terça-feira, 24 de setembro de 2024

O SISTEMA

 

Eduardo Galeano

Na história, como na natureza, a podridão é o laboratório da vida

KARL MARX

O SISTEMA (II)

que programa o computador que alarma o banqueiro que alerta o embaixador que janta com o general que adverte o presidente que intima o ministro que ameaça o directo-geral que humilha o gerente que grita ao chefe que abusa do empregado que despreza o operário que maltrata a mulher que bate no filho que pontapeia o cão.

(IV)

Quem está contra ela, ensina a máquina, é inimigo do país. Quem denuncia a injustiça comete um delito de lesa-pátria.

Eu sou o país, diz a máquina. Este campo de concentração é o país: este monturo, este imenso baldio vazio de homens.

Aquele que acredita que a pátria é uma casa de todos deve ser da ralé.

(VI)

Os encapuzados reconhecem-se pelas tosses.

Massacram alguém durante um mês e depois dizem ao que resta dele: «Foi um erro.» Quando sai, perdeu o trabalho. Os documentos também.

Por ler ou dizer uma frase duvidosa, um professor pode ser destituído; e se o detêm, mesmo que seja por uma hora e por engano, fica sem emprego.

Aos uruguaios que cantem com alguma ênfase, numa cerimónia pública, a estrofe do hino nacional que diz Tiranos, treinei!, aplica-se a lei que condena «o ataque à moral das Forças Armadas»: dezoito meses a seis anos de prisão. Por garatujar numa parede Viva a liberdade ou atirar um panfleto na rua, um homem, se sobreviver à tortura, terá de passar uma boa parte da sua vida na cadeia. Se não sobreviver, o certificado de óbito dirá que quis fugir, tropeçou e caiu para o vazio, ou que se enforcou, ou que faleceu vítima de um ataque de asma. Não haverá autópsia.

Inaugura-se uma cadeia por mês. É aquilo a que os economistas chamam Plano de Desenvolvimento.

Mas e as prisões invisíveis? Em que relatório oficial ou denúncia oposicionista figuram os presos do medo? Medo de perder o emprego, medo de não o conseguir, medo de falar, medo de ouvir, medo de ler. No país do silêncio, pode-se acabar num campo de concentração por causa do brilho do olhar. Não é necessário despedir um funcionário; basta fazê-lo saber que pode ser vítima de um despedimento sumário e que nunca mais ninguém lhe dará emprego. A censura triunfa realmente quando cada cidadão se transforma no censor implacável dos seus próprios actos e palavras.

A ditadura transforma em cadeias os quartéis e as esquadras, as carruagens abandonadas, os barcos em desuso. Não transforma também em cadeia a casa de cada um?

(VIII)

A denúncia dos crimes de uma ditadura não se esgota na lista de torturados, assassinados e desaparecidos. A máquina adestra-nos para o egoísmo e para a mentira. A solidariedade é um delito. Para nos salvarmos, ensina a máquina, temos de tornar-nos hipócritas e maldosos. Quem esta noite nos beija, amanhã irá vender-nos. Cada pulhice gera uma vingança. Se dizemos o que pensamos, dão cabo de nós; e ninguém merece o risco. Não deseja o operário desempregado, secretamente, que a fábrica despeça outro para ele ocupar o seu lugar? Não será o próximo um concorrente e um inimigo? Há pouco tempo, em Montevideu, um miúdo pediu à mãe que o levasse de volta para a maternidade, porque queria desnascer.

Sem uma gota de sangue, sem uma lágrima sequer, executa-se a matança quotidiana do que de melhor cada um tem dentro de si. Vitória da máquina: as pessoas têm medo de falar e de se olharem. Que ninguém se encontre com ninguém. Quando alguém olha para nós e fixa o olhar, pensamos: «Vai-nos lixar.» O gerente diz ao empregado, que era seu amigo:

— Tive de te denunciar. Pediram as listas. Era preciso dar um nome qualquer. Perdoa-me, se puderes.

Em cada trinta uruguaios, um tem como função vigiar, perseguir e castigar os restantes. Não há trabalho fora dos quartéis e das esquadras; e, em todo o caso, para conservar o emprego é imprescindível o certificado de fé democrática redigido pela polícia.

Exige-se aos estudantes que denunciem os seus colegas, exortam-se as crianças a denunciar os seus professores. Na Argentina, a televisão pergunta: «Sabe o que o seu filho está a fazer neste momento?»

Porque não figura na crónica policial o assassinato da alma por envenenamento?

(X)

A máquina acossa os jovens: prende-os, tortura-os, mata-os. Eles são a prova viva da sua impotência. Expulsa-os: vende-os, carne humana, braços baratos, para o estrangeiro.

A máquina, estéril, odeia tudo o que cresce e se move. Só é capaz de multiplicar as prisões e os cemitérios. Não consegue produzir outra coisa além de presos e de cadáveres, de polícias e de espiões, de mendigos e de desterrados.

Ser jovem é um delito. A realidade comete-o todos os dias, à alvorada; e a história também, que todas as manhãs nasce de novo.

Por isso a realidade e a história estão proibidas.

(XI)

A única coisa livre são os preços. Nas nossas terras, Adam Smith precisa de Mussolini. Liberdade de investimento, liberdade de preços, liberdade de câmbio: quanto mais livres andam os negócios, mais presas estão as pessoas. A prosperidade de poucos amaldiçoa todos os outros. Quem conhece uma riqueza que seja inocente? Em tempos de crise, não se tornam conservadores os liberais, e fascistas os conservadores? Ao serviço de quem cumprem a sua tarefa os assassinos de pessoas e de países?

Orlando Letelier escreveu em The Nation que a economia não é neutra, os técnicos tão-pouco. Duas semanas depois, Letelier voou em pedaços numa rua de Washington. As teorias de Milton Friedman trouxeram-lhe o Prémio Nobel; aos chilenos, trouxeram Pinochet.

Um ministro da Economia declarava no Uruguai:

«A desigualdade na distribuição dos rendimentos é o que gera a poupança.» Ao mesmo tempo, confessava que a tortura o horrorizava. Como manter essa desigualdade se não for a golpes de espigão eléctrico? A direita ama as ideias gerais. Ao generalizar, absolve.

(“Dias e Noites de Amor e de Guerra”, Eduardo Galeano. Antígona, 2019.)

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Portugal a arder… e alguma gente a enriquecer

 

Enquanto se escrevem estas linhas, o balanço já é trágico: sete mortos, dos quais quatro bombeiros, e mais de 100 feridos, alguns deles graves, e os números não param de aumentar. Não há maneira de se aprender. Será incapacidade ou incúria dolosa? Se passarmos para números de incêndios, áreas ardidas e concelhos atingidos, então, teremos: mais de 10 mil hectares entre Porto e Aveiro (mais de 62 mil hectares desde Domingo); 125 novos incêndios que deflagraram em 12 horas, entre as 20 horas de ontem e as 8 de hoje; a intensidade dos incêndios nos distritos de Aveiro e Viseu a igualar a dos incêndios de 2001; mais de 100 concelhos a arder ou em risco sério e imediato de novas deflagrações. Em resposta política, o primeiro-ministro cancelou a agenda oficial e o congresso do partido foi adiado. Contudo, nem a oposição nem os órgãos de comunicação social vieram, para já, exigir a demissão da ministra da Administração Interna, que não se sabe por anda, e nem Marcelo foi ao terreno tirar a selfie do costume e à semelhança do que fez em Pedrógão. Quando estas linhas terminarem de ser escritas, com certeza, que a tragédia terá alastrado.

Estamos perante um problema que se vem arrastando de ano para ano e há mais de quarenta anos. Todos os anos assistimos a toda sorte de especialistas, comentadores, jornalistas tudólogos a perorar sobre as causas dos incêndios e respetivas mezinhas. E, quando chegam os políticos de serviço de turno ao governo, então, são as lamentações, os ditos sentidos pêsames aos familiares das pessoas que morreram e em relação às vítimas são as promessas rejuradas de que a situação não se irá repetir, as medidas e as indemnizações a haver serão prontas e certas.

Andamos nisto vai para quase há meio século, todos os anos a tragédia se repete, umas vezes com mais intensidade ou dimensão, outras vez mais moderada e pouco mediatizável, pairando no ar que a incompetência e a negligência campeiam e se tornaram, elas próprias, um problema da mesma dimensão. Nós vamos mais longe, tudo isto acontece porque há uma política consciente, live e deliberada para que as coisas sejam mesmo assim.

Quando foi o terrível incêndio de Pedrógão, levantou-se de imediato um imenso coro de indignação contra o governo PS e da sua aparente incapacidade de ter actuado de prontidão de molde a colocar fim ao incêndio e de não ter sabido prevenir a tragédia. Agora, depois da experiência passada e dos ensinamentos que se deveria ter tirado, a situação está a repetir-se, já com algumas mortes e dezenas de feridos, mas ninguém levanta a voz de protesto. Ficam pelo lamento e ninguém exige a demissão da ministra ou do governo no seu conjunto.

Parece que o incêndio até veio a calhar para o governo da AD, porque vai-se passar toda a semana a falar da desgraça em vez do Orçamento de estado 2025, e se vai ou não ser aprovado. A campanha para quem vai ser o melhor candidato a Belém, da mesma forma, ficou em banho-maria e para melhor oportunidade. As televisões já não falam da guerra na Ucrânia nem no genocídio que o governo sionista de Israel está a cometer contra o povo palestiniano. Muito se irá falar de incêndios florestais, mas nem uma única palavra sobre as razões verdadeira e reais de nada se ter feito para evitar a tragédia.

Jorge Paiva, biólogo e professor jubilado da Universidade de Coimbra, alertava há cerca de 20 anos, e alertou por mais do que uma vez, para o que se estava a passar em Portugal quanto a floresta e incêndios. A destruição da floresta primitiva que existia no território portugueses, que ocupava inclusivamente o Alentejo foi deliberada; primeiro, para diversos empreendimentos militares e económicos, exemplo, construção de naus para os descobrimentos; segundo, a sua substituição por espécies exóticas, pinheiro bravo no tempo do regime fascista, e eucalipto para a indústria das celuloses, na época actual; tanto uma como a outra espécie constituem os melhores combustíveis para a ignição e propagação dos fogos. A razão principal dos fogos florestais anuais é simples: a ganância e a política deliberada dos governos, de todos eles, em satisfazer a corrida desenfreada pelo lucro. Na verdadeira acepção da palavra, não temos “floresta”, porque espontânea e constituída por inúmeras espécies, mas “bosques”, monoculturas plantadas pela indústria do capital.

Ao mesmo tempo que se destrói a floresta, constrói-se no seu lugar uma mancha imensa e contínua de bosque, que, vendo bem, disponibiliza um magro lucro, embora fácil, e daí a sedução de muitos proprietários. Monocultura que, por sua vez, desertifica em termos humanos as nossas serras. Temos de reconhecer alguma razão, desta vez, aos activistas do Climáximo quando vêm acusar as celuloses, nomeadamente a Navigator e os governos pelos incêndios e pelas mortes resultantes. A poluição dos incêndios não será menor do que aquela que resulta da combustão dos combustíveis fósseis. Estamos lembrados que estas empresas, exemplo Celtejo/Altri, quando são condenadas por poluir apanham penas que se resumem a irrisórias multas, mantendo impunemente a poluição da água e do ar. A própria justiça não mexe com os interesses dos grandes grupos económicos.

No dia de ontem o fogo chegou à periferia oriental da cidade de Coimbra, e foi por aqui que em 2005 o fogo entrou na cidade chegando à malha urbana, mas, dessa altura até aos dias de hoje, nada foi feito quanto a limpeza das matas ou à modificação da mata. Em reunião da Junta de Freguesia de Torres do Mondego, onde fica a porta de entrada para o fogo, o presidente da Junta denunciou que a mancha contínua de eucaliptos e de acácias, espécies que não são nativas, se mantem (Diário de Coimbra, 17.09.2024). Nem câmara e nem governo nada fizeram para alterar a situação e prevenir mais uma desgraça. Pela boca do mesmo autarca, ficou-se a saber que a zona é explorada por madeireiros, e, acrescentamos, toda ela se situa dentro da área apetecível para construtores civis e agências imobiliárias. Coimbra deverá ser só ultrapassada, no que concerne à especulação imobiliária e incluindo o mercado do arrendamento de quartos a estudantes, por Lisboa e Porto.

Não será difícil identificar quem ganha com a indústria dos fogos, para além dos citados, empresas de aluguer de meios aéreos, as próprias corporações dos bombeiros, e as câmaras municipais… e as empresas ligadas à exploração do lítio e de outros minérios. A contratação dos meios aéreos seja para o combate aos incêndios, ou socorro e transporte de doentes pelo INEM, continua a ser feita ou por ajuste directo ou às mesmas empresas do costume, que chegam a fazer cambalacho entre si. Só há pouco tempo que o governo anunciou a aquisição de 3 helicópteros que serão operados pela Força Aérea, mas o primeiro só será entregue em 2027. Os Kamov, considerados os melhores helicópteros para combate a incêndios, adquiridos pelo governo de PS/Sócrates, foram sabotados e posteriormente enviados para a Ucrânia, o que suscitou protesto da embaixada da Rússia em Lisboa perante o governo AD. Os comandantes das associações de bombeiros voluntários podem vender material às próprias corporações, porque não constitui qualquer ilegalidade. E as câmaras também poderão alterar os planos directores municipais, alargando as áreas de construção. Pelas redes sociais proliferam os mapas que mostram onde se irão efectuar as explorações do lítio e, coisa curiosa, todas elas coincidem com as regiões mais afectados pelos incêndios. Não sejamos maldosos e conspiradores, serão apenas coincidências.

A imprensa mainstream, que tanto fustigou o governo anterior e exigiu a cabeça da ministra, centra a atenção na dimensão dos incêndios e sublinha a serenidade dos actuais governantes que estarão a ter, ou terão tido, hoje uma reunião do conselho de ministros e, imaginem lá!, presidida pelo inefável PR Marcelo, que possivelmente estará agradecido que o país arda, porque assim este já não falará do amaldiçoado tema das gémeas. As elites pouco ou nada se preocupam com o povo, a sua vida e problemas, a sua atenção dirige-se para os negócios e interesses dos diversos lóbis que dominam o país; o mais é encenação para empalmar o voto em tempo de eleições. Nada se preocupam que a dita “floresta” esteja ao abandono, que os serviços que existiam para a sua protecção tenham sido destruídos, desde guardas florestais a guarda rios, que a população abandone os campos e as serras do interior do país, por falta de empregos, de serviços de saúde, de escolas e de infantários, ficando os velhos ao deus dará e entregues, quanto muito, ao negócio dos lares ilegais ou explorados pela Igreja/Misericórdias financiadas com dinheiros públicos.

À medida que o país arde, o governo AD irá tentar sair do fogo sem se chamuscar muito; irá, à semelhança dos anteriores, prometer mundos e fundos, chorar baba e ranho e verter lágrimas de crocodilo pela desgraça das pessoas do povo, que ficam sem o património conquistado ao longo de uma vida de trabalho e, infelizmente, algumas sem a própria vida. Todos nós sabemos que a origem da maior parte destes incêndios é de natureza criminosa, conhecem-se os incendiários, no entanto, era bom também saber quem são os mandantes e porque possuem inteira liberdade para fazer o que fazem. Isto só pode acontecer porque, em última instância, a responsabilidade da tragédia cabe única e exclusivamente a um poder político e a um sistema económico para quem o dinheiro e a riqueza material são mais importantes que o bem-estar do povo português, a vida humana e a protecção da natureza. A pergunta que deixamos: até quanto teremos de suportar esta situação e esta gente que nos desgoverna?

Imagem de destaque: SIC Notícias.

Ver: Os incêndios e a desertificação do Portugal florestal – Jorge Paiva

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Ciência e felicidade

 

Giorgio Agamben

Apesar da utilidade que julgamos retirar delas, as ciências não nos podem fazer felizes, porque o homem é um ser falante, que necessita de exprimir alegria e dor, prazer e aflição por palavras, enquanto a ciência visa, em última análise, ser muda, que é possível conhecer o número e o tamanho, como todos os objectos do mundo. As línguas naturais que os humanos falam são, no máximo, um obstáculo ao conhecimento e, como tal, devem ser formalizadas e corrigidas, eliminando como "poéticas" aquelas redundâncias a que antes de mais prestamos atenção quando expressamos os nossos desejos e as nossas pensamentos, os nossos afetos como as nossas aversões.

Precisamente porque se dirige a um homem mudo, a ciência nunca poderá produzir ética. Que cientistas ilustres tenham realizado experiências sem qualquer escrúpulo no interesse da ciência nos corpos daqueles que foram deportados para campos de concentração ou daqueles que foram condenados nas prisões americanas não nos deve surpreender neste sentido. A ciência baseia-se, de facto, na possibilidade de separar a todos os níveis a vida biológica de um ser vivo da sua vida relacional, a vida vegetativa silenciosa que o homem tem em comum com as plantas da sua existência espiritual como ser falante. É bom recordar isto, hoje em que os homens parecem ter posto de lado tudo aquilo em que acreditavam, para confiar à ciência uma expectativa de felicidade que só pode ser desiludida e traída.

Como os últimos anos demonstraram, sem qualquer dúvida, os homens que olham para as suas vidas através dos olhos do seu médico estão, portanto, dispostos a renunciar às suas liberdades políticas mais básicas e a submeter-se sem limites aos poderes que os governam. A felicidade nunca pode ser separada das palavras simples e banais que trocamos, do choro e do riso de alegria nem da emoção que nos faz chorar, não sabemos se de dor ou de prazer. Deixemos os cientistas ao silêncio e à solidão dos números, cuidemos para que não invadam a esfera da ética e da política, que é a única que nos pode verdadeiramente satisfazer.

8 de Setembro de 2024

Original: quodlibet

Imagem 1: O Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci: A união entre arte e ciência.

Imagem 2: A dança de casamento (c. 1566). Óleo sobre painel de madeira, de Bruegel, o Velho (1525-1569).

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Governo AD, demagogia e corrupção

  

Nos últimos dias temos assistido a um quase duelo entre o governo, com o líder cheio de pica na demagogia e na provocação, e a oposição timorata. Parece que todos vieram de férias cheios de vontade em provar que existem e que a sua existência e actividade ainda valem alguma coisa perante o olhar atónito do povo contribuinte português. O centro da disputa centra-se no Orçamento de Estado de 2025, cuja aprovação o governo considera facto consumado, caso contrário será o caos. O dito “principal partido da oposição”, não escondendo a hesitação,  coloca algumas condições quanto ao alívio fiscal dos sacrificados portugueses incluindo os que por enquanto pagam a contribuição sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, como condição para o seu voto favorável. Incontornavelmente, o rei Marcelo declara que o OE-2025 será certamente aprovado… porque “os portugueses assim o querem”. Resumindo, depois da realização das ditas “academias” e “universidades” de Verão das juventudes partidárias, autênticas escolas para o crime, a luta pela disputa do pote adivinha-se, este ano, assaz renhida.

A disputa pelo pote

Se o Orçamento não for aprovado, Montenegro ameaça, mais que veladamente, com novas eleições antecipadas. A distribuição do bodo aos pobres, professores, polícias, guardas prisionais, médicos, aposentados, é mais que indício de querer comprar votos em peleja eleitoral a realizar brevemente. O aparecimento em colete salva-vidas e em bote de borracha, e o recato em retiro de luxo no Brasil enquanto o fogo na Madeira destruía mais de cinco mil hectares de floresta protegida, durante 13 longos dias, constitui a demagogia mais rasca e simultaneamente a cobardia política de quem hipoteticamente se pretende o salvador do pedaço à beira-mar plantado.

Como se vê, quando se chega a esta altura é sempre mais do mesmo quanto a saber a quem calha o maior quinhão da riqueza extorquida ao povo português. Como se faz a divisão do saque e qual a comissão para quem se responsabiliza, pelo menos formalmente, pela sua execução. Depois de aprovado localmente ainda terá de ir a Bruxelas a fim de obter o ámen final. Entretanto, César já foi peremptório: PS deve negociar Orçamento "sem se precipitar em ruturas políticas". O agora amansado trauliteiro Santos Silva Santos insiste que a “esquerda” possui responsabilidade na luta contra a extrema-direita, apagando a outra responsabilidade de a ter promovido. O BE insufla o peito e promete chumbo redondo ao OE e o PCP faz-se invisível esperando que não aconteça grande tempestade. E o primeiro-ministro, numa de político façanhudo, arrota que é a oposição que deseja a "instabilidade" e que são os líderes de PS e Chega os "despeitados e desorientados". Está montado o palco para a festa.

A ministra das Finanças alemã para Portugal

A festa tem sido sempre a dos políticos que se dispõem servilmente a obedecer às directivas de Bruxelas, recebem as devidas comissões e prebendas, e é transversal aos partidos da governação, que, depois de massacrarem os cidadãos portugueses com o esbulho e a austeridade, são geralmente recompensados com sinecuras de oiro nos organismos internacionais, FMI, Comissão e Conselhos Europeus, BCE, e por aí fora. Costa foi recompensado com a presidência do Conselho Europeu e logo a seguir o Governo AD indicou a pessoa com “mais curriculum” para o lugar de comissário europeu, com o apetitoso vencimento de 25 mil euros mensais, ou seja, cerca de 30 vezes mais o salário mínimo nacional. Considerando a pessoa em causa, poderemos dizer, sem exagero, que será mais cadastro que curriculum.

A “miss swaps”, assim conhecida pelos seguros ruinosos que fez em relação aos juros dos empréstimos contraídos pelas empresas públicas à banca privada fez com que só o espanhol Santander tenha embolsado 1,8 mil milhões de euros a mais, ao todo terão sido 3 mil milhões de euros. A dita ministra das Finanças, ao serviço da Alemanha e de inteira confiança e simpatia do tenebroso ministro as Finanças alemão Wolfgang Schäuble, foi responsável pela alienação de empresas públicas, rentáveis e estratégicas para o país, ANA, EDP, CTT e REN. A TAP, a pretexto do défice financeiro crónico, foi vendida a dois empresários manhosos que não só a “compraram” com o dinheiro da própria empresa, como agora se comprova embora já se soubesses, e ainda receberam umas centenas largas de euros na renacionalização.

Graças a esta comissária, que já o era antes de o ser, o BPN foi vendido ao desbarato e foi experimentada pela primeira vez na UE, mas não repetida, a resolução do BES, ficando o país a arder, em prejuízo directo e indirecto, em cerca de 20 mil milhões de euros. Os trabalhadores e os pensionistas ainda bem se lembram dos cortes nos salários e nas pensões e do aumento dos impostos. O governo de Passos Coelho/Paulo Portas foi para além da troika e os actuais dirigentes do PSD e do CSD-PP ainda se gabam do facto. Montenegro ainda se arroja a firmar que troikistas são os dirigentes e militantes do PS e o recadeiro-mor do reino, colocando-se em bicos de pés ao perfilar-se a candidato a Belém, não se engasgou ao dizer que se não tivesse a miss swaps a feito o que fez, teria sido qualquer outra pessoa do PS. Possivelmente, nem estará muito enganado. A dita depois de sair do governo foi recompensada com o tacho na empresa abutre Arrow Global, curiosamente, a que comprou e ainda gere a dívida do Banif. Cadastro melhor do que este será difícil de encontrar.

A estagnação económica

Quando a direita cá do burgo se encontra em dificuldades o PS tem sido catapultado para o governo, devido à sua maior base social de apoio, lá consegue colocar as contas em dia sem provocar grande contestação social. Logo que a direita se endireita e na perspectiva de se avizinharem tempo difíceis, de imediato o partido mais representativo da burguesia é reconduzido ao poder governativo nem que para isso se tenha de atropelar as regras ditas “democráticos”. Foi o que aconteceu com a demissão de um governo de maioria absoluta e a meio da legislatura, não deixando de ser irónico ouvir da boca, de quem mais desestabilizou a situação para derrubar o governo, apelos contra a instabilidade. Ora, o que é que faz correr esta gente que usa a mentira e a manipulação?

A situação económica não é famosa e promete degradar-se rapidamente, esta sim a verdadeira razão do alarido. E os dados estão à vista: metade da economia está estagnada ou em recessão, “agricultura, indústria, construção e alguns serviços dão sinais de exaustão”, e a inflação vai subir de novo, apesar de o ministério das Finanças ter revelado que as contas públicas voltaram ao excedente devido ao aumento da colecta do IRC. E são já dois trimestres seguidos que a economia se encontra estagnada – é o próprio INE que o diz. O mesmo se passa com outras economias mais fortes na UE, nomeadamente, a “locomotiva da Europa”, a Alemanha, em sérias dificuldades económicas e sem perspectivas de melhorar a curto ou a médio prazo.

Este governo irá fazer pior do que o governo PàF/PSD/CDS-PP/Coelho/Portas por diversas razões. A crise económica que se aproxima será mais bem prolongada e profunda, as soluções para a debelar estão esgotadas, a guerra encontra-se dentro da Europa, o Ocidente alargado tem pela ferente um contendor de peso que são os BRICs, e os povos e, em particular, os trabalhadores assalariados, encontram-se menos disponíveis para aceitar uma outra vez medidas de austeridade a redobrar. Prevêem-se fortes borrascas sociais. Os despedimentos colectivos aumentaram 32% nos primeiros seis meses do ano em comparação com o mesmo período do ano passado. O desemprego registado apresentou uma subida homóloga de 7,3% no passado mês de Julho. Mais de cem mil pessoas passaram a ter dois empregos, daí a propaganda que é feita em relação à semana dos quatro dias de trabalho. A razão é sempre a mesma, a necessidade de manter as taxas de lucro dos capitalistas nacionais e estrangeiros que por cá pululam.

Baralhar e voltar a dar

A solução na perspectiva da elite e de Bruxelas é sempre mais do mesmo: austeridade. Para conseguir impor a receita há que obter maioria absoluta, razão que leva Marcelo e Montenegro preocuparem-se tanto com a estabilidade que eles nunca respeitaram aquando dos governos PS. Se o Orçamento for chumbado Marcelo não hesitará de aceitar a demissão do governo e convocar de novo eleições antecipadas. Será a fuga para a frente. Montenegro já ensaiou o papel de salva-vidas e adoçou a boca de alguns sectores profissionais dos serviços públicos e dos pensionistas. Não será por falta de vergonha e de populismo mais rasteiro que o PSD não irá ganhar as eleições com maioria absoluta. Pelos menos, é assim que as contas estão a ser feitas, mas a realidade poderá fazer gorar os planos.

Após a operação de relações públicas de querer resolver os problemas pendentes e herdados do anterior governo, o governo AD vai aos pouco mostrando a sua verdadeira natureza. Começou a impor a lei da rolha no Hospital de Santa Maria, onde colocou um homem de mão e ex-secretário de estado do PSD, a pretexto de defender o bom nome dos profissionais de saúde, enquanto vai desprezando os mesmos, recusando a melhoria salarial e de carreiras, e destruindo rapidamente o SNS. Para este objectivo contratou um militar que já prometeu a continuação do desastre com a contratação dos privados que, por sua vez, já receberem uma bela fatia de 65 milhões de euros para acorrerem no serviço de urgências gerais. Os cuidados de obstetrícia e ginecologia são para privatizar, bem como os cuidados primários. E a escola pública será para completar a destruição, falta de muitas centenas de professores a duas semanas de início das aulas e as propinas do ensino superior são para descongelar.

No entanto, o governo PSD ornamentado com CDS-PP está a sofrer dos mesmos males do anterior, que era tão criticado e estava sempre nas primeiras páginas dos jornais e nas aberturas dos noticiários televisivos. Em menos de cinco meses de vida, já sofreu um tremor de terra e um grande incêndio. A respeito do sismo, o falsas Moedas veio aos pulos perante as câmaras de televisão perorar que a “resposta” foi um sucesso. Mas que resposta se nada houve de acidente, quer em relação a património quer a pessoas? Mais um exercício de pura demagogia e falta de vergonha que foi acompanhado quase simultaneamente pelo monárquico e pelo salva-vidas. E o incêndio que lavrou à vontade na Madeira mostrou, o que já se sabia, a arrogância e a sobranceria do soba do arquipélago, que, a custo lá interrompeu as férias e a à última hora e depois de se ver isolado pelo próprio partido do continente, considerou a necessidade da intervenção dos canadairs. Os milhares de hectares de floresta ardidos não lhe perturbaram quase de certeza nem o sono nem a digestão da lagosta.

A corrupção transversal aos partidos da governação

Quanto aos “casos e casinhos”, de que tanto o Costa se queixa por usados como instrumento de arremesso contra si e o seu governo, constata-se que em menos de cinco meses de existência, o governo foi roubado não em um computador, mas em oito. E quanto aos casos que atormentam outras figuras e do partido, e ao mesmo tempo figurões do estado, ficou-se a saber que o presidente da Assembleia da República, a segunda entidade mais importante da República (das bananas) entregou à Entidade para a Transparência (EpT) uma declaração de rendimentos e património onde não constava o o Valor Patrimonial Tributário (VPT) de 10 imóveis urbanos, no valor de perto de 3 milhões de euros, tendo entregado uma segunda já com os imóveis “esquecidos”, depois de ter sido questionado pela imprensa. Relembrar que Aguiar Branco esteve metido em negócio do Parque Escolar e responsável pela liquidação dos públicos estaleiros de Viana do Castelo, que acabaram por ir ter às mãos do grupo Martifer.

Antes deste acontecimento, o governo aprovou uma lei que limita acesso às declarações de património dos políticos, situação denunciada e considerada “grave” pelo Sindicato de Jornalistas. Não só a referida lei atenta contra a liberdade de imprensa, como cria uma opacidade sobre a forma como os políticos vão enriquecendo enquanto estão no poder e com a mão dentro do pote. Seria deveras interessante saber como o presidente do Parlamento enriqueceu, por exemplo.

É notícia recente no jornal do regime, o inefável “Expresso”, que o governo criou uma comissão que tem como objectivo apresentar um novo calendário e orientações para os concursos de concessões de eletricidade em baixa tensão, tendo entregado a presidência a um ex-governante do PSD e ex-presidente da espanhola Endesa. Por coincidência, esta empresa é parte interessada no concurso. Não será difícil adivinhar quem vai muito provavelmente ganhar o concurso, e destronar a EDP, neste chorudo negócio, se acontecer também se poderá imaginar o montante das comissões ou propinas. Interessante também o facto de o actual ministro das Infraestruturas e Habitação estar no momento com o dossier da reprivatização da TAP e conhecendo-se agora o relatório da IGF que aponta para indícios de crime na operação de privatização, que foi de responsabilidade do então secretário de estado dos Transportes –  por coincidência, a pessoa é a mesma. A oposição reclama a demissão do ministro. A outra coincidência é que estas coisas estão a acontecer na mesma altura em que o CEO da alemã Lufthansa vem a Portugal para tratar da compra de parte da transportadora nacional. Manda Bruxelas.

A falência do establishment

Nestes últimos dias, acontecerem, infelizmente, dois acidentes envolvendo dois helicópteros que operavam em combate aos incêndios, com cinco vítimas mortais. Um elemento comum a estes dois acidentes funestos é o facto de os helicópteros serem alugados a privados, que, por sua vez, os alugam a empresas estrangeiras e operados por pilotos civis. Com os milhões que se gastam nestes negócios feitos, na maioria, por ajuste directo, já o Estado teria comprado uma grande frota e treinado pilotos da força aérea em quantidade mais que suficiente. Salientar que os canadairs que acabaram com o incêndio da Madeira são propriedade do estado espanhol. Os incêndios têm constituído desde há quase cinquenta anos um manancial de lucros para um grande número de empresários que sobrevivem à custa do Estado, mas gostam muito de criticar o excesso de “gordura” desse mesmo Estado, alguns deles até financiam o partido da extrema-direita portuguesa. Estes dois desastres são simbólicos e ilustram um regime e um governo prestes a desmoronar.

As reivindicações, insertas na canção, de ‘paz, pão, habitação, saúde e educação’, consubstanciando a liberdade para quem trabalha, passado meio século, estão longe de se encontrarem realizadas. Pior ainda, nos últimos vinte anos são objectivos que se têm vindo a afastar, e alguns deles são já inalcançáveis se se mantiver o mesmo estado de coisas. Por vontade dos partidos do regime a situação será para manter até que apodreça. A aprovação do OE-2025, quase tida como certa, irá nesse sentido.