Escrito em final de 2012, em tempo de austeridade imposta a martelo pelo governo PSD/CDS, quando todos os atropelos à Constituição da República eram perpetrados, segundo diziam, a bem da recuperação do “país” já que tínhamos vivido “acima das nossas posses”. A intenção era clara na altura: rever o texto fundamental; o que não foi necessário porque mostrou-se suficientemente eleático. Talvez o mesmo já não aconteça actualmente na medida em que a direita se encontra representada no Parlamento em larga maioria. Instituir a democracia musculada ou o fascismo brando poderá ser o passo seguinte por parte dos partidos da oligarquia.
Houve alguém que disse que “parece estar na
moda dizer-se que a Constituição dá uma certa margem para se alterar os
direitos fundamentais em Portugal” – isto a respeito da afirmação do
primeiro-ministro quanto à possibilidade de levar as famílias dos trabalhadores
a pagar as propinas dos seus filhos no ensino obrigatório público, que, na
Constituição, é ainda considerado universal, gratuito e obrigatório. Só que a
afirmação que estamos a citar parte já de um ponto errado, é que o ensino nem é
gratuito, nem é universal, e pouco obrigatório: pelo pagamento de todas as
despesas por parte das famílias, com a única excepção que são as propinas (cuja
hipótese de pagamento se atirou para o ar a ver a reacção do povoléu), e pelas
taxas de insucesso e de abandono, que são das mais elevadas da União Europeia. O
direito à educação e ao ensino (estabelecido pelos artigos 73º e 74º da
Constituição da República) não passa de uma falácia.
Assim como tantos outros direitos, que podemos
citar: o direito à liberdade e segurança, à reunião e manifestação, à expressão
e informação, à habitação, etc., e não precisamos de mais, para se ver
facilmente que o que está na documento fundamental da República são palavras, e
palavras ocas que pouco ou nada têm a ver com a realidade. A hipocrisia desta
Constituição, que partidos de esquerda defendem com todo o denodo como se para
além dela houvesse apenas o caos ou o fascismo, é a falsidade de uma classe
exploradora que se encontra no poder e é a negação de uma realidade que só o
povo que trabalha bem conhece: desemprego, repressão, fome e miséria. Para que
a burguesia possa levar a avante a sua política contra o povo não será
necessário de todo torpedear a Constituição, se agora o faz é porque a pressa a
isso obriga – não há tempo para revisões formais.
É nesta perspectiva de não haver tempo a
perder que se deve entender os atropelos mais recentes à Constituição, e mais
do que atropelos são os ataques frontais, com a certeza de que o seu valor é
nulo e que para os autores do crime não haverá castigo. Com um Parlamento
completamente dominado, que não liga peva ao documento fundamental e aos
direitos nele consagrados, estamos perante uma governação em ditadura, como
sucedeu nos últimos anos da Monarquia, com a ditadura de João Franco que
governou por decreto. Vendo bem, não se torna necessário fechar o Parlamento
nem rever a Constituição, as medidas vão se tomando e os partidos da oposição
são, utilizando expressão já famosa, mansos; não apelam à sublevação das
massas, ficam-se pelas lamentações de impotentes.
Foi necessário reprimir forte e feio, como se
viu durante a manifestação no dia da greve geral última, como vingançazinha de
não se ter podido proibir a greve e pela ousadia dos manifestantes. Contudo, já
alguém respeitável da insuspeita CIP veio pedir (ou mandar o governo fazer)
publicamente a alteração da Lei da Greve, a pretexto dos prejuízos provocados
pela greve persistente e corajosa dos estivadores – há direito à greve mas só
na justa medida de não prejudicar os patrões – não deixando de frisar que a
Constituição dá margem para (mais) uma alteração legislativa.
A Constituição é tão boa, para os
trabalhadores portugueses, que dá margem para tudo, ou quase tudo, que lhes
possa diminuir os direitos; todos os direitos, com excepção do direito a ser
explorados pelos patrões. É, como alguém disse em tempo não muito remoto, a
constituição mais progressista do mundo. Outra prova do seu progressismo pode
ser o direito à habitação (artigo 65º) materializado na realidade de existir em
Portugal, segundo o último censo, mais de 450 mil casas sobrelotadas, onde o
espaço é insuficiente para o número de pessoas que lá vive, o que significa que
há outras tantas famílias sem casa. No entanto, há 2,5 milhões de casas não
aproveitadas (das quais 735 mil completamente vazias), no interesse da
especulação imobiliária.
A dita “bolha imobiliária” está na origem do
desencadear da actual crise (não exactamente a causa, esta encontra-se na
própria essência do capitalismo), e que dá bem a ideia em que base assentou o
crescimento económico após o 25 de Abril. Uma das medidas mais eficazes, não
única (uma outra será acabar com a urbanização feita pelos privados), para
resolver o problema da habitação em Portugal é bem simples: o Estado toma conta
das casas (posse administrativa ou expropriação conforme os casos) e coloca-as
no mercado do arrendamento; nem será preciso controlar o preço das rendas
porque o próprio mercado, devido ao excesso de oferta, se encarregará de o
fazer, bem como da venda, acabando ou limitando, pelo menos, a especulação no
imobiliário. Como se pode constatar vai uma distância enorme entre o que diz a
Constituição e a realidade.
E continuamos a roubar afirmações e ideias
alheias. Alguém disse que estamos perante um golpe de estado – constitucional,
presume-se, porque ainda não se viu a tropa na rua. Por enquanto só a polícia,
que teve uma acção excessiva e desproporcionada (os adjectivos também não são
nossos) contrariando os limites constitucionais, segundo douta opinião de juiz
conselheiro; acção que não tem a cobertura da lei de segurança interna, ou
seja, ilegítima e ilegal. Posteriormente, a recolha por parte de agentes da PSP,
pertencentes a um organismo “clandestino” desta força policial, de imagens não
editadas na RTP, configura um caso, já denominado de “Caso Brutosgate”, sem
nenhuma cobertura legal e não procedido de autorização das autoridades
judiciais competentes, sendo assim ilegal. Não chegando o SIS e outros serviços
de espionagem e de repressão, reestruturados e centralizados pelo governo
“socialista” de Sócrates, criam-se serviços secretos dentro das polícias já
existentes e outros do género “gabinete” para monitorização da blogosfera, mais
outra PIDE. Como se vê, os direitos e garantias individuais, consagrados na
Constituição, estão bem garantidos!
Ora, devemos procurar as causas do aumento da
repressão e dos atropelos aos direitos dos cidadãos; e, como qualquer cidadão
pode facilmente constatar, devem-se não ao facto de o governo e as suas forças
policiais desconhecerem a Constituição, como também alguém afirmou, mas por
necessidade de intimidar o povo, conter a revolta, para que esta política de
austeridade, sem freio e sem fim, possa ser colocada em prática. E quanto maior
for a contestação às medidas já aplicadas e a não aceitação das que se
preparam, maior será a sanha repressiva. E chegando a este ponto, os
trabalhadores portugueses deverão também mandar a Constituição mais
progressista do mundo às malvas e, indo um pouco mais além, fazer o
que o proletariado de Paris fez em 1871.
11 de Dezembro 2012




