sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A pandemia combatida por dois cabos de esquadra

 

Nápoles, 1960 - Henri Cartier-Bresson

O homem não pára, lembrou-se da aplicação informática para controlar o cidadão, como a coisa falhou, para já, veio com o uso obrigatório da máscara no espaço público por um período de 70 dias revogáveis, a primeira das suas cinco medidas para prevenir a propagação do coronavírus, apesar de se comprovar que a medida por si só é inútil como se mostra pelo aumento incessante do número de infectados na Itália após quase um mês de ter sido imposta a sua obrigatoriedade; a seguir entendeu, e a pedido de vários autarcas locais, outros tantos caciques encartados, alargar o confinamento, que já existia em 3 concelhos do norte do país, a mais 118, abrangendo uma população de cerca de 7,1 milhões de pessoas, depois de ter imposto limitação de circulação de pessoas entre concelhos no período de 30 de Outubro a 3 de Novembro, sempre com a mesma alegação de impedir o alastramento da pandemia, que ameaça poder ir aos 7 ou 8 mil infectados por dia. Agora, para responder aos que criticam que estas medidas do governo são anti-constitucionais e atentatórias das liberdades, direitos e garantias do cidadão, foi conversar com o PR Marcelo para ser declarado o estado de emergência, no seu dizer, “um estado de emergência com natureza preventiva”. Em conversa de família (a entrevista dada na RTP foi mais um monólogo e uma entrevista feita pelo próprio ao jornalista, lembrando o seu saudoso padrinho), Marcelo corroborou que será um estado de emergência para “medidas não muito extensas”, porque a sociedade se encontra “fatigada da pandemia”. Rui Rio concorda com o novo estado de emergência, lamentando que "não possa ser como foi em Março", numa perspectiva de revisão da Constituição, com maioria de dois terços dos votos, porque ter de “ouvir” (como referem os jornais, o Parlamento já não decide) sempre a Assembleia da República para o estado de emergência ser decretado e depois renovado de 15 em 15 dias, é uma grandessíssima chatice!

Em conferência de imprensa, realizada no Palácio da Ajuda, para explicar as medidas restritivas a vigorar a partir de 4 de Novembro, abrangendo quase três quartos da população portuguesa, e que poderão ser rapidamente alargadas a toda a população caso o número de infectados dispare, saliente-se que é número de infectados e não de doentes embora se continue a falar de covid-19 (doença), bastando para isso aumentar o número de testes diários, ouviu-se a provocação de que “se os portugueses estão cansados, imaginem os profissionais de saúde!”. Ficamos a saber que estes profissionais estão cansados porque os portugueses gostam de se infectar e recorrer aos hospitais, inundando enfermarias e unidades de cuidados intensivos. Ficamos também esclarecidos que a maior parte dos contágios acontece não nos transportes públicos apinhados, nas fábricas e empresas sem condições mínimas de trabalho, mas no seio das famílias, daí se pensar em confinamento mais apertado na primeira quinzena de Dezembro para se tentar “salvar o Natal”. Ou como se quer virar trabalhadores da saúde contra o povo, desviando-os do alvo verdadeiro que é o governo e destruir-se a própria família, levando ao isolamento do cidadão para o melhor amedrontar e submeter aos ditames e medidas económicas de austeridade a dobrar. Ao invés do propagandeado, o dever cívico dos portugueses é ajudar os profissionais de saúde a lutar por melhores condições de trabalho, salários dignos e carreiras profissionais que permitam maior desenvolvimento profissional e pessoal. A fadiga de que esta gente fala é a fadiga não da pandemia, mas das medidas desajustadas, que o governo em colaboração com o PR e o ámen do Parlamento tem posto em prática, que poderão levar o povo à revolta.

Antes das provocações do cabo de esquadra que lidera o governo lançadas sobre o povo português e os trabalhadores da saúde, já outro cabo de esquadra, especialista do cacete, e nomeado pelo primeiro para função específica de pôr os portugueses recalcitrantes na devida ordem, já avisara: "(os portugueses) vão ter que cumprir as regras quer queiram quer não". O cabo de esquadra com farda não esteve com modas, esclarecendo que "vivemos uma situação excepcional e em situações excepcionais não se resolvem [as coisas] fazendo como se fazia em situações normais, exigem-se situações excepcionais", ou seja, o cacete está pronto a ser usado, à boa maneira fascista, não importando que as medidas decretadas pelo governo até agora são frontalmente anti-constitucionais, coisa que não interessa de todo ao cabo de esquadra fardado às ordens de outro cabo de esquadra sem farda, sem vergonha e sem escrúpulos. E, para que ninguém ficasse com dúvidas, acabou de esclarecer, em conferência de imprensa como de político se tratasse: "a acção repressiva acontece quando as pessoas não querem nem se deixam sensibilizar... mas há cidadãos que não se deixam ensinar e sensibilizar". Ficamos, com certeza, bem elucidados, as pandemias combatem-se não com planos sanitários, mas com medidas repressivas, para enquanto policiais, mas não demorará muito que a tropa, à semelhança do que acaba de fazer o presidente francês Macron, será colocada na rua. É mais do que evidente que o real e verdadeiro alvo destas medidas não é o combate à covid-19 mas o combate aos trabalhadores e ao povo português - a luta de classes sem disfarces.

A política levada a cabo pelo governo não é exactamente para combater a pandemia da doença covid-19, e esta não é nenhuma teoria da conspiração porque se baseia em factos indesmentíveis e por isso ocultados pela imprensa paga com 15 milhões de euros, mas para permitir uma maior acumulação de capital, o que vai inevitavelmente conduzir à destruição das pequenas formas de economia, sempre com o fim último de maiores lucros para as grandes empresas capitalistas. Não é por acaso que o governo português quis proibir os mercados e feiras ao ar livre ao mesmo tempo que deixava abertos as grandes superfícies de retalho, e foi por pressão popular e do populismo do PR em tempo de campanha eleitoral que fez marcha atrás, ou o governo francês ter proibido a abertura das pequenas livrarias enquanto deixava abertas as grandes loja do sector, como por exemplo a FNAC. Há que facilitar a acumulação dos lucros, sempre a favor do grande capital, e para mais em tempo de crise profunda e prolongada do capitalismo e de reorganização do mesmo. Pelo lado da saúde dos portugueses, esta vem sempre em último lugar, porque se houvesse tão grande preocupação então não se teria deixado degradar e de forma deliberada o SNS. Neste Verão, houve tempo não só para contratar mais pessoal com vínculo efectivo como se tinha aumentado o número de camas, coisa fácil de se fazer visto que nos hospitais centrais há muitas camas vazias e serviços ao abandono, assim como hospitais fechados ou a funcionar a meio gás. Só em Coimbra haverá perto de 500 camas vagas, com pavilhões inteiros fechados no Bloco de Celas e Hospital de Sobral Cid, e enfermarias subaproveitas no Bloco Central, no Hospital dos Covões e Maternidade Bissaya Barreto, isto só no CHUC, ou o Hospital Militar semidesactivado e as antigas instalações do Hospital Pediátrico, ainda com material, tudo ao abandono e à espera da especulação imobiliária, tão da especialidade da câmara socialista e do autarca que mais tem promovido a corrupção e o caos urbanístico em Coimbra.

Se o governo se interessasse minimamente pela saúde do povo português não teria deixado morrer mais 7.525 pessoas por outras patologias que o SNS não tratou por estar centrado quase exclusivamente na covid-19 e não apenas as 2500 falecidas por esta doença, desde 15 de Março até finais de Outubro – uma das piores situações da UE, incluindo países que inicialmente registaram mais mortes no início da pandemia. O governo, embora diga o contrário e é até uma outra medida para justificar o estado de emergência, não pretende requisitar os privados da saúde, mas contratar os seus serviços, para já em termos discretos e graduais, como está a acontecer no norte do país com a ARSN a fazer contratos, cujos contornos são pouco claros e conhecidos, justificando-se com o esgotamento da capacidade de hospitais que em tempo normal sempre estiveram no limite. Para se perguntar, mais uma vez, em que hospitais privados trabalham, acumulando com o público, os responsáveis que fizeram os contratos e que comissões que receberam por debaixo da mesa?

Perante a azáfama de medidas limitadoras das liberdades dos cidadãos e da difusão do medo, assistimos a uma situação que não deixa de ser caricata e irónica: enquanto os partidos ditos de “esquerda” com assento parlamentar defendem, de uma maneira ou outra, estas medidas, colaborando activamente com o governo, os partidos de extrema-direita e de defesa clara e intransigente dos interesses do grande capital e da burguesia mais retrógrada nacional, arvoram-se em defensores dos direitos e das liberdades. Não deixa também de ser curioso assistir a uma ICAR, no que concerne à questão da eutanásia, criticar a casa da democracia por ter chumbado a realização do referendo, querendo assim colocar-se, de igual modo como a extrema-direita, no campo da defesa das liberdades e da democracia, enquanto os deputados, e agora com especial incidência para os que se dizem “comunistas”, são contra o franco e livre debate de ideias no seio da sociedade. E mais ainda, quem ousa contestar as medidas autoritárias do governo é estigmatizado e taxado de “negacionista”, defensor das “teorias da conspiração”, ou seja, os tais que não se deixam ensinar pela polícia, como aponta o cabo de esquadra com farda, ou até de fazerem o jogo da extrema-direita ou de serem mesmo “nazis”, quando surgem as manifestações de rua em Espanha, aqui tão perigosamente perto, em França, na Alemanha ou na Itália, onde estão mobilizados sindicatos e uma grande camada das massas operárias contra o governo. É o mundo às avessas. A confusão, a manipulação e a demagogia promovidas pelo governo não escondem a incapacidade e o medo da nossa burguesia e dos cabos de esquadra de serviço, é que o estado de emergência, que irá ser brevemente instaurado, não poderá ser muito severo não porque a economia não aguenta mas... porque o povo se pode impacientar e revoltar-se. O PS, o tradicional bombeiro da contestação social, um dia destes se esgotará, talvez primeiro que o SNS.

A dita pandemia, que até agora levou desta para melhor cerca de 2.500 cidadãos, na sua grande maioria com mais de 80 anos, nada parecido com a pneumónica de há cem anos que levou cerca de 120 mil pessoas numa população de perto de 6 milhões de habitantes, e que incidiu particularmente em crianças com menos de 2 anos e em jovens entre os 20 e 30 anos, não está a ser combatida com um plano sanitário, mas com medidas de tipo militar para confinamento de toda a população. Em vez de se testar os grupos de risco, está-se a testar a população a eito para inflacionar o número de infectados, que na maioria poderão ser falsos positivos, apesar do número de sintomáticos (os verdadeiramente doentes) ser baixo e com bom diagnóstico, fazendo crer que todos são doentes, confundindo intencionalmente infectados assintomáticos (não doentes) como sendo doentes, coisa jamais vista em outras doenças infecto-contagiosas e nomeadamente viroses. Em vez de se proteger os grupos de risco, concretamente os mais idosos, criando o Estado uma rede nacional e pública de lares, acabando com o negócio dos privados e principalmente com os lares ilegais, estabelecendo regras de habitabilidade e de higiene condignas (condições essas que foram agravadas pelo governo de Passos/Portas devido à autorização do aumento da lotação dos lares, o que valeu uma medalha ao Passos pelas Misericórdias agradecidas pelo fomento do negócio, medida que não foi revertida pelo actual governo do PS), obrigando a programas saudáveis no que respeita à alimentação e actividades ocupacionais e, aqui está o busílis, com rácios adequados de pessoal auxiliar devidamente formado, de enfermeiros a tempo inteiro e de médicos. Para além, como já referido, de robustecer o SNS, com mais pessoal, mais equipamento, mais serviços e reactivação das mais de 3 mil camas que foram encerradas nos últimos 12 anos. Ora, até agora nada disto foi feito, bem pelo contrário, entregou-se a gestão da crise pandémica a dois cabos de esquadra, um com farda, o outro (ainda) desfardado.

A norma daqui para à frente será o estado de emergência, por enquanto “suave” mas que rapidamente se eternizará e se tornará mais violento, será a nova normalidade: em Espanha vigorará até Maio de 2021, em França nos últimos anos tem sido mais o tempo com estado de excepção do que sem ele, vindo da presidência Sarkozy. Em função da grave crise económica sem remissão à vista, mas justificada pela crise pandémica da covid-19, o estado de excepção significa a degenerescência irreversível da democracia burguesa, que já não tem retorno, e cujo resultado será a guerra, ou entre facções das elites que se digladiam ou a revolução comunista, que poderá ser a forma de conjurar a guerra contrarrevolucionária ou uma consequência, nesta hipótese será sempre com maiores custos e sacrifícios para as massas proletárias e populares. Como refere o filósofo Giorgio Agamben, o final será sempre a guerra.

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