terça-feira, 24 de setembro de 2024

O SISTEMA

 

Eduardo Galeano

Na história, como na natureza, a podridão é o laboratório da vida

KARL MARX

O SISTEMA (II)

que programa o computador que alarma o banqueiro que alerta o embaixador que janta com o general que adverte o presidente que intima o ministro que ameaça o directo-geral que humilha o gerente que grita ao chefe que abusa do empregado que despreza o operário que maltrata a mulher que bate no filho que pontapeia o cão.

(IV)

Quem está contra ela, ensina a máquina, é inimigo do país. Quem denuncia a injustiça comete um delito de lesa-pátria.

Eu sou o país, diz a máquina. Este campo de concentração é o país: este monturo, este imenso baldio vazio de homens.

Aquele que acredita que a pátria é uma casa de todos deve ser da ralé.

(VI)

Os encapuzados reconhecem-se pelas tosses.

Massacram alguém durante um mês e depois dizem ao que resta dele: «Foi um erro.» Quando sai, perdeu o trabalho. Os documentos também.

Por ler ou dizer uma frase duvidosa, um professor pode ser destituído; e se o detêm, mesmo que seja por uma hora e por engano, fica sem emprego.

Aos uruguaios que cantem com alguma ênfase, numa cerimónia pública, a estrofe do hino nacional que diz Tiranos, treinei!, aplica-se a lei que condena «o ataque à moral das Forças Armadas»: dezoito meses a seis anos de prisão. Por garatujar numa parede Viva a liberdade ou atirar um panfleto na rua, um homem, se sobreviver à tortura, terá de passar uma boa parte da sua vida na cadeia. Se não sobreviver, o certificado de óbito dirá que quis fugir, tropeçou e caiu para o vazio, ou que se enforcou, ou que faleceu vítima de um ataque de asma. Não haverá autópsia.

Inaugura-se uma cadeia por mês. É aquilo a que os economistas chamam Plano de Desenvolvimento.

Mas e as prisões invisíveis? Em que relatório oficial ou denúncia oposicionista figuram os presos do medo? Medo de perder o emprego, medo de não o conseguir, medo de falar, medo de ouvir, medo de ler. No país do silêncio, pode-se acabar num campo de concentração por causa do brilho do olhar. Não é necessário despedir um funcionário; basta fazê-lo saber que pode ser vítima de um despedimento sumário e que nunca mais ninguém lhe dará emprego. A censura triunfa realmente quando cada cidadão se transforma no censor implacável dos seus próprios actos e palavras.

A ditadura transforma em cadeias os quartéis e as esquadras, as carruagens abandonadas, os barcos em desuso. Não transforma também em cadeia a casa de cada um?

(VIII)

A denúncia dos crimes de uma ditadura não se esgota na lista de torturados, assassinados e desaparecidos. A máquina adestra-nos para o egoísmo e para a mentira. A solidariedade é um delito. Para nos salvarmos, ensina a máquina, temos de tornar-nos hipócritas e maldosos. Quem esta noite nos beija, amanhã irá vender-nos. Cada pulhice gera uma vingança. Se dizemos o que pensamos, dão cabo de nós; e ninguém merece o risco. Não deseja o operário desempregado, secretamente, que a fábrica despeça outro para ele ocupar o seu lugar? Não será o próximo um concorrente e um inimigo? Há pouco tempo, em Montevideu, um miúdo pediu à mãe que o levasse de volta para a maternidade, porque queria desnascer.

Sem uma gota de sangue, sem uma lágrima sequer, executa-se a matança quotidiana do que de melhor cada um tem dentro de si. Vitória da máquina: as pessoas têm medo de falar e de se olharem. Que ninguém se encontre com ninguém. Quando alguém olha para nós e fixa o olhar, pensamos: «Vai-nos lixar.» O gerente diz ao empregado, que era seu amigo:

— Tive de te denunciar. Pediram as listas. Era preciso dar um nome qualquer. Perdoa-me, se puderes.

Em cada trinta uruguaios, um tem como função vigiar, perseguir e castigar os restantes. Não há trabalho fora dos quartéis e das esquadras; e, em todo o caso, para conservar o emprego é imprescindível o certificado de fé democrática redigido pela polícia.

Exige-se aos estudantes que denunciem os seus colegas, exortam-se as crianças a denunciar os seus professores. Na Argentina, a televisão pergunta: «Sabe o que o seu filho está a fazer neste momento?»

Porque não figura na crónica policial o assassinato da alma por envenenamento?

(X)

A máquina acossa os jovens: prende-os, tortura-os, mata-os. Eles são a prova viva da sua impotência. Expulsa-os: vende-os, carne humana, braços baratos, para o estrangeiro.

A máquina, estéril, odeia tudo o que cresce e se move. Só é capaz de multiplicar as prisões e os cemitérios. Não consegue produzir outra coisa além de presos e de cadáveres, de polícias e de espiões, de mendigos e de desterrados.

Ser jovem é um delito. A realidade comete-o todos os dias, à alvorada; e a história também, que todas as manhãs nasce de novo.

Por isso a realidade e a história estão proibidas.

(XI)

A única coisa livre são os preços. Nas nossas terras, Adam Smith precisa de Mussolini. Liberdade de investimento, liberdade de preços, liberdade de câmbio: quanto mais livres andam os negócios, mais presas estão as pessoas. A prosperidade de poucos amaldiçoa todos os outros. Quem conhece uma riqueza que seja inocente? Em tempos de crise, não se tornam conservadores os liberais, e fascistas os conservadores? Ao serviço de quem cumprem a sua tarefa os assassinos de pessoas e de países?

Orlando Letelier escreveu em The Nation que a economia não é neutra, os técnicos tão-pouco. Duas semanas depois, Letelier voou em pedaços numa rua de Washington. As teorias de Milton Friedman trouxeram-lhe o Prémio Nobel; aos chilenos, trouxeram Pinochet.

Um ministro da Economia declarava no Uruguai:

«A desigualdade na distribuição dos rendimentos é o que gera a poupança.» Ao mesmo tempo, confessava que a tortura o horrorizava. Como manter essa desigualdade se não for a golpes de espigão eléctrico? A direita ama as ideias gerais. Ao generalizar, absolve.

(“Dias e Noites de Amor e de Guerra”, Eduardo Galeano. Antígona, 2019.)

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