terça-feira, 16 de julho de 2024

O touro de Pasífae e a técnica

 

Giorgio Agamben

No mito de Pasífae, a mulher que fez Dédalo construir uma vaca artificial para acasalar com um touro, é razoável ver um paradigma de tecnologia. A técnica surge nesta perspectiva como o dispositivo através do qual o homem tenta alcançar – ou realcançar – a animalidade. Mas é precisamente este o risco que a humanidade corre hoje através da hipertrofia tecnológica. A inteligência artificial, à qual a tecnologia parece querer confiar o seu resultado final, procura produzir uma inteligência que, tal como o instinto animal, funcione por si só, por assim dizer, sem a intervenção de um sujeito pensante. É a vaca dedálica através da qual a inteligência humana acredita poder acasalar alegremente com o instinto do touro, tornando-se ou tornando-se um animal. E não é de estranhar que desta união nasça um ser monstruoso, com corpo humano e cabeça de touro, o Minotauro, que se encontra fechado num labirinto e se alimenta de carne humana.

Na tecnologia – é esta a tese que pretendemos sugerir – o que está efectivamente em causa é a relação entre o humano e o animal. A antropogénese, o devir humano do primata homo, não é, de facto, um acontecimento que se completa de uma vez por todas num determinado momento da cronologia: é um processo ainda em curso, no qual o homem não deixa de se tornar humano e, ao mesmo tempo, permanecer um animal. E se a natureza humana é tão difícil de definir, é precisamente porque assume a forma de uma articulação entre dois elementos heterogéneos mas intimamente interligados. A sua implicação assídua é aquilo a que chamamos história, na qual todo o conhecimento ocidental está envolvido desde o início, da filosofia à gramática, da lógica à ciência e, hoje, à cibernética e à informática.

A natureza humana - é melhor não esquecer isto - não é um dado que possa alguma vez ser adquirido ou fixado normativamente de acordo com a própria vontade: é antes dada numa prática histórica, que - na medida em que deve distinguir e articular-se, dentro e fora do homem, o vivo e o falante, o humano e o animal - só podem ser incessantemente implementados, adiados e actualizados de cada vez. Isto significa que está em causa um problema essencialmente político, no qual está em causa a decisão do que é humano e do que não é. O lugar do homem está neste fosso e nesta tensão entre o humano e o animal, a linguagem e a vida, a natureza e a história. E se, tal como Pasífae, se esquecer do seu próprio lar vital e tentar achatar os extremos entre os quais se deve manter tenso, uns em cima dos outros, só conseguirá gerar monstros e, com eles, aprisionar-se num labirinto sem saída.

8 de julho de 2024

Imagem:  "Pasífae e o Touro" (Pasiphae and the Bull), óleo sobre cobre do pintor sul-africano Ansel Krut.

quodlibet 

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