Eduardo Galeano
Na história, como na natureza, a podridão é o laboratório da vida
KARL MARX
O SISTEMA (II)
que programa o computador que alarma o banqueiro que alerta o embaixador que janta com o general que adverte o presidente que intima o ministro que ameaça o directo-geral que humilha o gerente que grita ao chefe que abusa do empregado que despreza o operário que maltrata a mulher que bate no filho que pontapeia o cão.
(IV)
Quem está contra ela, ensina a máquina, é
inimigo do país. Quem denuncia a injustiça comete um delito de lesa-pátria.
Eu sou o país, diz a máquina. Este campo de
concentração é o país: este monturo, este imenso baldio vazio de homens.
Aquele que acredita que a pátria é uma casa de
todos deve ser da ralé.
(VI)
Os encapuzados reconhecem-se pelas tosses.
Massacram alguém durante um mês e depois dizem
ao que resta dele: «Foi um erro.» Quando sai, perdeu o trabalho. Os documentos
também.
Por ler ou dizer uma frase duvidosa, um
professor pode ser destituído; e se o detêm, mesmo que seja por uma hora e por
engano, fica sem emprego.
Aos uruguaios que cantem com alguma ênfase,
numa cerimónia pública, a estrofe do hino nacional que diz Tiranos,
treinei!, aplica-se a lei que condena «o ataque à moral das Forças Armadas»:
dezoito meses a seis anos de prisão. Por garatujar numa parede Viva a
liberdade ou atirar um panfleto na rua, um homem, se sobreviver à tortura,
terá de passar uma boa parte da sua vida na cadeia. Se não sobreviver, o
certificado de óbito dirá que quis fugir, tropeçou e caiu para o vazio, ou que
se enforcou, ou que faleceu vítima de um ataque de asma. Não haverá autópsia.
Inaugura-se uma cadeia por mês. É aquilo a que
os economistas chamam Plano de Desenvolvimento.
Mas e as prisões invisíveis? Em que relatório
oficial ou denúncia oposicionista figuram os presos do medo? Medo de perder o
emprego, medo de não o conseguir, medo de falar, medo de ouvir, medo de ler. No
país do silêncio, pode-se acabar num campo de concentração por causa do brilho
do olhar. Não é necessário despedir um funcionário; basta fazê-lo saber que
pode ser vítima de um despedimento sumário e que nunca mais ninguém lhe dará
emprego. A censura triunfa realmente quando cada cidadão se transforma no censor
implacável dos seus próprios actos e palavras.
A ditadura transforma em cadeias os quartéis e
as esquadras, as carruagens abandonadas, os barcos em desuso. Não transforma
também em cadeia a casa de cada um?
(VIII)
A denúncia dos crimes de uma ditadura não se
esgota na lista de torturados, assassinados e desaparecidos. A máquina
adestra-nos para o egoísmo e para a mentira. A solidariedade é um delito. Para
nos salvarmos, ensina a máquina, temos de tornar-nos hipócritas e maldosos.
Quem esta noite nos beija, amanhã irá vender-nos. Cada pulhice gera uma
vingança. Se dizemos o que pensamos, dão cabo de nós; e ninguém merece o risco.
Não deseja o operário desempregado, secretamente, que a fábrica despeça outro
para ele ocupar o seu lugar? Não será o próximo um concorrente e um inimigo? Há
pouco tempo, em Montevideu, um miúdo pediu à mãe que o levasse de volta para a
maternidade, porque queria desnascer.
Sem uma gota de sangue, sem uma lágrima
sequer, executa-se a matança quotidiana do que de melhor cada um tem dentro de
si. Vitória da máquina: as pessoas têm medo de falar e de se olharem. Que
ninguém se encontre com ninguém. Quando alguém olha para nós e fixa o olhar,
pensamos: «Vai-nos lixar.» O gerente diz ao empregado, que era seu amigo:
— Tive de te denunciar. Pediram as
listas. Era preciso dar um nome qualquer. Perdoa-me, se puderes.
Em cada trinta uruguaios, um tem como função
vigiar, perseguir e castigar os restantes. Não há trabalho fora dos quartéis e
das esquadras; e, em todo o caso, para conservar o emprego é imprescindível o
certificado de fé democrática redigido pela polícia.
Exige-se aos estudantes que denunciem os seus
colegas, exortam-se as crianças a denunciar os seus professores. Na Argentina,
a televisão pergunta: «Sabe o que o seu filho está a fazer neste momento?»
Porque não figura na crónica policial o
assassinato da alma por envenenamento?
(X)
A máquina acossa os jovens: prende-os,
tortura-os, mata-os. Eles são a prova viva da sua impotência. Expulsa-os:
vende-os, carne humana, braços baratos, para o estrangeiro.
A máquina, estéril, odeia tudo o que cresce e
se move. Só é capaz de multiplicar as prisões e os cemitérios. Não consegue
produzir outra coisa além de presos e de cadáveres, de polícias e de espiões,
de mendigos e de desterrados.
Ser jovem é um delito. A realidade comete-o
todos os dias, à alvorada; e a história também, que todas as manhãs nasce de
novo.
Por isso a realidade e a história estão
proibidas.
(XI)
A única coisa livre são os preços. Nas nossas
terras, Adam Smith precisa de Mussolini. Liberdade de investimento, liberdade
de preços, liberdade de câmbio: quanto mais livres andam os negócios, mais
presas estão as pessoas. A prosperidade de poucos amaldiçoa todos os outros.
Quem conhece uma riqueza que seja inocente? Em tempos de crise, não se tornam
conservadores os liberais, e fascistas os conservadores? Ao serviço de quem
cumprem a sua tarefa os assassinos de pessoas e de países?
Orlando Letelier escreveu em The Nation que
a economia não é neutra, os técnicos tão-pouco. Duas semanas depois, Letelier
voou em pedaços numa rua de Washington. As teorias de Milton Friedman
trouxeram-lhe o Prémio Nobel; aos chilenos, trouxeram Pinochet.
Um ministro da Economia declarava no Uruguai:
«A desigualdade na distribuição dos
rendimentos é o que gera a poupança.» Ao mesmo tempo, confessava que a tortura
o horrorizava. Como manter essa desigualdade se não for a golpes de espigão
eléctrico? A direita ama as ideias gerais. Ao generalizar, absolve.
(“Dias e Noites de Amor e de Guerra”, Eduardo
Galeano. Antígona, 2019.)
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