terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Ano novo, vida velha e política de cabo de esquadra

 

O ano termina com diversos assuntos na ordem do dia, ocorridos apenas nos últimos oitos dias, e que ilustram bem o estado do país e o que os cidadãos comuns podem esperar para o novo ano que agora se inicia:

um secretário-geral que iria ganhar 15 mil euros por mês, depois da lei ter sido alterada para esse específico fim e pessoa, depois da polémica, o indigitado recua; sabe-se que em Portugal existem 50 fortunas acima dos 300 milhões de euros, em contra-partida, o número de sem-abrigo em Portugal continental subiu para mais de 13 mil; a rendibilidade dos bancos portugueses sobre para 16,1%, mas mais de 8 mil pessoas podem ficar sem trabalho em 2024 por despedimento colectivo;

89% das autorizações de residência para estrangeiros (ricos) foi para vistos gold, no entanto, o superintendente do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP afirma que o ambiente operacional mudou porque a comunidade migrante (pobre) cria desafios à polícia; os motins nos bairros, em consequência do assassínio de Odair Moniz, são considerados pelo jornal “Expresso” o acontecimento do ano, indiciando que a elite teme a revolta popular;

Plano de Emergência SNS, governo falha 60% das medidas, apenas 9 das 24 medidas prioritárias (a implementar até final de 2024) estão no terreno e a produzir resultados, frisa-se, segundo o governo; caos na saúde, há quem espere 18 horas para ser atendido nas urgências e a "a ministra da Saúde despreza o SNS": Observatório de Violência Obstétrica contra novo modelo de urgências de ginecologia; o líder da Generali Tranquilidade afirma que a Saúde pode vir a tornar-se a área mais importante para as seguradoras em cinco anos;

o arcebispo de Évora, na sua cruzada, agradece resistência ucraniana ao comunismo ateu; Costa condena a destruição deliberada no Báltico e promete combate à frota fantasma russa; Marcelo satisfeito por ter tido um primeiro-ministro mais de oito anos diz esperar que “o actual dure até ao fim do seu mandato”;

Gouveia e Melo denuncia tentativa de se politizar o processo disciplinar, após o Tribunal anular os processos sobre os marinheiros que recusaram embarcar do NRP Mondego, mas abandona a Marinha e prepara a sua candidatura a Belém depois de usar o cargo para promoção pessoal.

Portugal “farol de estabilidade”

Nos últimos dias, o tema mais falado e usado no combate político entre os diversos partidos do establishment foi indubitavelmente a operação policial no bairro multi-étnico de Martim Moniz em Lisboa. O primeiro-ministro foi e continua a ser acusado de assumir a agenda do partido da extrema-direita quanto às questões da segurança, ou da percepção que alguma parte da sociedade tem deste tema, e da imigração de tez mais escura, porque quanto à outra de tez mais clara, de olhos azuis ou com a carteira bem recheada, casos dos vistos gold, a polémica já não se coloca.

O PM depois de declarar que a segurança não é de esquerda nem de direita e que "Portugal é hoje um farol de estabilidade política, social e financeira", tem a suprema lábia de vir afirmar que também ficou incomodado com as cenas de dezenas de cidadãos encostados à parede e que não associa a criminalidade à imigração. Para além da hipocrisia, a cobardia será outra das suas inúmeras e ainda ocultas qualidades como político. A ideia de eleições antecipadas na segunda metade do ano que vem parece que não lhe sai da cabeça e há que conquistar votos à direita.

Claro que a acção da PSP no Martim Moniz não revela indícios de qualquer ilegalidade e que há serviços de fiscalização do estado para avaliar operação em causa, mesmo que não houvesse, o governo não teria qualquer engulho em alterar a lei com acabou de fazer para permitir que o secretário-geral do governo possa receber de vencimento o dobro do que aufere o Presidente da República, o mais elevado magistrado da Nação, e que estabelece o limiar máximo para vencimento em cargos da República Portuguesa. A lei é elástica, a chatice é a AD não ter maioria absoluta no Parlamento, porque ainda seria mais elástica, a oposição vai anular o decreto governamental que permite tal desmando, a ver vamos.

O governo queria, ainda por cima, que fosse o Banco de Portugal a continuar a arcar o encargo de um montante superior aos 15 mil euros mensais, já que o figurão era funcionário da instituição e não poderia ser prejudicado. Não deixa de ser irónico que tal abencerragem, um tal de Rosalino, foi quem deu a cara pela austeridade imposta pela troika e achava que os cortes nas pensões, reformas e vencimentos deveriam ser feitos a partir dos 600 euros e de forma permanente. Menos estado, mas para os outros. A relação do governo AD com o banco central, que é uma sucursal do BCE, não parece estar lá grande coisa. Marcelo que diz que o Centeno é um forreta quando este veio avisar que para o ano as contas públicas entrarão no negativo, já não haverá excedente.

Economia em estado calamitoso

A economia nacional está de rastos e o ano de 2025 não vai ser nada bom, é de esperar que as causas sejam atribuídas a forças externas globais, mas os factos cá dentro não enganam. Se mais de 8 mil pessoas podem ficar sem trabalho em 2024 por despedimento colectivo, o que não será em 2025? Por exemplo, a empresa Simoldes apresentou perdas de 100 milhões e admite despedimentos, assim estarão as restantes, nomeadamente nos sectores automóvel e têxtil onde se concentra a maioria dos despedimentos colectivos. Na Coindu foram 350 trabalhadores, uma das últimas a fechar, e no final do ano serão contabilizadas mais de trezentas empresas a despedir.

É a lógica do excesso de produção para a capacidade de absorção do mercado, uma das contradições do capitalismo. A produção industrial em Portugal diminuiu 3,2% em 2023, e no ano que agora finda continua a encolher; não só no país como em toda a zona euro e União Europeia. A “locomotiva” pifou de vez, a Alemanha não sabe como sair da crise em que se encontra enredada, e leva todos por arrasto. Se vendem menos, as empresas tenderão a vender mais caro, a inflação ultrapassará em muito os números oficiais, mas como os salários não acompanham a inflação, então, o poder de compra de quem trabalha diminui, outra das contradições do capitalismo, e o mercado retrai-se. 2025 vai ser ano de aumentos generalizados, nomeadamente, dos alimentos.

Perante o desastre anunciado, o governo AD recorre ao mais do mesmo: recapitalizar as empresas à beira da falência, começando pelas maiores e/ou de capital estrangeiro. Diminuir o IRC, não ficará apenas pelo 1%, será mais, e já pensa em rever a TSU (Taxa Social Única), medida que contribuiu para a revolta popular que ditou o fim do governo de Passos Coelho/Portas e que, por sua vez, constitui um ataque brutal à sustentabilidade da Segurança Social, que o governo visa privatizar um dia destes.

Mais uma vez, os trabalhadores irão suportar a crise pela qual não são responsáveis e será bem pior que no tempo da troika. Já depois da saída do país dos défices orçamentais crónicos, o bom pretexto de financiar os bancos falidos, a austeridade manteve-se em tempo de governos PS/Costa por via do combate à pandemia, outra forma engenhosa de financiar a economia privada com dinheiros públicos: o Tribunal de Contas estimou em pelo menos 12.688 milhões de euros o impacto financeiro nas contas públicas das “medidas adoptadas para fazer face aos efeitos da pandemia em Portugal”.

As empresas já não vão em lay-off, mas em despedimentos pura e simplesmente, é mais seguro e porque não vêem alternativa em futuro próximo. Agora, será mesmo a doer, apesar de Montenegro dizer que Portugal “aprendeu mesmo” com “processo de recuperação doloroso”. Se as medidas anunciadas para 2025 são ainda brandas é porque, e já o dissemos várias vezes, o primeiro-ministro aposta em novas eleições legislativas para obter maioria absoluta, e Marcelo estará de acordo.

A crise de habitação chegou a ponto jamais visto. A variação dos preços da habitação em Portugal é mais do dobro da OCDE, paragona dos jornais, e, segundo estudo, Portugal tem uma das maiores crises habitacionais da Europa, Lisboa será a quarta cidade mais cara da Europa em 2024. E as medidas planeadas e algumas já aplicadas irão agravar ainda mais o problema para quem precisa de uma habitação, mas não para quem vive da especulação. A lei recentemente promulgada pelo PR de se poder construir em solos rústicos vai gerar mais-valias fabulosas para os bancos, fundos de investimento internacionais e algumas clientelas partidárias. Será o fartar vilanagem! Mais ainda, autarcas do PS, que se dizem d esquerda, procedem a despejos de famílias pobres, para regozijo da extrema-direita, usando os mesmos argumentos: “Leão diz que estão a ocorrer desocupações e não despejos em Santa Iria da Azoia”.

Falamos da habitação, está é das questões mais gritantes, como poderíamos falar da educação, da saúde e bem-estar, da segurança social, como da própria liberdade e garantias do cidadão, são direitos fundamentais, consagrados na Constituição da República, que não estão a ser respeitados. Ora, não foi para isto que se fez o 25 de Abril, ao que dizem, e estamos no cinquentenário da efeméride, coloca-se a interrogação: para que serve um regime que nega um direito elementar necessário à vida e ao bem-estar de um povo, entre outros, que é o direito à habitação? Decididamente, este regime está a dar as últimas e quando acabar não haverá nenhum trabalhador ou cidadão sério a lamentar-se pelo facto.

Anedonia social

É notório que o regime faliu na promoção social dos estratos economicamente mais débeis. O número de pobres aumentou, os sem-abrigo ultrapassa o número dos 13 mil; apenas 22% dos alunos que concluíram um curso profissional seguiram para o superior; um quarto dos estudantes sente mal-estar psicológico, com a perceção da qualidade de vida baixa a aumentar o stress e a ansiedade; e nos professores os números não são melhores, 52% sentem tristeza ou depressão.

Os casos de crimes dentro da família aumentam em número e gravidade. Casal detido por suspeita do homicídio de uma mulher de 98 anos, mãe do detido, que foi deixada à fome, amarrada a uma cama e com uma fratura antiga numa perna, em casa; ex-namorado vingativo manda matar mulher e paga 10.600 euros por encomenda mortal; inconformado com separação, homem ataca mulher com faca dentro de carro. As pessoas viram para dentro a ira em vez de a dirigir contra o establishment e os poderosos.

No país dos brandos costumes, mata-se por motivo fútil. Polícia Judiciária de Setúbal deteve um jovem estudante, de 18 anos e sem cadastro criminal, por ter matado, à pancada, um homem sem-abrigo, de 47 anos, que momentos antes lhe tinha furtado o telemóvel, num posto de combustível. Mas perante a justiça nem todos os crimes são iguais, e é branda quando se trata do desprotegido e vulnerável: MP pede absolvição e são libertados arguidos acusados de tráfico de imigrantes.

Na Saúde, o negócio e o lucro ditam as leis. Plano de Emergência para o SNS, o governo AD falha 60% das medidas; no entanto, o governo dá “via verde” aos privados para comprarem equipamento médico pesado, hospitais públicos queixam-se de “concorrência desleal”; criança encaminhada para urgência que estava fechada, Ministra da Saúde diz que foi aberta auditoria interna; tempo de espera nas urgências ultrapassa 12 horas na região de Lisboa e Vale do Tejo; INEM com operadores abaixo do mínimo em mais de metade do ano desde 2022; governo vai “retomar caminho” de transferir gestão de hospitais para Misericórdias; em 2025, governo recorre a privados para médicos de família e cirurgias; FNAM apela a escusas de responsabilidade massivas e decide prolongar greve às horas extra; "há famílias inteiras a precisar de ajuda para comprar medicamentos"; Eurico Castro Alves sai da comissão que avalia o plano de emergência da saúde, por conflito de interesses insanável (homem de mão para a privatização do SNS); aborto: no ano passado, mais de 40% das IVG feitas pelo privado foram encaminhadas por hospitais públicos; líder da Generali Tranquilidade: "Saúde pode vir a tornar-se a área mais importante para as seguradoras em cinco anos". No final, nós, portugueses, teremos um sistema de saúde igual ou pior ao dos Estados Unidos.

henricartoon

Em 2025, e ao longo de todo o ano, iremos ser massacrados pela corrida a Belém por vários candidatos a candidatos, com o almirante das vacinas ao colo de toda a imprensa mainstream, campanha que irá ofuscar as eleições autárquicas que irão ocorrer no último trimestre do ano e poderão servir a um teste para as legislativas que se preparam, embora todos os partidos digam que nelas não estão interessados, já que o país é o “farol da estabilidade política e social” que leva a que os investidores estrangeiros possam descansadamente aqui apostar. O plano é básico e linear: o governo AD de maioria absoluta (2025) e um militar caceteiro no Palácio de Belém (2026) a dizer esfola enquanto aquele mata. Ao contrário do que afirma o primeiro-ministro-cabo-de-esquadra, a segurança (da elite e do seu sistema de exploração do trabalho) é uma questão aberta e indisfarçavelmente de direita, a repressão é dirigida contra quem trabalha, seja gente de cá ou gente que vem de fora – todos fazem parte da mesma classe trabalhadora. A questão é uma questão de luta entre classes.

Vai ser assim o ano de 2025. E 2026 ainda será pior. Entretanto, dirão que a culpa é da guerra da Ucrânia e do Médio Oriente e de outros “factores externos globais”. Uma última nota: o plano poderá abortar por elementos "externos" à elite… a velha toupeira não deixará de fazer o seu trabalho.

Imagem de destaque: encontrada in facebook

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Como surgiu o fascismo

 

Por Chris Hedges

Por mais de duas décadas, eu e um punhado de outros —  Sheldon Wolin,  Noam Chomsky,  Chalmers Johnson,  Barbara Ehrenreich  e  Ralph Nader  — alertamos que a crescente desigualdade social e a erosão constante de nossas instituições democráticas, incluindo a  mídia, o Congresso,  o trabalho organizado,  a academia  e os  tribunais, levariam inevitavelmente a um estado autoritário ou fascista cristão. Meus livros — “American Fascists: The Christian Right and the War on America” (2007), “Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle” (2009), “Death of the Liberal Class” (2010), “Days of Destruction, Days of Revolt” (2012), escrito com Joe Sacco, “Wages of Rebellion” (2015) e “America: The Farewell Tour” (2018) foram uma sucessão de apelos apaixonados para levar a decadência a sério. Não tenho alegria em estar correto.

“A raiva dos abandonados pela economia, os medos e preocupações de uma classe média sitiada e insegura, e o isolamento entorpecente que vem com a perda da comunidade, seriam o combustível para um perigoso movimento de massa”, escrevi em “American Fascists” em 2007. “Se esses despossuídos não fossem reincorporados à sociedade dominante, se eventualmente perdessem toda a esperança de encontrar empregos bons e estáveis ​​e oportunidades para si e seus filhos em suma, a promessa de um futuro mais brilhante o espectro do fascismo americano assolaria a nação. Esse desespero, essa perda de esperança, essa negação de um futuro, levou os desesperados aos braços daqueles que prometiam milagres e sonhos de glória apocalíptica.”

O presidente eleito Donald Trump não anuncia o advento do fascismo. Ele anuncia o colapso do verniz que mascarava a corrupção dentro da classe dominante e sua pretensão de democracia. Ele é o sintoma, não a doença. A perda de normas democráticas básicas começou muito antes de Trump, o que abriu caminho para um totalitarismo americano.  Desindustrialização,  desregulamentação,  austeridade,  corporações predatórias descontroladas, incluindo a  indústria de assistência médica,  vigilância em massa de todos os americanos,  desigualdade social, um sistema eleitoral que é atormentado por  suborno legalizado,  guerras intermináveis ​​e fúteis, a  maior  população carcerária do mundo, mas acima de tudo  sentimentos de traição, estagnação e desespero, são uma mistura tóxica que culmina em um ódio incipiente à classe dominante e às instituições que eles deformaram para servir exclusivamente aos ricos e poderosos. Os democratas são  tão culpados  quanto os republicanos.

“Trump e seu grupo de bilionários, generais, idiotas, fascistas cristãos, criminosos, racistas e desviantes morais desempenham o papel do clã Snopes em alguns dos romances de William Faulkner”, escrevi em “America: The Farewell Tour”. “Os Snopes preencheram o vácuo de poder do Sul decadente e implacavelmente tomaram o controle das elites aristocráticas degeneradas e ex-escravistas. Flem Snopes e sua família extensa — que inclui um assassino, um pedófilo, um bígamo, um incendiário, um homem com deficiência mental que copula com uma vaca e um parente que vende ingressos para testemunhar a bestialidade — são representações fictícias da escória agora elevada ao mais alto nível do governo federal. Eles personificam a podridão moral desencadeada pelo capitalismo desenfreado.”

“A referência usual à 'amoralidade', embora precisa, não é suficientemente distintiva e por si só não nos permite colocá-los, como deveriam ser colocados, em um momento histórico”,  escreveu o crítico Irving Howe  sobre os Snopeses. “Talvez a coisa mais importante a ser dita é que eles são o que vem depois: as criaturas que emergem da devastação, com o lodo ainda em seus lábios.”

“Deixe um mundo entrar em colapso, no Sul ou na Rússia, e aparecem figuras de ambição grosseira abrindo caminho por baixo do fundo social, homens para quem as reivindicações morais não são tão absurdas quanto incompreensíveis, filhos de bushwhackers ou mujiques surgindo do nada e assumindo o poder por meio da pura extravagância de sua força monolítica”, escreveu Howe. “Eles se tornam presidentes de bancos locais e presidentes de comitês regionais do partido e, mais tarde, um pouco mais elegantes, eles forçam seu caminho para o Congresso ou o Politburo. Catadores sem inibição, eles não precisam acreditar no código oficial em ruínas de sua sociedade; eles precisam apenas aprender a imitar seus sons.” 

O filósofo político Sheldon Wolin chamou nosso sistema de governança de “totalitarismo invertido”, um que manteve a velha iconografia, símbolos e linguagem, mas entregou o poder a corporações e oligarcas. Agora, mudaremos para a forma mais reconhecível do totalitarismo, uma dominada por um demagogo e uma ideologia baseada na demonização do outro, hipermasculinidade e pensamento mágico.

O fascismo é sempre o filho bastardo de um  liberalismo falido.

“Vivemos em um sistema legal de dois níveis, onde pessoas pobres são assediadas, presas e encarceradas por infrações absurdas, como vender cigarros soltos — o que levou Eric Garner a ser estrangulado até a morte pela polícia de Nova York em 2014 — enquanto crimes de magnitude assustadora cometidos por oligarcas e corporações, de vazamentos de petróleo a fraudes bancárias de centenas de bilhões de dólares, que destruíram 40% da riqueza mundial, são tratados por meio de controles administrativos mornos, multas simbólicas e execução civil que dão a esses perpetradores ricos imunidade contra processos criminais”, escrevi em “America: The Farewell Tour”.

A ideologia utópica do  neoliberalismo  e do capitalismo global é uma grande farsa. A riqueza global, em vez de ser distribuída equitativamente, como os proponentes neoliberais prometiam, foi canalizada para cima, para as mãos de uma elite oligárquica e voraz, alimentando a pior  desigualdade econômica  desde  a era dos barões ladrões. Os trabalhadores pobres, cujos sindicatos e direitos foram retirados deles e cujos salários estagnaram  ou diminuíram  nos últimos 40 anos, foram lançados na pobreza crônica e no subemprego. Suas vidas, como Barbara Ehrenreich relatou em “ Nickel and Dimed ”, são uma emergência longa e estressante. A classe média está evaporando. Cidades que antes fabricavam produtos e ofereciam empregos em fábricas estão fechadas com tábuas - terrenos baldios. As prisões estão transbordando. As corporações orquestraram a destruição de barreiras comerciais, permitindo que elas  guardassem  US$ 1,42 trilhão em lucros em bancos estrangeiros para evitar o pagamento de impostos.

O neoliberalismo, apesar de sua promessa de construir e disseminar a democracia, rapidamente destruiu regulamentações e esvaziou sistemas democráticos para transformá-los em leviatãs corporativos. Os rótulos “liberal” e “conservador” não têm sentido na ordem neoliberal, evidenciado por um candidato presidencial democrata que  se gabou  de um endosso de Dick Cheney, um criminoso de guerra que deixou o cargo com uma  taxa de aprovação de 13%  . A atração de Trump é que, embora vil e bufão, ele zomba da falência da farsa política.

“A mentira permanente é a apoteose do totalitarismo”, escrevi em “America: The Farewell Tour”:

Não importa mais o que é verdade. Importa apenas o que é "correto". Os tribunais federais estão sendo lotados de juízes imbecis e incompetentes que servem à ideologia "correta" do corporativismo e aos rígidos costumes sociais da direita cristã. Eles desprezam a realidade, incluindo a ciência e o estado de direito. Eles buscam banir aqueles que vivem em um mundo baseado na realidade definido pela autonomia intelectual e moral. O governo totalitário sempre eleva o brutal e o estúpido. Esses idiotas reinantes não têm filosofia ou objetivos políticos genuínos. Eles usam clichês e slogans, a maioria dos quais são absurdos e contraditórios, para justificar sua ganância e desejo por poder. Isso é tão verdadeiro para a direita cristã quanto para os corporativistas que pregam o livre mercado e a globalização. A fusão dos corporativistas com a direita cristã é o casamento de Godzilla com Frankenstein.

As ilusões vendidas em nossas telas — incluindo a persona fictícia criada para Trump em The Apprentice — substituíram a realidade. A política é burlesca, como a campanha insípida e cheia de celebridades de Kamala Harris ilustrou. É fumaça e espelhos criados pelo exército de agentes, publicitários, departamentos de marketing, promotores, roteiristas, produtores de televisão e cinema, técnicos de vídeo, fotógrafos, guarda-costas, consultores de figurino, instrutores de fitness, pesquisadores, locutores públicos e novas personalidades da televisão. Somos uma cultura inundada de mentiras.

“O culto do eu domina nossa paisagem cultural”, escrevi em “Empire of Illusion”:

Este culto tem em si os traços clássicos dos psicopatas: charme superficial, grandiosidade e autoimportância; uma necessidade de estímulo constante, uma propensão para mentir, enganar e manipular, e a incapacidade de sentir remorso ou culpa. Esta é, claro, a ética promovida pelas corporações. É a ética do capitalismo desenfreado. É a crença equivocada de que estilo pessoal e avanço pessoal, confundidos com individualismo, são o mesmo que igualdade democrática. Na verdade, o estilo pessoal, definido pelas mercadorias que compramos ou consumimos, tornou-se uma compensação pela nossa perda de igualdade democrática. Temos o direito, no culto do eu, de obter o que desejamos. Podemos fazer qualquer coisa, até mesmo menosprezar e destruir aqueles ao nosso redor, incluindo nossos amigos, para ganhar dinheiro, ser felizes e nos tornar famosos. Uma vez que a fama e a riqueza são alcançadas, elas se tornam sua própria justificativa, sua própria moralidade. Como alguém chega lá é irrelevante. Uma vez que você chega lá, essas perguntas não são mais feitas.

Meu livro “Empire of Illusion” começa no Madison Square Garden em uma turnê da World Wrestling Entertainment. Eu entendi que a luta livre profissional era o modelo para nossa vida social e política, mas não sabia que ela produziria  um  presidente.

“As lutas são rituais estilizados”, escrevi, no que poderia ter sido uma descrição de um comício de Trump:

Elas são expressões públicas de dor e um desejo ardente por vingança. As sagas escabrosas e detalhadas por trás de cada luta, em vez das lutas em si, são o que levam as multidões ao frenesi. Essas batalhas ritualizadas dão aos que estão lotados nas arenas uma liberação temporária e inebriante das vidas mundanas. O fardo dos problemas reais é transformado em forragem para uma pantomima de alta energia.

Não vai melhorar. As ferramentas para calar a dissidência foram cimentadas no lugar. Nossa democracia entrou em colapso há anos. Estamos nas garras do que Søren Kierkegaard chamou de “doença mortal” — o entorpecimento da alma pelo desespero que leva à degradação moral e física. Tudo o que Trump precisa fazer para estabelecer um estado policial nu é apertar um botão. E ele vai apertar.

“Quanto pior a realidade se torna, menos uma população sitiada quer ouvir sobre ela”, escrevi na conclusão de “Empire of Illusion”, “e mais ela se distrai com pseudoeventos sórdidos de colapsos de celebridades, fofocas e trivialidades. Essas são as folias depravadas de uma civilização moribunda.”

Imagem: De dentro para fora – por Mr. Fish

Fonte

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

O Império do Consumo

Eduardo Galeano

A explosão do consumo no mundo actual faz mais barulho do que todas as guerras e mais algazarra do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco, aquele que bebe a conta, fica bêbado em dobro. A gandaia aturde e anuvia o olhar; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no tempo nem no espaço.

Mas a cultura de consumo faz muito barulho, assim como o tambor, porque está vazia; e na hora da verdade, quando o estrondo cessa e acaba a festa, o bêbado acorda, sozinho, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos quebrados que deve pagar. A expansão da demanda se choca com as fronteiras impostas pelo mesmo sistema que a gera. O sistema precisa de mercados cada vez mais abertos e mais amplos tanto quanto os pulmões precisam de ar e, ao mesmo tempo, requer que estejam no chão, como estão, os preços das matérias-primas e da força de trabalho humana. O sistema fala em nome de todos, dirige a todos suas imperiosas ordens de consumo, entre todos espalha a febre compradora; mas não tem jeito: para quase todo o mundo esta aventura começa e termina na telinha da TV. A maioria, que contrai dívidas para ter coisas, termina tendo apenas dívidas para pagar, suas dívidas que geram novas dívidas, e acaba consumindo fantasias que, às vezes, materializa cometendo delitos. O direito ao desperdício, privilégio de poucos, afirma ser a liberdade de todos.

Diz-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilização não deixa as flores dormirem, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores estão expostas à luz contínua, para fazer com que cresçam mais rapidamente. Nas fábricas de ovos, a noite também está proibida para as galinhas. E as pessoas estão condenadas à insónia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria farmacêutica. Os EUA consomem metade dos calmantes, ansiolíticos e demais drogas químicas que são vendidas legalmente no mundo; e mais da metade das drogas proibidas que são vendidas ilegalmente, o que não é uma coisinha à-toa quando se leva em conta que os EUA contam com apenas cinco por cento da população mundial.

«Gente infeliz, essa que vive se comparando», lamenta uma mulher no bairro de Buceo, em Montevideu. A dor de já não ser, que outrora cantava o tango, deu lugar à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. «Quando não tens nada, pensas que não vales nada», diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, em Buenos Aires. E outro confirma, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: «Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas, e vivem suando feitos loucos para pagar as prestações».

Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade, e a uniformidade é que manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todas partes suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora do que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.

O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde quantidade com qualidade, confunde gordura com boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na última década a «obesidade mórbida» aumentou quase 30% entre a população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou 40% nos últimos dezasseis anos, segundo pesquisa recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado. O país que inventou as comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fat free, tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar desce do carro só para trabalhar e para assistir televisão. Sentado na frente da telinha, passa quatro horas por dia devorando comida plástica.

Vence o lixo fantasiado de comida: essa indústria está conquistando os paladares do mundo e está demolindo as tradições da cozinha local. Os costumes do bom comer, que vêm de longe, contam, em alguns países, milhares de anos de refinamento e diversidade e constituem um património colectivo que, de algum modo, está nos fogões de todos e não apenas na mesa dos ricos. Essas tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida, estão sendo esmagadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único: a globalização do hambúrguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida em escala mundial, obra do McDonald´s, do Burger King e de outras fábricas, viola com sucesso o direito à autodeterminação da cozinha: direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das suas portas.

A Copa do Mundo de Futebol de 1998 confirmou para nós, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola proporciona eterna juventude e que o cardápio do McDonald´s não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército do McDonald´s dispara hambúrgueres nas bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro. O duplo arco dessa M serviu como estandarte, durante a recente conquista dos países do Leste Europeu.

As filas na frente do McDonald´s de Moscovo, inaugurado em 1990 com bandas e fanfarras, simbolizaram a vitória do Ocidente com tanta eloquência quanto a queda do Muro de Berlim. Um sinal dos tempos: essa empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos seus empregados a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato. O McDonald´s viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama de Macfamília, de um restaurante de Montreal, no Canadá, tentaram sindicalizar-se: o restaurante fechou. Mas, em 98, outros empregados do McDonald´s, em uma pequena cidade próxima a Vancouver, conseguiram essa conquista, digna do Guinness.

As massas consumidoras recebem ordens em um idioma universal: a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto quis e não pôde. Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que a televisão transmite. No último quarto de século, os gastos em propaganda dobraram no mundo todo. Graças a isso, as crianças pobres bebem cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite e o tempo de lazer vai se tornando tempo de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisão, e a televisão está com a palavra. Comprado em prestações, esse animalzinho é uma prova da vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos.

Pobres e ricos conhecem, assim, as qualidades dos automóveis do último modelo, e pobres e ricos ficam sabendo das vantajosas taxas de juros que tal ou qual banco oferece. Os especialistas sabem transformar as mercadorias em mágicos conjuntos contra a solidão. As coisas possuem atributos humanos: acariciam, fazem companhia, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o carro é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados.

Os buracos no peito são preenchidos enchendo-os de coisas, ou sonhando com fazer isso. E as coisas não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas escolhem você e salvam você do anonimato das multidões. A publicidade não informa sobre o produto que vende, ou faz isso muito raramente. Isso é o que menos importa. Sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias. Comprando este creme de barbear, você quer se transformar em quem?

O criminologista Anthony Platt observou que os delitos das ruas não são fruto somente da extrema pobreza. Também são fruto da ética individualista. A obsessão social pelo sucesso, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Eu sempre ouvi dizer que o dinheiro não traz felicidade; mas qualquer pobre que assista televisão tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro traz algo tão parecido que a diferença é assunto para especialistas.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX marcou o fim de sete mil anos de vida humana centrada na agricultura, desde que apareceram os primeiros cultivos, no final do paleolítico. A população mundial torna-se urbana, os camponeses tornam-se cidadãos. Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo, e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação e pela erosão das suas terras, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em todas partes, mas por experiência própria sabem que atende nos grandes centros urbanos.

As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos, os esperadores olham a vida passar, e morrem bocejando; nas cidades, a vida acontece e chama. Amontoados em cortiços, a primeira coisa que os recém chegados descobrem é que o trabalho falta e os braços sobram, que nada é de graça e que os artigos de luxo mais caros são o ar e o silêncio.

Enquanto o século XIV nascia, o padre Giordano de Rivalto pronunciou, em Florença, um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam «porque as pessoas sentem gosto em juntar-se». Juntar-se, encontrar-se. Mas, quem encontra com quem? A esperança encontra-se com a realidade? O desejo encontra-se com o mundo? E as pessoas, encontram-se com as pessoas? Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quanta gente encontra-se com as coisas?

O mundo inteiro tende a transformar-se em uma grande tela de televisão, na qual as coisas se olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos.

Os terminais de ônibus e as estações de trens, que até pouco tempo atrás eram espaços de encontro entre pessoas, estão se transformando, agora, em espaços de exibição comercial. O shopping center, o centro comercial, vitrine de todas as vitrines , impõe sua presença esmagadora. As multidões concorrem, em peregrinação, a esse templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora é submetida ao bombardeio da oferta incessante e extenuante. A multidão, que sobe e desce pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago; e para ver e ouvir não é preciso pagar passagem. Os turistas vindos das cidades do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas benesses da felicidade moderna, posam para a foto, aos pés das marcas internacionais mais famosas, tal e como antes posavam aos pés da estátua do prócer na praça.

Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center , ao shopping center , como antes iam até o centro. O tradicional passeio do fim-de-semana até o centro da cidade tende a ser substituído pela excursão até esses centros urbanos. De banho tomado, arrumados e penteados, vestidos com suas melhores galas, os visitantes vêm para uma festa à qual não foram convidados, mas podem olhar tudo. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas.

A cultura do consumo, cultura do efémero, condena tudo à descartabilidade mediática. Tudo muda no ritmo vertiginoso da moda, colocada ao serviço da necessidade de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje, quando o único que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, são tão voláteis quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa na velocidade da luz: ontem estava lá, hoje está aqui, amanhã quem sabe onde, e todo trabalhador é um desempregado em potencial.

Paradoxalmente, os shoppings centers, reinos da fugacidade, oferecem a mais bem sucedida ilusão de segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, existem fora do espaço, além das turbulências da perigosa realidade do mundo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efémera, que se esgota assim como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem pausa, no mercado. Mas, para qual outro mundo vamos nós mudar? Estamos todos obrigados a acreditar na historinha de que Deus vendeu o planeta para umas poucas empresas porque, estando de mau humor, decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma armadilha para pegar bobos.

Aqueles que comandam o jogo fazem de conta que não sabem disso, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro por corrigir, nem um defeito por superar: é uma necessidade essencial. Não existe natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.

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quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

A morte de Brian Thompson

 

Por Chris Hedges

Ainda não sabemos o motivo do assassinato do CEO da UnitedHealthcare, Brian Thompson. Mas não me surpreenderia se o assassino perseguisse Thompson porque a UnitedHealthcare negou a cobertura médica, ou forçou uma família ou um indivíduo à falência, depois de a empresa não ter conseguido cobrir uma doença grave. As seguradoras rejeitam cerca de 1 em cada 7 pedidos de tratamento, decidindo muitas vezes que o tratamento não é “medicamente necessário”.

Entre as 10 nações de rendimento elevado, os Estados Unidos são os que mais gastam em cuidados de saúde, mas apresentam os piores resultados em termos de saúde. Os americanos morrem quatro anos antes dos seus congéneres de outras nações industrializadas.

Há mais de 200 milhões de americanos que dependem de seguros de saúde privados, mas quando ficam gravemente doentes, são frequentemente postos de lado, ficando com contas médicas incapacitantes e incapazes de receber tratamento adequado. As contas médicas exorbitantes são responsáveis ​​por cerca de 40% das falências. Muitos dos que foram levados à falência por causa das contas médicas tinham seguro médico.

As receitas das seis maiores seguradoras – Anthem, Centene, Cigna, AVS/Aetna, Humana e UnitedHealth – mais do que quadruplicaram desde 2010, para 1,1 biliões de dólares. As receitas combinadas das três maiores – United, CVS/Aetna e Cigna – quintuplicaram.

Estas empresas, em termos morais, estão legalmente autorizadas a manter crianças doentes como reféns enquanto os seus pais vão à falência para salvar os seus filhos ou filhas. É indiscutível que muitos morrem, pelo menos prematuramente, devido a estas políticas.

Nada absolve o assassino de Thompson, mas nada absolve aqueles que dirigem empresas de cuidados de saúde com fins lucrativos que adoptam um modelo de negócio que destrói e extermina vidas em nome do lucro.

Fonte

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O CIRCO: OE-2025, os direitos dos cidadãos, o almirante e o 25 de Novembro

 

O OE-2025 está neste momento a ser discutido e sabemos que a aprovação é mais que certa, com a abstenção do PS ou com o voto favorável do partido da extrema-direita, que é visto pela imprensa mainstream como algo sistémico e necessário para a governação. A recente sondagem aponta: “Pedro Nuno Santos tem ‘companhia’ como líder da oposição”, é o apagamento do PS que se tem posto sempre a jeito. A privatização do SNS avança a todo o vapor, a degradação do INEM, cujas falhas terão provocado mais de uma dezena de mortes, as longas listas de espera para cirurgias que o governo AD entendeu entregar aos cuidados dos privados, duplicando assim a despesa com a saúde. O patronato nacional, na velha tradição esclavagista, conta com a descida do IRC, a alteração à legislação laboral, a fim de tornar o trabalho mais precário e mais barato, e a limitação do direito à greve. A preparação da opinião pública para apoiar o possível candidato à presidência da República, o almirante da água choca e das picas salvíficas, por partidos de direita e comentadores pagos à peça, vai em alta, ao mesmo tempo que se tenta dividir o campo eleitoral de esquerda, ou pelo menos considerado como tal, com o idiota útil da “abstenção violenta” aos governos do PSD. O circo, para entediar os papalvos, está montado, enquanto se preparam medidas austeritárias relevantes perante a grave crise económica que se avizinha, com ou sem guerra na Europa.

O Orçamento aprovado antes de o ser

Ainda antes da discussão na especialidade do OE-2025 já este estava aprovado. Nestes dias trata-se somente de acertar alguns pontos no sentido de garantir o bolo para os diferentes lóbis que apostaram neste governo e conceder algumas parcas migalhas para os trabalhadores e sectores mais desprotegidos da sociedade, exemplo pensionistas. E aqui assiste-se ao espectáculo deprimente de disputa entre os diversos partidos sobre quem é responsável pela maior migalha.

Os bancos, o grande capital financeiro, já vieram dizer que não se brinca com coisas sérias. O CEO do banco espanhol BPI logo arrasou a proposta aventada no Parlamento do o fim da comissão de amortização do crédito da casa, seguido do CEO do banco chinês-angolano BCP que considera “absolutamente irracional” a ideia. Mais recentemente Centeno, o representante do BCE (Banco Central Europeu) em Portugal e que não responde perante o governo português, veio corroborar a posição da banca dizendo: "se queremos flexibilidade temos de estar disponíveis para pagar o preço dessa flexibilidade". Como retaliação perante a proposta do PS, a banca ameaçara com o fim da taxa fixa.

Bruxelas, pela voz do vice-presidente da Comissão Europeia, Valdis Dombrovskis, já deixou alguns alertas, que são para cumprir à risca. Acabar com os apoios gerais à energia fóssil e manter as taxas carbono, a transição energética é o meio para revivificar o capitalismo à custa do sacrifício do contribuinte; implementação de medidas para “aumentar a sustentabilidade do sistema nacional de pensões”, isto é, pensões mais miseráveis para posterior privatização dos dinheiros da Segurança Social; contenção nos aumentos salariais para os trabalhadores da Função Pública, os salários no país terão de ser miseráveis, com excepção dos ordenados dos políticos, cujos cortes a pretexto da pandemia serão revogados a partir de 2025, com o apoio do PS. Serão melhores formas de “gastar o dinheiro dos contribuintes”, na douta e ladroeira opinião do vice-presidente que não foi eleito por ninguém.

Não só governo AD se denuncia como dócil e fiel agente dos interesses do grande capital financeiro, como também o sujeito que ainda se mantém no Palácio de Belém. Mais uma vez Mário Draghi, homem de mão do Goldman Sachs e ex-presidente do BCE, é convidado para estar presente no Conselho de Estado, a realizar em Janeiro, “para falar do seu relatório e da sua visão da Europa e do mundo”, onde preconiza que a União Europeia Europa “tem de reformar os seus sistemas políticos, económicos, sociais, nacionais obsoletos ou de moroso ajustamento”. Traduzindo por miúdos, o grande capital financeiro vai assumir directamente a governação da União e sujeitar os povos europeus à mais desenfreada exploração… a bem da salvação do capitalismo.

Tirar aos pobres para dar aos ricos

O OE-2025 consubstancia todo um programa de verdadeira austeridade sobre o povo trabalhador que é esbulhado, quer pelos baixos salários e pensões de reforma, quer pelos elevados impostos, quer pela diminuição de investimentos público na saúde, educação, protecção social ou em infra-estruturas necessárias ao bem-estar e vida digna da sociedade considerada no seu todo. Para aumentar o seu quinhão a nossa burguesia parasitária e subsídio-dependente reivindica menos impostos, ainda ninguém provou que baixar o IRC irá aumentar os salários, descer o desemprego e baixar os preços dos produtos. Pelo contrário, o desejo molhado desta gente é não pagar salários sequer e sacarem o mais possível do erário público. No entanto, o endividamento da economia (excepto bancos) sobe 2,4 mil milhões no mês de Setembro, tendo atingido os 813,2 mil milhões de euros.

O governo da AD vai concretizar o plano com que foi eleito. Pelos vistos, irá começar pela alteração dos regimes de doença, mobilidade, férias e greve dos trabalhadores do estado, querendo dar falsamente a noção de que estas alterações não serão de "grande monta", com o objectivo de enganar os sindicatos, alguns deles até parece que gostam, e adormecer os trabalhadores no sentido do que tudo será feito em seu benefício. Os sindicatos da UGT já deram o avale e os outros pediram tempo para “estudar” a proposta. Do outro lado, os patrões apresentam como prioridade a revisão da lei laboral, já que sentem o ramo mole, como também seria de esperar. É bom relembrar que os governos do PS durante os oitos que estiveram em função nunca reverteram as alterações feitas à Lei do Trabalho, bem pelo contrário. E o que é feito no sector estado é para replicar com lente de aumento no privado.

O direito que tanto o governo como os patrões pretendem limitar e, se possível, acabar com ele de vez, é o direito à greve. A campanha mediática contra este direito que foi reconhecido depois do 25 de Abril, apesar de algumas limitações, greve por solidariedade ou de carácter abertamente político, tem sido desbragada. A greve dos técnicos de emergência pré-hospitalar às horas extraordinárias não foi intencionalmente evitada pelo governo, na medida em que este tinha conhecimento com muito antecedência do que iria acontecer, porque a sua intenção era atacar estes trabalhadores e descredibilizar este meio de luta. Os principais media mainstream lançaram-se na primeira linha, atribuindo de imediato os casos mortais não assistidos à irresponsabilidade destes trabalhadores.

A par da greve do INEM, os professores e outros trabalhadores escolares não docentes foram de igual modo estigmatizados como responsáveis pelos problemas da falta de aulas e de continuarem de má-fé uma luta, já que os problemas, pelos menos os dos professores, já teriam sido resolvidos pelo governo – «“As nossas crianças merecem ter voz." Mais de 100 pais questionam ministro sobre greves. Carta aberta a Fernando Alexandre e Carlos Moedas alerta para perda de mais de uma semana de aulas com as sete greves que paralisaram escolas já neste ano letivo. Pais querem esclarecimentos sobre situação de professores e pessoal não-docente.» (ECO, 20.11.2024). Todos os paineleiros do establishment botaram faladura sobre o tema e o ponto comum é: as greves prejudicam o “país” e o povo (a classe média medrosa) está contra elas.

O primeiro-ministro acaba de falar ao país, em horário nobre das 20 horas, para informar os inseguros cidadãos de que está a decorrer uma operação policial, “Portugal sempre seguro” mobilizando mais de quatro mil efetivos, e que “Portugal é um país seguro” e “um dos mais seguros do mundo”; de seguida, prometeu um investimento de 20 milhões de euros na aquisição de 600 veículos para a PSP e GNR. Fez-se acompanhar de duas ministras, MAI e MJustiça, e dos comandantes das forças policiais, para mostrar que a segurança dos portugueses está em primeiro lugar, quando se sabe, por sondagem recente, que os portugueses sentem-se seguros e que são precisamente os eleitores da extrema-direita que menos confiam nas polícias. Esta encenação ocorre precisamente no dia em que a PJ procedeu à detenção de presumíveis responsáveis pelos tumultos que se seguiram ao assassinato de Odair Moniz. Ora, a sensação com que se fica é que quem não se sente seguro e está com medo é exactamente o governo. Este caminho por onde enveredou o governo é de inteiro agrado do partido da extrema-direita, que agradece, e nem precisará de lá entrar para ver a sua agenda concretizada.

A caserna ao poder

Não deixou de ser ternurento ouvir ao PR Marcelo, que pensa que é Rei, quanto à defesa da urgência da Aliança das Civilizações (10º fórum global da United Nations Alliance of Civilizations - UNAOC) num mundo "dominado pelo egoísmo"; mais precisamente "esta urgência é especialmente relevante num mundo que, mais uma vez, se encontra dominado pelo egoísmo, pela arrogância, pela intolerância, pelo isolacionismo". Uma conferência onde estiveram sentados lado a lado o ministro dos Negócios Estrangeiros, o inefável Rangel, com a criminosa de guerra, sionista e antiga ministra dos Negócios Estrangeiros israelita, Tzipi Livni. Para se dizer que “diz-me com quem andas e digo-te quem és!”. Sabendo-se da natureza dúplice e traiçoeira do actual PR, é perfeitamente compreensível que as elites procurem figura mais confiável e corajosa para defender o cacete em caso de grave crise económica que será sempre crise social, daí se ter intensificado desde há algum tempo a campanha da candidatura do almirante das vacinas e dos barcos avariados.

Não será preciso saber contar pelos dedos para se somar a insegurança e o desejo de reforço do aparelho policial por parte do governo para se chegar à necessidade de se catapultar para Belém um homem das casernas ou dos submarinos, não haverá diferença, para o mais elevado cargo da República. Nem será preciso relembrar a abjecta atitude de humilhação pública da tripulação que se recusou ir para o mar em barco velho e avariado para ir perseguir os russos. Ou ouvir as atoardas de que os portugueses devem estar dispostos a dar a vida pela defesa desta Europa que, até agora, só trouxe pobreza e mais exploração ao povo português, e, mais uma vez, contra o perigo da invasão das tropas russas que qualquer dia entrarão por aí e só irão parar na ribeira de Cheleiros. Uma figura, que só profere atoardas belicistas e reaccionárias, que ainda não manifestou o mínimo esboço de ideia sobre a identificação e subsequente resolução dos problemas que mais afectam o povo português, será a mais indicada para chefiar um regime que de democrático só acabará por ter o nome.

Ao acontecer, estaremos perante o fim desta democracia de opereta e o início de uma democracia musculada, um fascismo brando, talvez neste momento a solução mais adequada para a superação da crise do capitalismo nacional por parte das elites. Parte significativa da classe média irá alienar de boa vontade o voto, e possivelmente até uma fatia da classe dos trabalhadores já fartos destes políticos venais e hipócritas. E a tarefa poderá ser, mais uma vez, facilitada pelo PS que se apresentar, à semelhança das últimas vezes, e parece que vai repetir-se, mais do que um candidato e do género daquele que está a ser preparado, o Seguro da abjecta e cobarde “abstenção violenta” ao governo de Passos Coelho que pôde governar à sua livre vontade. Com certeza que a operação irá ter o maior sucesso. Nem o meia-leca (1,62 m de altura, segundo Wikipedia) do moço de recados de Marcelo, ou “bruxo de Guimarães”, terá hipótese, mesmo que fortemente apoiado pelo partido e pelo actual PR.

O circo está montado. O OE já está aprovado; o PSD irá tentar novas eleições para ter maioria absoluta e poder fazer o que lhe apetecer; a caserna irá para Belém; este ano comemorou-se o 25 de Novembro, como negação do 25 de Abril e da derrota da revolução proletária, para o ano será o 26 de Maio; os trabalhadores irão ficar sem direitos e terão de ser escravos tout court, caso não lutem contra o tenebroso plano. Os tempos são de cólera.

Imagem: "Chapéus há muitos" in Henricartoon

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Esquecimento organizado

 

Por Chris Hedges

NOVA IORQUE: Estou no Centro de Informação de Krikor e Clara Zohrab, junto à Catedral Arménia de St. Vartan, em Manhattan. Tenho nas mãos um livro de memórias escrito à mão, encadernado, que inclui poesia, desenhos e imagens de álbuns de recortes, de Zaven Seraidarian, um sobrevivente do genocídio arménio. A capa do livro, um dos seis volumes, diz “Bloody Journal”. Os outros volumes têm títulos como “Drops of Springtime”, “Tears” e “The Wooden Spoon”.

“O meu nome permanecerá imortal na terra”, escreve o autor. “Vou falar sobre mim e contar-vos mais.”

O centro  alberga  centenas de documentos, cartas, mapas desenhados à mão de aldeias que desapareceram, fotografias sépia, poemas, desenhos e histórias – muitas das quais não traduzidas – sobre os costumes, tradições e famílias notáveis ​​das comunidades arménias perdidas.

Jesse Arlen, o diretor do centro, olha desamparado para o volume que tenho na mão.

“Provavelmente ninguém leu, olhou ou sabia que estava aqui”, diz.

Abre uma caixa e entrega-me um  mapa desenhado à mão  por Hareton Saksoorian da aldeia de Havav em Palu, onde os arménios em 1915 foram massacrados ou expulsos. Saksoorian desenhou o mapa de memória depois de escapar. Os desenhos das casas arménias têm nomes minúsculos pintados com nomes de pessoas mortas há muito tempo. 

Este será o destino dos palestinianos em Gaza. Também irão em breve lutar para preservar a memória, para desafiar um mundo indiferente que assistiu enquanto eram massacrados. Procurarão também obstinadamente preservar restos da sua existência. Escreverão também memórias, histórias e poemas, desenharão mapas de aldeias, campos de refugiados e cidades que foram destruídas, contarão histórias dolorosas de carnificina, carnificina e perda. Também nomearão e condenarão os seus assassinos, lamentarão o extermínio de famílias, incluindo milhares de crianças, e lutarão para preservar um mundo desaparecido. Mas o tempo é um mestre cruel.

A vida intelectual e emocional daqueles que são expulsos da sua terra natal é definida pelo cadinho do exílio, o que o estudioso palestiniano Edward Said me disse ser “a ruptura incurável forçada entre um ser humano e um local de origem”. O livro “Out of Place” de Said é um registo desse mundo perdido.

O poeta arménio  Armen Anush  foi criado num orfanato em Alepo, na Síria. Capta a sentença de prisão perpétua daqueles que sobrevivem ao genocídio no seu poema “Sacred Obsession”.

Ele escreve:

      País da luz, visitas-me todas as noites enquanto durmo.

      Todas as noites, exaltada, como uma venerável deusa,

      Trazes novas sensações e esperanças à minha alma exilada.

      Todas as noites alivias as oscilações do meu caminho.

      Todas as noites revelas os desertos sem limites,

      Os olhos abertos dos mortos, o choro das crianças ao longe,

      O crepitar e a chama vermelha dos inúmeros corpos queimados,

      E a caravana desabrigada, sempre insegura, sempre vacilante.

      Todas as noites a mesma cena infernal e mortal –

      O cansado Eufrates lavando o sangue dos cadáveres selvagens,

      As ondas divertindo-se com os raios de sol,

      E aliviar o fardo desse peso inútil e cansativo.

      Os mesmos poços húmidos e negros de corpos carbonizados,

      O mesmo fumo espesso envolvendo todo o deserto sírio.

      As mesmas vozes das profundezas, os mesmos gemidos, suaves e sem sol,

      E a mesma barbárie brutal e implacável da máfia turca.

O poema termina, no entanto, com um apelo não para que estes terrores nocturnos acabem, mas para que “venham ter comigo todas as noites”, para que “a chama dos seus heróis” “acompanhe sempre os meus dias”. 

“A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”, recorda-nos Milan Kundera.

É melhor suportar um trauma incapacitante do que esquecer. Quando esquecemos, quando as memórias são expurgadas – o objectivo de todos os assassinos genocidas – somos escravizados a mentiras e mitos, separados das nossas identidades individuais, culturais e nacionais. Já não sabemos quem somos.

“É preciso tão pouco, tão infinitamente pouco, para uma pessoa atravessar a fronteira para além da qual tudo perde o sentido: o amor, as convicções, a fé, a história”, escreve Kundera em “O Livro do Riso e do Esquecimento”. “A vida humana — e aqui reside o seu segredo — realiza-se na proximidade imediata dessa fronteira, mesmo em contacto direto com ela; não está a quilómetros de distância, mas a uma fração de polegada.”

Aqueles que atravessaram essa fronteira regressam a nós como profetas, profetas que ninguém quer ouvir.

Os antigos gregos acreditavam que, enquanto as almas dos defuntos eram transportadas para o Hades, eram obrigados a beber a água do rio Lete para apagar a memória. A destruição da memória é a obliteração final do ser, o último ato de mortalidade. A memória é a luta para deter a mão do barqueiro.

O genocídio em Gaza reflecte a aniquilação física dos cristãos arménios pelo Império Otomano. Os turcos otomanos, que temiam uma revolta nacionalista como a que convulsionou os Balcãs, expulsaram quase todos os dois milhões de arménios da Turquia. Homens e mulheres eram geralmente separados. Os homens eram muitas vezes imediatamente assassinados ou enviados para campos de extermínio, como os de Ras-Ul-Ain – em 1916, mais de 80 mil arménios foram ali massacrados – e de Deir-el-Zor, no deserto sírio. Pelo menos um milhão foram forçados a marchas da morte – não muito diferentes dos palestinianos em Gaza que foram deslocados à força por Israel, até uma dúzia de vezes – nos desertos onde hoje são a Síria e o Iraque. Aí, centenas de milhares de pessoas foram massacradas ou morreram de fome, exposição e doença. Cadáveres cobriam a extensão do deserto. Em 1923, cerca de 1,2 milhões de arménios estavam mortos. Os orfanatos de todo o Médio Oriente foram inundados com cerca de 200 mil crianças arménias indigentes.

A resistência condenada de várias aldeias arménias nas montanhas ao longo da costa da actual Turquia e Síria que optaram por não obedecer à ordem de deportação foi captada no romance de Franz Werfel “Os Quarenta Dias de Musa Dagh”.  Marcel Reich-Ranicki, um crítico literário polaco-alemão que sobreviveu ao Holocausto, disse que o livro foi amplamente lido no gueto de Varsóvia, que organizou uma revolta condenada em Abril de 1943.

Em 2000, quando tinha 98 anos,  entrevistei  o escritor e cantor  Hagop H. Asadourian, um dos últimos sobreviventes do genocídio arménio. Nasceu na aldeia de Chomaklou, no leste da Turquia, e foi deportado, juntamente com o resto da sua aldeia, em 1915. A sua mãe e quatro das suas irmãs morreram de tifo no deserto da Síria. Passariam 39 anos até que se reunisse com a sua única irmã sobrevivente, de quem foi separado uma noite perto do Mar Morto, enquanto fugiam com um bando de órfãos arménios da Síria para Jerusalém.

Disse-me que escreveu para dar voz às 331 pessoas com quem se arrastou para a Síria em Setembro de 1915, das quais apenas 29 sobreviveram.

“Nunca se pode realmente escrever o que aconteceu”, disse Asadourian. “É muito macabro. Ainda luto comigo mesmo para me lembrar de como foi. Escreve porque precisa. Tudo brota dentro de si. É como um buraco que se enche constantemente de água e nenhuma quantidade de água o esvaziará. É por isso que continuo.”

Parou para se recompor antes de continuar.

“Quando chegou a altura de enterrar a minha mãe, tive de pedir a dois outros rapazes para me ajudarem a carregar o corpo dela até um poço onde estavam a despejar os cadáveres”, disse. “Fizemos isto para que os chacais não os comessem. O fedor era terrível. Havia enxames de moscas negras a zumbir na abertura. Empurrámo-la primeiro com os pés, e os outros rapazes, para escapar ao cheiro, desceram a colina a correr. Eu fiquei. Eu tive de assistir. Vi a cabeça dela, ao cair, bater de um lado do poço e depois do outro antes de desaparecer. Na altura, não senti absolutamente nada.”

Parou, visivelmente abalado.

“Que raio de filho é este?” – perguntou com voz rouca.

Finalmente encontrou o caminho para um orfanato em Jerusalém.

“Estas coisas penetram em si, não apenas uma vez, mas ao longo da vida, ao longo da vida, ao longo de todos os dias”,  disse  a um entrevistador da USC Shoah Foundation. “Tenho 98 anos. E hoje, até hoje, não me posso esquecer de nada disto. Esqueci-me do que vi ontem talvez, mas não podia esquecer estas coisas. E, no entanto, temos de implorar às nações que reconheçam o genocídio. Perdi 11 membros da minha família e tenho de implorar às pessoas que acreditem em mim. Isso é o que mais te magoa. É um mundo terrível, uma experiência terrível.”

Os seus 14 livros foram uma luta contra o apagamento, mas quando falei com ele admitiu que o trabalho do exército turco estava agora quase completo. O seu último livro foi “The Smoldering Generation”, que disse ser “sobre a perda inevitável da nossa cultura”. 

O presente é algo em que os mortos não têm qualquer participação.

“Ninguém toma o lugar daqueles que já partiram”, disse, sentado em frente a uma janela panorâmica que dava para o seu jardim em Tenafly, Nova Jérsia. “Os seus filhos não o compreendem neste país. Não pode culpá-los.

O mundo dos arménios no leste da Turquia, mencionado pela primeira vez pelos gregos e persas em 6 a.C., tal como Gaza, cuja história abrange 4.000 anos, praticamente desapareceu. As contribuições da cultura arménia são esquecidas. Foram os monges arménios, por exemplo, que resgataram do esquecimento obras de escritores gregos antigos, como Fílon e Eusébio. 

Tropecei nas ruínas de aldeias arménias quando trabalhava como repórter no sudeste da Turquia. Tal como as aldeias palestinianas destruídas por Israel, estas aldeias não apareciam nos mapas. Aqueles que cometem genocídio procuram a aniquilação total. Nada deve permanecer. Especialmente a memória. 

Esta será a nossa próxima batalha. Não nos devemos esquecer.

Imagem: “Não nos esqueça” - por Mr. Fish

Fonte

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Direito à Saúde: A validade da análise crítica das desigualdades de Marx

 

Stéphane Barbas*

O formidável filme de Raoul Peck, O Jovem Marx, reaviva o interesse pelo pensamento de Marx e convida à sua (re)leitura.

Desde a crise de 2008, com os perigos que tem causado ao planeta, que o capitalismo já não é visto como o fim da História. Este interesse pelo marxismo estende-se também a áreas como a medicina e a saúde, mesmo entre aqueles que estão longe dos círculos militantes. A revista The Lancet, antiga e prestigiada revista médica britânica, publicou numa edição recente uma contribuição do seu editor-chefe, Richard Horton, sob o título "Medicine and Marx" (vol. 390, 4 de novembro de 2017).

O autor sublinha que, apesar do descrédito provocado pela queda da União Soviética, o pensamento de Marx é irrefutavelmente atual. O aniversário do nascimento de Marx, que será comemorado a 5 de maio de 2018, será um momento propício para reavaliar os seus contributos. As ideias marxistas estão mais uma vez a permear o debate político, particularmente sobre os problemas de saúde, aos quais o capitalismo e os mercados são incapazes de responder.

A privatização, o poder das elites médicas, a crença eufórica no progresso técnico, o capitalismo filantrópico, as tendências neo-imperialistas da política de saúde global, as doenças inventadas pelos laboratórios ou a exclusão e estigmatização de populações inteiras são alguns dos problemas para os quais o marxismo pode contribuir uma análise crítica.

O marxismo é também um apelo à luta por valores como a igualdade social, o fim da exploração e a luta contra a saúde considerada mais uma mercadoria. O agravamento das desigualdades à escala global confere ao debate sobre os pontos acima referidos a sua verdadeira relevância. Como demonstra o epidemiologista inglês Richard Wilkinson, não é de todo necessário ser marxista para avaliar o que a medicina ainda pode aprender com Marx.

Recorde-se ainda que as preocupações com a saúde pública são contemporâneas do nascimento do marxismo com o livro de Engels, A Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra, (1845). Marx referir-se-á frequentemente a este livro do seu amigo.

No Livro I de O Capital, particularmente no capítulo sobre a jornada de trabalho, Marx denuncia veementemente as consequências da violência da exploração sobre a saúde dos trabalhadores. O problema do trabalho infantil é o exemplo mais significativo desta violência. Há em Marx um interesse real tanto nos problemas de saúde como na protecção das crianças. O filósofo alemão cita numerosos testemunhos de médicos que denunciam nos seus relatórios o estado de saúde dos trabalhadores e a exploração das crianças. Segundo o médico inglês Arledge, por exemplo, os oleiros têm “uma altura atrofiada, são anémicos, estão sujeitos a dispepsia, problemas hepáticos e renais e reumatismo”. Haveria mesmo asma e tuberculose (tuberculose) típicas dos oleiros.

Crianças de 5 ou 6 anos trabalham frequentemente em fábricas de fósforos químicos numa atmosfera saturada de fósforo. É o inferno de Dante, diz Marx. O médico-chefe do hospital de Worcester escreve que “ao contrário das afirmações egoístas de alguns empregadores, declaro e certifico que a saúde das crianças sofre muito com estas condições”. Isto não impede aqueles a quem Marx chama ironicamente “amigos do comércio” de justificar o trabalho infantil, invocando muitas vezes a moralidade e a educação.

Marx sublinha o seguinte: “O capital usurpa o tempo necessário para o crescimento, o desenvolvimento, bem como o necessário para manter o corpo em boa saúde… Rouba o tempo que deveria ser utilizado para respirar ar puro e desfrutar da luz solar.”

“A antropologia capitalista (acrescentou Marx) decreta que a infância deve durar até aos dez anos, no máximo onze.” Hoje, no século XXI, a “antropologia capitalista” decreta a idade em que nos podemos reformar.

Marx gostava de dar ao capital a imagem de um vampiro. “O capital é trabalho morto que, tal como um vampiro, só ganha vida sugando o trabalho vivo.”

A saúde é o sangue da força de trabalho com que o capital é alimentado. Mas se a saúde dos trabalhadores é a fonte da riqueza, o capitalista não tem de cuidar dela, de cuidar dela. Tem “o exército industrial de reserva” que fornecerá sempre mão-de-obra graças, ontem, à sobrepopulação de trabalhadores, ao desemprego, hoje. O direito à saúde foi sempre uma conquista da classe trabalhadora contra o capital.

É necessário, hoje mais do que nunca, lembrar que os sistemas de Segurança Social são financiados com aquela parte dos salários extraída do capital para garantir a saúde dos trabalhadores a longo prazo e não apenas a saúde que é imediatamente útil para a produção. Não deve, por isso, surpreender ninguém que esta parte diferida do salário que permite “respirar o ar puro e desfrutar do sol” seja rebatizada de “fardo social” e vergonhosamente acusada de aumentar “o custo do trabalho”, de provocar a histeria “dos amigos do comércio.” Para estes últimos, os seus benefícios serão sempre muito mais valiosos do que a saúde dos homens e das mulheres.

A riqueza inerente à força de trabalho não é explicada através da fisiologia ou de algum misterioso princípio vital guardado secretamente pela medicina, mas através das relações sociais.

A medicina, por sua vez, permitirá que o homem social seja muito mais tido em conta naquilo que determina a saúde. 

*Psiquiatra infantil.

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