quarta-feira, 12 de novembro de 2025

‘Mundo atual é horrível e pré-fascista’ – diz filha de Frantz Fanon

Mireille Fanon comenta a atualidade do pensamento do pai e avalia que a situação é ainda pior

 Entrevista por Juliana Passos

No ano em que Frantz Fanon completaria 100 anos de idade, a presidente da Fundação Frantz Fanon e filha do médico, filósofo, psicanalista e revolucionário martinicano, Mireille Fanon Mendés-France vem ao Brasil para participar da mesa de abertura da 15ª edição da Festa Literária das Periferias (Flup) em novembro. A conversa aconteceu antes da chacina mais letal da história do país que vitimou ao menos 121 pessoas nos Complexos da Penha e do Alemão na última semana.

Mireille é jurista, consultora da Organização das Nações Unidas (ONU) e é ativista de direitos humanos. Nesta entrevista concedida por telefone ao Brasil de Fato, ela defende que o mundo mudou pouco desde a publicação de Os Condenados da Terra, em 1961, em que Fanon discute os processos de libertação das colônias e a violência usada pelos colonizadores para a manutenção do domínio sobre a população escravizada.

Para Mireille, essa força é ainda mais brutal e tem levado a governos fascistas diante da crise estrutural do capital. E ela lembra, conforme defende Fanon, que esse uso da violência não mata apenas a vítima, mas também aqueles que cometem atos de brutalidade.

E essa violência não é apenas física, mas também passa pelos meios intelectuais, diante da construção de uma hegemonia que nega a existência da população negra no Brasil, palestinos e imigrantes ao redor do globo. Para ela, essa invisibilidade é parte do genocídio.

Confira a conversa.

Brasil de Fato: A senhora virá ao Brasil em novembro. Já esteve aqui antes? Quais são suas expectativas para esta visita?

Mireille Fanon Mendés-France: Sim, já estive no Brasil várias vezes. Acho que a primeira vez foi para o Fórum Social Mundial, em 2005. Depois, como especialista das Nações Unidas para pessoas de ascendência africana. Nessa nova visita, espero que tenhamos uma boa conversa sobre a atualidade do pensamento de Frantz Fanon. E como ele pode, neste momento, nos dar algumas reflexões sobre engajamento, solidariedade, responsabilidade. E a maneira de perceber o mundo atual, o mundo atual horrível, o mundo pré-fascista.

Fanon falou sobre a necessidade de criar uma nova humanidade. O caminho para construir essa nova humanidade é o mesmo hoje que era na década de 1950?

Sim, claro que é exatamente o mesmo, porque desde meados do século XV continuamos sob o mesmo sistema capitalista e racista. Nada mudou. O mesmo paradigma continua presente.

Os mesmos paradigmas de organização, escravidão, colonização, colonialismo, genocídio, crimes contra a humanidade e violação dos direitos humanos ainda estão presentes. Porque é liderado pelo sistema capitalista e financeiro. É exatamente a mesma coisa.

Se acreditávamos nos anos 1960 e 1970 que o colonialismo já havia acabado, isso era um erro. O colonialismo ainda está presente e a situação está ainda pior diante da crise estrutural do capital.

Por que a senhora está dizendo que estamos voltando ao passado?

Basta olhar para a situação dos migrantes, a situação da população negra em seu país, na Europa, nos Estados Unidos. A apropriação de terras, o extrativismo. Para onde quer que você olhe, é a mesma violação em todo o mundo. E estamos voltando para trás porque o sistema capitalista está em crise e eles sabem que, se não forem mais fortes, mais violentos, mais genocidas, perderão.

É por isso que, neste momento, em todo o mundo, podemos ver figuras fascistas. Alguns presidentes são totalmente fascistas. E temos que entender isso. É nossa responsabilidade entender isso.

Esta entrevista ocorre na mesma semana em que Israel e o Hamas assinaram um cessar-fogo. Como as ideias de Fanon se relacionam com a luta palestina pela libertação?

É muito simples de entender. Se estamos lutando contra o colonialismo como Fanon fez, engajando-se com a Frente de Libertação Nacional da Argélia e pedindo a unidade africana após a guerra de libertação da Argélia, agora é exatamente a mesma coisa. Portanto, temos que nos engajar.

Se acreditamos em um novo ser humano, temos que mudar o paradigma da dominação. Não temos outra escolha. Um outro mundo só é possível se mudarmos o paradigma da dominação. Portanto, se tivermos uma ruptura, se introduzimos uma ruptura com o sistema capitalista. É somente nessa condição que podemos obter um novo ser humano. E é exatamente o que Fanon disse.

Qual é a importância dos trabalhadores, negros, imigrantes, palestinos, moradores de favelas escreverem suas próprias histórias?

É muito importante. Como Fundação Frantz Fanon, somos totalmente contra essa política que trata a população explorada como se fossem invisíveis e a denunciamos. Porque tentar tornar essas pessoas invisíveis e até mesmo mentir sobre sua própria história, como é feito com a história palestina, é parte de um ato genocida. É muito grave, é realmente muito grave.

E ignorar que mais da metade da população brasileira é negra é muito grave. Porque permite que essas pessoas que fingem ser descendentes de europeus aprovem leis que violam os direitos humanos e aceitem a violência policial e aceitem ações policiais contra as populações do campo que deveriam ter direito à terra.

É muito grave e é o problema que enfrentamos agora. É fingir, todas essas pessoas estão fingindo ser mais poderosas, intelectualmente mais poderosas, culturalmente mais poderosas e mais inteligentes porque são brancas. Isso mata todo mundo. E é exatamente o que Fanon disse. Isso mata não apenas a vítima, mas também os perpetradores.

E para complementar, gostaria de perguntar qual o papel da literatura em nos ajudar a compreender o mundo e chamar a atenção para essas questões que comentamos como a opressão, o neocolonialismo, o racismo e o capitalismo.

A literatura também trata da situação política. Não há fragmentação entre literatura, arte e política. E essa é uma das coisas mais importantes que Frantz Fanon fez.

[Fazer isso] É quebrar a fragmentação entre o conhecimento. E se alguns escritores acham que não estão falando sobre o contexto real em que vivemos, acho que cometeram um erro ou cometeram um erro voluntário. Porque todas as coisas estão conectadas. Não fragmentadas. E a literatura não está fragmentada da política, do contexto social e da solidariedade.

Acho que, mesmo quando lemos, quando todos nós lemos o que chamamos de literatura burguesa, ela está sempre falando sobre a situação política. E também a maneira como a literatura burguesa leva em consideração o racismo, a xenofobia, a homofobia, a islamofobia, a afrofobia, etc.

O fato de não terem mencionado nada sobre racialização, escravatura, colonialismo, dominação e supremacia branca. Não nomear esse tipo de situação que enfrentamos como povo de ascendência africana é apenas para dizer que não queremos nomear isso, mas sabemos que existe.

Existe, mas não sabemos como nomear. Porque consideramos que estamos fora disso e somos escritores, intelectuais, mas não queremos ter nada a ver com isso. Mas é apenas uma forma de não denunciar a dominação branca, a modernidade eurocêntrica. Eles sabem que são culpados por não fazer isso.

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