muito grave. Porque permite que essas pessoas que fingem
ser descendentes de europeus aprovem leis que violam os direitos humanos e
aceitem a violência policial e aceitem ações policiais contra as populações do
campo que deveriam ter direito à terra.
É muito grave e é o problema que enfrentamos
agora. É fingir, todas essas pessoas estão fingindo ser mais poderosas,
intelectualmente mais poderosas, culturalmente mais poderosas e mais
inteligentes porque são brancas. Isso mata todo mundo. E é exatamente o que
Fanon disse. Isso mata não apenas a vítima, mas também os perpetradores.
E para complementar, gostaria de perguntar
qual o papel da literatura em nos ajudar a compreender o
mundo e chamar a atenção para essas questões que
comentamos como a opressão, o neocolonialismo, o racismo e o capitalismo.
A literatura também trata da situação
política. Não há fragmentação entre literatura, arte e política. E essa é uma
das coisas mais importantes que Frantz Fanon fez.
[Fazer isso] É quebrar a fragmentação entre o
conhecimento. E se alguns escritores acham que não estão falando sobre o
contexto real em que vivemos, acho que cometeram um erro ou cometeram um erro
voluntário. Porque todas as coisas estão conectadas. Não fragmentadas. E a
literatura não está fragmentada da política, do contexto social e da
solidariedade.
Acho que, mesmo quando lemos, quando todos nós
lemos o que chamamos de literatura burguesa, ela está sempre falando sobre a
situação política. E também a maneira como a literatura burguesa leva em
consideração o racismo, a xenofobia, a homofobia, a islamofobia, a afrofobia,
etc.
O fato de não terem mencionado nada sobre
racialização, escravatura, colonialismo, dominação e supremacia branca. Não
nomear esse tipo de situação que enfrentamos como povo de ascendência africana
é apenas para dizer que não queremos nomear isso, mas sabemos que existe.
Existe, mas não sabemos como nomear. Porque
consideramos que estamos fora disso e somos escritores, intelectuais, mas não
queremos ter nada a ver com isso. Mas é apenas uma forma de não denunciar a
dominação branca, a modernidade eurocêntrica. Eles sabem que são culpados por
não fazer isso.

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