sexta-feira, 11 de setembro de 2020

A hipocrisia das nossas elites ou como o pote não chega para todos

 

Ren Hang (1987-2017)

A dita silly season deste ano foi, ao contrário das anteriores, um pouco movimentada, não apenas pelo facto da epidemia da covid-19, que tem servido de excelente pretexto para a recapitalização com fundos públicos das empresas privadas, na sua maioria à beira da falência, e imputar a factura mais uma vez aos trabalhadores, mas pelos inúmeros e variadíssimos factos políticos. A lista não será exaustiva, é feita de cor, sem ordem cronológica e à medida que nos vamos lembrando: Marcelo é confrontado por uma popular que lhe diz se quer trocar a situação com ela para ver a dificuldade que é viver com 300 euros por mês, como resposta, o homem primeiro embatucou para depois retorquir com “para a próxima, vote noutra... (formação partidária)!”; Costa avisou a Ordem dos Médicos que não lhe cabe fazer auditorias, para depois reunir com o bastonário e, mais tarde, ouvir da parte deste a acusação de não ser fiel no relato do que se passou na reunião; a Igreja Católica (ICAR) ameaça os cerca de 300 trabalhadores do Santuário de Fátima com o despedimento de uma boa parte deles, quando o papa Francisco não se cansa de dizer que “o despedimento de trabalhadores não é a solução para salvar as empresas das dificuldades”; ficou-se a saber que o défice público (acumulado) até Julho saltou para os 1800%, ou seja, 8332 milhões de euros, enquanto que o Estado gastou 500 milhões de euros com as PPP no primeiro trimestre do ano (+5% em relação ao mesmo período do anos passado) e que dos 12.444,4 milhões de euros destinados ao SNS, em 2018, 41% foram para entidades privadas; Costa ameaçou com uma crise política se o Orçamento de Estado para 2021 não for aprovado (pelos partidos da esquerda colaborante, já que reafirmou que coligação com o PSD é liminarmente impossível); Marcelo avisou que para crises não contem com ele, atendendo a que o prazo para dissolver a Assembleia da República e convocar novas eleições é apertado; a Festa do Avante tem aberto noticiários e feito correr rios de tinta no que toca à legitimidade da sua realização em tempo pandémico; Costa decretou o “estado de contingência” a partir do dia 15 de Setembro; o Partido Pró-Vida vai fundir-se com o Chega. E o rol vai longo, porque mais haveria a elencar.

São mesmo muitas coisas a acontecer num mês de Agosto, bastante quente e geralmente mais propício para férias em algum lugar fresco, de preferência à beira-mar na companhia de umas bebidas bem geladas, e não para esta balbúrdia, que mais não é que o espelho do desentendimento entre as diversas facções que sempre se digladiam quando se trata de assaltar o pote dos dinheiros públicos. As diversas cliques políticas vão-se reagrupando e definir estratégias para, mais uma vez, enganar o povo, sempre com o juramento de melhor servir os amos, que são sempre os “donos disto tudo”, por ordem: Bruxelas, leia-se Alemanha e o grande capital financeiro europeu (para coisas simples, exemplo, recapitalização da TAP e redução do IVA da electricidade para as famílias mais pobres, houve que obter o aval de Bruxelas), e burguesia nacional, e diversas facções da dita, e demais clientelas políticas dos concursos públicos feitos à medida e ajustes directos e aquisição dos mais variados serviços a privados, onde sobressai a saúde, que o estado até tem meios e saber mais que suficientes para os realizar. A parasitária e rentista burguesia doméstica não se cansa em movimentar-se quer através das reuniões da Concertação Social, que tem funcionado em substituição do Parlamento e como ela fosse um órgão de soberania, quer por pressões pessoais sobre o governo, quer por artigos de opinião em toda a imprensa do regime, e não somente na imprensa abertamente de direita, como seja o “Observador”, onde exige a redução de impostos, acusando a dita “esquerda” de preconceito ideológico e de inveja, não conseguindo disfarçar, com estes argumentos descabelados, a ganância, a falta de escrúpulos e a pressa de que o mundo (dela, o capitalismo) venha a acabar dentro em breve.

É dentro deste contexto de forte crise económica, que apenas se exacerbou com a pandemia do SARS-CoV-02, um vírus que não difere muito dos outros e cujo grau de letalidade é bastante baixo pelos números apresentados até agora em Portugal, cerca de 1800 mortes (pouco mais de metade das mortes por influenza ocorridas no ano passado, ou menos de um quarto das infecções respiratórias bacterianas, no mesmo período), das quais cerca de 90% foram de pessoas com mais de 70 anos e sofrendo muito provavelmente de outras comorbilidades. Não deixa de ser escandaloso o facto em si e o desprezo a que foram votados os nossos idosos, pelo governo PS e pela tão benemérita ICAR, esta sempre tão agarrada ao dinheiro, que não hesitaram, e não parece terem remorsos, em deixar que pelo menos 40% deles morressem, comprovadamente, mais por falta de cuidados médicos, de enfermagem e outros, e não pela acção directa da virose. O mesmo se passa com o facto de mais de 20% das famílias trabalhadoras deste país viverem abaixo do limiar da pobreza, que muitos portugueses terão de se governar em média com 300 euros por mês, ou seja, recebem como resposta o desprezo de gente que vive, e jamais deixou de viver, com a barriga cheia.

O que esperar de um político, que nunca deixou de estar em campanha eleitoral permanente, oriundo de uma das famílias mais importantes da oligarquia fascista e cujos rendimentos declarados anualmente estiveram sempre acima dos 300 mil euros? Compreensão, disponibilidade para apontar soluções para a pobreza que grassa, e irá grassar ainda mais nos próximos tempos, no seio do povo português? Puro engano. Marcelo, o rei/presidente, que disfarçadamente e com alguma habilidade vai jogando com a ambivalência apoio/ataque ao governo, tentando receber sempre os dividendos da sua táctica dúplice, um bom exemplo da sua personalidade histriónica e maldosa, irá mostrar quem é na verdade e ao que anda no próximo mandato que, à partida, está mais do que garantido. Em Portugal, fruto de nunca se ter realizado a revolução industrial e da filistina educação judaico-cristã, existe uma ainda numerosa pequena-burguesia que gosta de ser enganada e se dispõe a apoiar qualquer projecto bonapartista, desde que lhe pareça oferecer alguma garantia de segurança, para mais num futuro conturbado e incerto como o actual. Será esta gente que irá votar maioritariamente em Marcelo e dar alguma esperança à extrema-direita que a imprensa de referência não se cansa de promover e dourar. E Marcelo mais o governo e os partidos da direita oposicionista também não se cansam na intriga, na mentira e na hipocrisia.

Ataca-se a festa do Avante mais por ser uma festa de um partido que se diz comunista e que parece não aceitar a nova situação provocada pela pandemia, embora esteja farto de mostrar que está com o regime e em muitas situações tem sido mais papista que o papa, e por oferecer uma excelente oportunidade para se atacar o governo geringonço, abrir assim uma brecha entre o PS e um dos parceiros da coligação. Atentar contra a liberdade de expressão e de manifestação, ou a proibição de uma actividade política constituir em si uma ilegalidade perante a Constituição da República, é coisa que pouco incomoda os promotores da campanha para o boicote do evento e descredibilização do partido que o promove, não querendo saber que tais ataques o são também contra este regime de democracia que, embora de opereta, ainda assim é um regime democrático, comparado com o fascismo mesmo mais brando oferecido pelos partidos de direita governativa, que, pela prática, fazem inveja a um Chega. A mesma hipocrisia e o mesmo ataque se manifestam na questão agora levantada sobre a obrigatoriedade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento: os que a instituíram quando eram governo, contestam-na enquanto oposição ao governo, e utilizam no ataque os preconceitos e até a ignorância de uma certa pequena burguesia que se insurge perante uma alegada intromissão da laicidade do estado, mas que está disponível para a beatice e a intransigência religiosa de uma religião velha e relha no obscurantismo, na ganância e na intolerância, em suma, mestre experiente na hipocrisia e no farisaísmo.

Esta hipocrisia quanto à justificação dos diversos estados de excepção que o governo tem aplicado ao povo português, ou a variação gradativa do mesmo estado para o confinamento, é renovada com o decretar do estado de contingência a vigorar a partir do próximo dia 15, com o pretexto do início das aulas, ao mesmo tempo que negligencia as regras para evitar o possível contágio não só entre os estudantes, mas de igual modo entre professores e outros funcionários das escolas. As regras ou não existem ou são contraditórias, revelando apenas e uma só realidade: o desprezo por parte do governo e das elites que representa em relação a quem frequenta e trabalha na escola pública. Olhando com olhos de ver, toda a política dos governos PS, bem como dos do PSD com e sem CDS, é e tem sido a de degradar tudo o que seja público e/ou possa entrar em concorrência com o privado, sempre na lógica de transferir a máxima riqueza dos trabalhadores para a burguesia; fluxo que os partidos ditos de esquerda, PCP e BE, nunca conseguiram ou quiseram interromper.

O estado de contingência é a continuação do medo que as elites sentem perante um povo que poderá, e quando menos se esperar, revoltar-se e quebrar de vez com as grilhetas que o prendem. Os diversos estados de excepção são uma arma utilizada para conter e reprimir o povo, alegando razões humanitárias, razões que nunca são respeitadas na prática por quem não se cansa de as invocar, aliás, o que é bem demonstrado pelos inúmeros casos ocorridos nestes tempos de pandemia. Não nos cansaremos de denunciar a hipocrisia de quem nos (des)governa e de apelar à resistência e ao repúdio por parte do trabalhadores e do povo português de todas medidas que nos querem enfiar pela goela abaixo e alertar para a necessidade de uma resposta revolucionária que acabe com este mundo de injustiça e de iniquidade - um novo mundo é possível porque necessário. O agitar da burguesia e a sua procura de respostas mais duras perante a crise são a contra-parte da intensificação da luta de classes, que inevitavelmente irá sofrer um incremento inaudito nos próximos tempos.

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