quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O CIRCO: OE-2025, os direitos dos cidadãos, o almirante e o 25 de Novembro

 

O OE-2025 está neste momento a ser discutido e sabemos que a aprovação é mais que certa, com a abstenção do PS ou com o voto favorável do partido da extrema-direita, que é visto pela imprensa mainstream como algo sistémico e necessário para a governação. A recente sondagem aponta: “Pedro Nuno Santos tem ‘companhia’ como líder da oposição”, é o apagamento do PS que se tem posto sempre a jeito. A privatização do SNS avança a todo o vapor, a degradação do INEM, cujas falhas terão provocado mais de uma dezena de mortes, as longas listas de espera para cirurgias que o governo AD entendeu entregar aos cuidados dos privados, duplicando assim a despesa com a saúde. O patronato nacional, na velha tradição esclavagista, conta com a descida do IRC, a alteração à legislação laboral, a fim de tornar o trabalho mais precário e mais barato, e a limitação do direito à greve. A preparação da opinião pública para apoiar o possível candidato à presidência da República, o almirante da água choca e das picas salvíficas, por partidos de direita e comentadores pagos à peça, vai em alta, ao mesmo tempo que se tenta dividir o campo eleitoral de esquerda, ou pelo menos considerado como tal, com o idiota útil da “abstenção violenta” aos governos do PSD. O circo, para entediar os papalvos, está montado, enquanto se preparam medidas austeritárias relevantes perante a grave crise económica que se avizinha, com ou sem guerra na Europa.

O Orçamento aprovado antes de o ser

Ainda antes da discussão na especialidade do OE-2025 já este estava aprovado. Nestes dias trata-se somente de acertar alguns pontos no sentido de garantir o bolo para os diferentes lóbis que apostaram neste governo e conceder algumas parcas migalhas para os trabalhadores e sectores mais desprotegidos da sociedade, exemplo pensionistas. E aqui assiste-se ao espectáculo deprimente de disputa entre os diversos partidos sobre quem é responsável pela maior migalha.

Os bancos, o grande capital financeiro, já vieram dizer que não se brinca com coisas sérias. O CEO do banco espanhol BPI logo arrasou a proposta aventada no Parlamento do o fim da comissão de amortização do crédito da casa, seguido do CEO do banco chinês-angolano BCP que considera “absolutamente irracional” a ideia. Mais recentemente Centeno, o representante do BCE (Banco Central Europeu) em Portugal e que não responde perante o governo português, veio corroborar a posição da banca dizendo: "se queremos flexibilidade temos de estar disponíveis para pagar o preço dessa flexibilidade". Como retaliação perante a proposta do PS, a banca ameaçara com o fim da taxa fixa.

Bruxelas, pela voz do vice-presidente da Comissão Europeia, Valdis Dombrovskis, já deixou alguns alertas, que são para cumprir à risca. Acabar com os apoios gerais à energia fóssil e manter as taxas carbono, a transição energética é o meio para revivificar o capitalismo à custa do sacrifício do contribuinte; implementação de medidas para “aumentar a sustentabilidade do sistema nacional de pensões”, isto é, pensões mais miseráveis para posterior privatização dos dinheiros da Segurança Social; contenção nos aumentos salariais para os trabalhadores da Função Pública, os salários no país terão de ser miseráveis, com excepção dos ordenados dos políticos, cujos cortes a pretexto da pandemia serão revogados a partir de 2025, com o apoio do PS. Serão melhores formas de “gastar o dinheiro dos contribuintes”, na douta e ladroeira opinião do vice-presidente que não foi eleito por ninguém.

Não só governo AD se denuncia como dócil e fiel agente dos interesses do grande capital financeiro, como também o sujeito que ainda se mantém no Palácio de Belém. Mais uma vez Mário Draghi, homem de mão do Goldman Sachs e ex-presidente do BCE, é convidado para estar presente no Conselho de Estado, a realizar em Janeiro, “para falar do seu relatório e da sua visão da Europa e do mundo”, onde preconiza que a União Europeia Europa “tem de reformar os seus sistemas políticos, económicos, sociais, nacionais obsoletos ou de moroso ajustamento”. Traduzindo por miúdos, o grande capital financeiro vai assumir directamente a governação da União e sujeitar os povos europeus à mais desenfreada exploração… a bem da salvação do capitalismo.

Tirar aos pobres para dar aos ricos

O OE-2025 consubstancia todo um programa de verdadeira austeridade sobre o povo trabalhador que é esbulhado, quer pelos baixos salários e pensões de reforma, quer pelos elevados impostos, quer pela diminuição de investimentos público na saúde, educação, protecção social ou em infra-estruturas necessárias ao bem-estar e vida digna da sociedade considerada no seu todo. Para aumentar o seu quinhão a nossa burguesia parasitária e subsídio-dependente reivindica menos impostos, ainda ninguém provou que baixar o IRC irá aumentar os salários, descer o desemprego e baixar os preços dos produtos. Pelo contrário, o desejo molhado desta gente é não pagar salários sequer e sacarem o mais possível do erário público. No entanto, o endividamento da economia (excepto bancos) sobe 2,4 mil milhões no mês de Setembro, tendo atingido os 813,2 mil milhões de euros.

O governo da AD vai concretizar o plano com que foi eleito. Pelos vistos, irá começar pela alteração dos regimes de doença, mobilidade, férias e greve dos trabalhadores do estado, querendo dar falsamente a noção de que estas alterações não serão de "grande monta", com o objectivo de enganar os sindicatos, alguns deles até parece que gostam, e adormecer os trabalhadores no sentido do que tudo será feito em seu benefício. Os sindicatos da UGT já deram o avale e os outros pediram tempo para “estudar” a proposta. Do outro lado, os patrões apresentam como prioridade a revisão da lei laboral, já que sentem o ramo mole, como também seria de esperar. É bom relembrar que os governos do PS durante os oitos que estiveram em função nunca reverteram as alterações feitas à Lei do Trabalho, bem pelo contrário. E o que é feito no sector estado é para replicar com lente de aumento no privado.

O direito que tanto o governo como os patrões pretendem limitar e, se possível, acabar com ele de vez, é o direito à greve. A campanha mediática contra este direito que foi reconhecido depois do 25 de Abril, apesar de algumas limitações, greve por solidariedade ou de carácter abertamente político, tem sido desbragada. A greve dos técnicos de emergência pré-hospitalar às horas extraordinárias não foi intencionalmente evitada pelo governo, na medida em que este tinha conhecimento com muito antecedência do que iria acontecer, porque a sua intenção era atacar estes trabalhadores e descredibilizar este meio de luta. Os principais media mainstream lançaram-se na primeira linha, atribuindo de imediato os casos mortais não assistidos à irresponsabilidade destes trabalhadores.

A par da greve do INEM, os professores e outros trabalhadores escolares não docentes foram de igual modo estigmatizados como responsáveis pelos problemas da falta de aulas e de continuarem de má-fé uma luta, já que os problemas, pelos menos os dos professores, já teriam sido resolvidos pelo governo – «“As nossas crianças merecem ter voz." Mais de 100 pais questionam ministro sobre greves. Carta aberta a Fernando Alexandre e Carlos Moedas alerta para perda de mais de uma semana de aulas com as sete greves que paralisaram escolas já neste ano letivo. Pais querem esclarecimentos sobre situação de professores e pessoal não-docente.» (ECO, 20.11.2024). Todos os paineleiros do establishment botaram faladura sobre o tema e o ponto comum é: as greves prejudicam o “país” e o povo (a classe média medrosa) está contra elas.

O primeiro-ministro acaba de falar ao país, em horário nobre das 20 horas, para informar os inseguros cidadãos de que está a decorrer uma operação policial, “Portugal sempre seguro” mobilizando mais de quatro mil efetivos, e que “Portugal é um país seguro” e “um dos mais seguros do mundo”; de seguida, prometeu um investimento de 20 milhões de euros na aquisição de 600 veículos para a PSP e GNR. Fez-se acompanhar de duas ministras, MAI e MJustiça, e dos comandantes das forças policiais, para mostrar que a segurança dos portugueses está em primeiro lugar, quando se sabe, por sondagem recente, que os portugueses sentem-se seguros e que são precisamente os eleitores da extrema-direita que menos confiam nas polícias. Esta encenação ocorre precisamente no dia em que a PJ procedeu à detenção de presumíveis responsáveis pelos tumultos que se seguiram ao assassinato de Odair Moniz. Ora, a sensação com que se fica é que quem não se sente seguro e está com medo é exactamente o governo. Este caminho por onde enveredou o governo é de inteiro agrado do partido da extrema-direita, que agradece, e nem precisará de lá entrar para ver a sua agenda concretizada.

A caserna ao poder

Não deixou de ser ternurento ouvir ao PR Marcelo, que pensa que é Rei, quanto à defesa da urgência da Aliança das Civilizações (10º fórum global da United Nations Alliance of Civilizations - UNAOC) num mundo "dominado pelo egoísmo"; mais precisamente "esta urgência é especialmente relevante num mundo que, mais uma vez, se encontra dominado pelo egoísmo, pela arrogância, pela intolerância, pelo isolacionismo". Uma conferência onde estiveram sentados lado a lado o ministro dos Negócios Estrangeiros, o inefável Rangel, com a criminosa de guerra, sionista e antiga ministra dos Negócios Estrangeiros israelita, Tzipi Livni. Para se dizer que “diz-me com quem andas e digo-te quem és!”. Sabendo-se da natureza dúplice e traiçoeira do actual PR, é perfeitamente compreensível que as elites procurem figura mais confiável e corajosa para defender o cacete em caso de grave crise económica que será sempre crise social, daí se ter intensificado desde há algum tempo a campanha da candidatura do almirante das vacinas e dos barcos avariados.

Não será preciso saber contar pelos dedos para se somar a insegurança e o desejo de reforço do aparelho policial por parte do governo para se chegar à necessidade de se catapultar para Belém um homem das casernas ou dos submarinos, não haverá diferença, para o mais elevado cargo da República. Nem será preciso relembrar a abjecta atitude de humilhação pública da tripulação que se recusou ir para o mar em barco velho e avariado para ir perseguir os russos. Ou ouvir as atoardas de que os portugueses devem estar dispostos a dar a vida pela defesa desta Europa que, até agora, só trouxe pobreza e mais exploração ao povo português, e, mais uma vez, contra o perigo da invasão das tropas russas que qualquer dia entrarão por aí e só irão parar na ribeira de Cheleiros. Uma figura, que só profere atoardas belicistas e reaccionárias, que ainda não manifestou o mínimo esboço de ideia sobre a identificação e subsequente resolução dos problemas que mais afectam o povo português, será a mais indicada para chefiar um regime que de democrático só acabará por ter o nome.

Ao acontecer, estaremos perante o fim desta democracia de opereta e o início de uma democracia musculada, um fascismo brando, talvez neste momento a solução mais adequada para a superação da crise do capitalismo nacional por parte das elites. Parte significativa da classe média irá alienar de boa vontade o voto, e possivelmente até uma fatia da classe dos trabalhadores já fartos destes políticos venais e hipócritas. E a tarefa poderá ser, mais uma vez, facilitada pelo PS que se apresentar, à semelhança das últimas vezes, e parece que vai repetir-se, mais do que um candidato e do género daquele que está a ser preparado, o Seguro da abjecta e cobarde “abstenção violenta” ao governo de Passos Coelho que pôde governar à sua livre vontade. Com certeza que a operação irá ter o maior sucesso. Nem o meia-leca (1,62 m de altura, segundo Wikipedia) do moço de recados de Marcelo, ou “bruxo de Guimarães”, terá hipótese, mesmo que fortemente apoiado pelo partido e pelo actual PR.

O circo está montado. O OE já está aprovado; o PSD irá tentar novas eleições para ter maioria absoluta e poder fazer o que lhe apetecer; a caserna irá para Belém; este ano comemorou-se o 25 de Novembro, como negação do 25 de Abril e da derrota da revolução proletária, para o ano será o 26 de Maio; os trabalhadores irão ficar sem direitos e terão de ser escravos tout court, caso não lutem contra o tenebroso plano. Os tempos são de cólera.

Imagem: "Chapéus há muitos" in Henricartoon

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Esquecimento organizado

 

Por Chris Hedges

NOVA IORQUE: Estou no Centro de Informação de Krikor e Clara Zohrab, junto à Catedral Arménia de St. Vartan, em Manhattan. Tenho nas mãos um livro de memórias escrito à mão, encadernado, que inclui poesia, desenhos e imagens de álbuns de recortes, de Zaven Seraidarian, um sobrevivente do genocídio arménio. A capa do livro, um dos seis volumes, diz “Bloody Journal”. Os outros volumes têm títulos como “Drops of Springtime”, “Tears” e “The Wooden Spoon”.

“O meu nome permanecerá imortal na terra”, escreve o autor. “Vou falar sobre mim e contar-vos mais.”

O centro  alberga  centenas de documentos, cartas, mapas desenhados à mão de aldeias que desapareceram, fotografias sépia, poemas, desenhos e histórias – muitas das quais não traduzidas – sobre os costumes, tradições e famílias notáveis ​​das comunidades arménias perdidas.

Jesse Arlen, o diretor do centro, olha desamparado para o volume que tenho na mão.

“Provavelmente ninguém leu, olhou ou sabia que estava aqui”, diz.

Abre uma caixa e entrega-me um  mapa desenhado à mão  por Hareton Saksoorian da aldeia de Havav em Palu, onde os arménios em 1915 foram massacrados ou expulsos. Saksoorian desenhou o mapa de memória depois de escapar. Os desenhos das casas arménias têm nomes minúsculos pintados com nomes de pessoas mortas há muito tempo. 

Este será o destino dos palestinianos em Gaza. Também irão em breve lutar para preservar a memória, para desafiar um mundo indiferente que assistiu enquanto eram massacrados. Procurarão também obstinadamente preservar restos da sua existência. Escreverão também memórias, histórias e poemas, desenharão mapas de aldeias, campos de refugiados e cidades que foram destruídas, contarão histórias dolorosas de carnificina, carnificina e perda. Também nomearão e condenarão os seus assassinos, lamentarão o extermínio de famílias, incluindo milhares de crianças, e lutarão para preservar um mundo desaparecido. Mas o tempo é um mestre cruel.

A vida intelectual e emocional daqueles que são expulsos da sua terra natal é definida pelo cadinho do exílio, o que o estudioso palestiniano Edward Said me disse ser “a ruptura incurável forçada entre um ser humano e um local de origem”. O livro “Out of Place” de Said é um registo desse mundo perdido.

O poeta arménio  Armen Anush  foi criado num orfanato em Alepo, na Síria. Capta a sentença de prisão perpétua daqueles que sobrevivem ao genocídio no seu poema “Sacred Obsession”.

Ele escreve:

      País da luz, visitas-me todas as noites enquanto durmo.

      Todas as noites, exaltada, como uma venerável deusa,

      Trazes novas sensações e esperanças à minha alma exilada.

      Todas as noites alivias as oscilações do meu caminho.

      Todas as noites revelas os desertos sem limites,

      Os olhos abertos dos mortos, o choro das crianças ao longe,

      O crepitar e a chama vermelha dos inúmeros corpos queimados,

      E a caravana desabrigada, sempre insegura, sempre vacilante.

      Todas as noites a mesma cena infernal e mortal –

      O cansado Eufrates lavando o sangue dos cadáveres selvagens,

      As ondas divertindo-se com os raios de sol,

      E aliviar o fardo desse peso inútil e cansativo.

      Os mesmos poços húmidos e negros de corpos carbonizados,

      O mesmo fumo espesso envolvendo todo o deserto sírio.

      As mesmas vozes das profundezas, os mesmos gemidos, suaves e sem sol,

      E a mesma barbárie brutal e implacável da máfia turca.

O poema termina, no entanto, com um apelo não para que estes terrores nocturnos acabem, mas para que “venham ter comigo todas as noites”, para que “a chama dos seus heróis” “acompanhe sempre os meus dias”. 

“A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”, recorda-nos Milan Kundera.

É melhor suportar um trauma incapacitante do que esquecer. Quando esquecemos, quando as memórias são expurgadas – o objectivo de todos os assassinos genocidas – somos escravizados a mentiras e mitos, separados das nossas identidades individuais, culturais e nacionais. Já não sabemos quem somos.

“É preciso tão pouco, tão infinitamente pouco, para uma pessoa atravessar a fronteira para além da qual tudo perde o sentido: o amor, as convicções, a fé, a história”, escreve Kundera em “O Livro do Riso e do Esquecimento”. “A vida humana — e aqui reside o seu segredo — realiza-se na proximidade imediata dessa fronteira, mesmo em contacto direto com ela; não está a quilómetros de distância, mas a uma fração de polegada.”

Aqueles que atravessaram essa fronteira regressam a nós como profetas, profetas que ninguém quer ouvir.

Os antigos gregos acreditavam que, enquanto as almas dos defuntos eram transportadas para o Hades, eram obrigados a beber a água do rio Lete para apagar a memória. A destruição da memória é a obliteração final do ser, o último ato de mortalidade. A memória é a luta para deter a mão do barqueiro.

O genocídio em Gaza reflecte a aniquilação física dos cristãos arménios pelo Império Otomano. Os turcos otomanos, que temiam uma revolta nacionalista como a que convulsionou os Balcãs, expulsaram quase todos os dois milhões de arménios da Turquia. Homens e mulheres eram geralmente separados. Os homens eram muitas vezes imediatamente assassinados ou enviados para campos de extermínio, como os de Ras-Ul-Ain – em 1916, mais de 80 mil arménios foram ali massacrados – e de Deir-el-Zor, no deserto sírio. Pelo menos um milhão foram forçados a marchas da morte – não muito diferentes dos palestinianos em Gaza que foram deslocados à força por Israel, até uma dúzia de vezes – nos desertos onde hoje são a Síria e o Iraque. Aí, centenas de milhares de pessoas foram massacradas ou morreram de fome, exposição e doença. Cadáveres cobriam a extensão do deserto. Em 1923, cerca de 1,2 milhões de arménios estavam mortos. Os orfanatos de todo o Médio Oriente foram inundados com cerca de 200 mil crianças arménias indigentes.

A resistência condenada de várias aldeias arménias nas montanhas ao longo da costa da actual Turquia e Síria que optaram por não obedecer à ordem de deportação foi captada no romance de Franz Werfel “Os Quarenta Dias de Musa Dagh”.  Marcel Reich-Ranicki, um crítico literário polaco-alemão que sobreviveu ao Holocausto, disse que o livro foi amplamente lido no gueto de Varsóvia, que organizou uma revolta condenada em Abril de 1943.

Em 2000, quando tinha 98 anos,  entrevistei  o escritor e cantor  Hagop H. Asadourian, um dos últimos sobreviventes do genocídio arménio. Nasceu na aldeia de Chomaklou, no leste da Turquia, e foi deportado, juntamente com o resto da sua aldeia, em 1915. A sua mãe e quatro das suas irmãs morreram de tifo no deserto da Síria. Passariam 39 anos até que se reunisse com a sua única irmã sobrevivente, de quem foi separado uma noite perto do Mar Morto, enquanto fugiam com um bando de órfãos arménios da Síria para Jerusalém.

Disse-me que escreveu para dar voz às 331 pessoas com quem se arrastou para a Síria em Setembro de 1915, das quais apenas 29 sobreviveram.

“Nunca se pode realmente escrever o que aconteceu”, disse Asadourian. “É muito macabro. Ainda luto comigo mesmo para me lembrar de como foi. Escreve porque precisa. Tudo brota dentro de si. É como um buraco que se enche constantemente de água e nenhuma quantidade de água o esvaziará. É por isso que continuo.”

Parou para se recompor antes de continuar.

“Quando chegou a altura de enterrar a minha mãe, tive de pedir a dois outros rapazes para me ajudarem a carregar o corpo dela até um poço onde estavam a despejar os cadáveres”, disse. “Fizemos isto para que os chacais não os comessem. O fedor era terrível. Havia enxames de moscas negras a zumbir na abertura. Empurrámo-la primeiro com os pés, e os outros rapazes, para escapar ao cheiro, desceram a colina a correr. Eu fiquei. Eu tive de assistir. Vi a cabeça dela, ao cair, bater de um lado do poço e depois do outro antes de desaparecer. Na altura, não senti absolutamente nada.”

Parou, visivelmente abalado.

“Que raio de filho é este?” – perguntou com voz rouca.

Finalmente encontrou o caminho para um orfanato em Jerusalém.

“Estas coisas penetram em si, não apenas uma vez, mas ao longo da vida, ao longo da vida, ao longo de todos os dias”,  disse  a um entrevistador da USC Shoah Foundation. “Tenho 98 anos. E hoje, até hoje, não me posso esquecer de nada disto. Esqueci-me do que vi ontem talvez, mas não podia esquecer estas coisas. E, no entanto, temos de implorar às nações que reconheçam o genocídio. Perdi 11 membros da minha família e tenho de implorar às pessoas que acreditem em mim. Isso é o que mais te magoa. É um mundo terrível, uma experiência terrível.”

Os seus 14 livros foram uma luta contra o apagamento, mas quando falei com ele admitiu que o trabalho do exército turco estava agora quase completo. O seu último livro foi “The Smoldering Generation”, que disse ser “sobre a perda inevitável da nossa cultura”. 

O presente é algo em que os mortos não têm qualquer participação.

“Ninguém toma o lugar daqueles que já partiram”, disse, sentado em frente a uma janela panorâmica que dava para o seu jardim em Tenafly, Nova Jérsia. “Os seus filhos não o compreendem neste país. Não pode culpá-los.

O mundo dos arménios no leste da Turquia, mencionado pela primeira vez pelos gregos e persas em 6 a.C., tal como Gaza, cuja história abrange 4.000 anos, praticamente desapareceu. As contribuições da cultura arménia são esquecidas. Foram os monges arménios, por exemplo, que resgataram do esquecimento obras de escritores gregos antigos, como Fílon e Eusébio. 

Tropecei nas ruínas de aldeias arménias quando trabalhava como repórter no sudeste da Turquia. Tal como as aldeias palestinianas destruídas por Israel, estas aldeias não apareciam nos mapas. Aqueles que cometem genocídio procuram a aniquilação total. Nada deve permanecer. Especialmente a memória. 

Esta será a nossa próxima batalha. Não nos devemos esquecer.

Imagem: “Não nos esqueça” - por Mr. Fish

Fonte

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Direito à Saúde: A validade da análise crítica das desigualdades de Marx

 

Stéphane Barbas*

O formidável filme de Raoul Peck, O Jovem Marx, reaviva o interesse pelo pensamento de Marx e convida à sua (re)leitura.

Desde a crise de 2008, com os perigos que tem causado ao planeta, que o capitalismo já não é visto como o fim da História. Este interesse pelo marxismo estende-se também a áreas como a medicina e a saúde, mesmo entre aqueles que estão longe dos círculos militantes. A revista The Lancet, antiga e prestigiada revista médica britânica, publicou numa edição recente uma contribuição do seu editor-chefe, Richard Horton, sob o título "Medicine and Marx" (vol. 390, 4 de novembro de 2017).

O autor sublinha que, apesar do descrédito provocado pela queda da União Soviética, o pensamento de Marx é irrefutavelmente atual. O aniversário do nascimento de Marx, que será comemorado a 5 de maio de 2018, será um momento propício para reavaliar os seus contributos. As ideias marxistas estão mais uma vez a permear o debate político, particularmente sobre os problemas de saúde, aos quais o capitalismo e os mercados são incapazes de responder.

A privatização, o poder das elites médicas, a crença eufórica no progresso técnico, o capitalismo filantrópico, as tendências neo-imperialistas da política de saúde global, as doenças inventadas pelos laboratórios ou a exclusão e estigmatização de populações inteiras são alguns dos problemas para os quais o marxismo pode contribuir uma análise crítica.

O marxismo é também um apelo à luta por valores como a igualdade social, o fim da exploração e a luta contra a saúde considerada mais uma mercadoria. O agravamento das desigualdades à escala global confere ao debate sobre os pontos acima referidos a sua verdadeira relevância. Como demonstra o epidemiologista inglês Richard Wilkinson, não é de todo necessário ser marxista para avaliar o que a medicina ainda pode aprender com Marx.

Recorde-se ainda que as preocupações com a saúde pública são contemporâneas do nascimento do marxismo com o livro de Engels, A Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra, (1845). Marx referir-se-á frequentemente a este livro do seu amigo.

No Livro I de O Capital, particularmente no capítulo sobre a jornada de trabalho, Marx denuncia veementemente as consequências da violência da exploração sobre a saúde dos trabalhadores. O problema do trabalho infantil é o exemplo mais significativo desta violência. Há em Marx um interesse real tanto nos problemas de saúde como na protecção das crianças. O filósofo alemão cita numerosos testemunhos de médicos que denunciam nos seus relatórios o estado de saúde dos trabalhadores e a exploração das crianças. Segundo o médico inglês Arledge, por exemplo, os oleiros têm “uma altura atrofiada, são anémicos, estão sujeitos a dispepsia, problemas hepáticos e renais e reumatismo”. Haveria mesmo asma e tuberculose (tuberculose) típicas dos oleiros.

Crianças de 5 ou 6 anos trabalham frequentemente em fábricas de fósforos químicos numa atmosfera saturada de fósforo. É o inferno de Dante, diz Marx. O médico-chefe do hospital de Worcester escreve que “ao contrário das afirmações egoístas de alguns empregadores, declaro e certifico que a saúde das crianças sofre muito com estas condições”. Isto não impede aqueles a quem Marx chama ironicamente “amigos do comércio” de justificar o trabalho infantil, invocando muitas vezes a moralidade e a educação.

Marx sublinha o seguinte: “O capital usurpa o tempo necessário para o crescimento, o desenvolvimento, bem como o necessário para manter o corpo em boa saúde… Rouba o tempo que deveria ser utilizado para respirar ar puro e desfrutar da luz solar.”

“A antropologia capitalista (acrescentou Marx) decreta que a infância deve durar até aos dez anos, no máximo onze.” Hoje, no século XXI, a “antropologia capitalista” decreta a idade em que nos podemos reformar.

Marx gostava de dar ao capital a imagem de um vampiro. “O capital é trabalho morto que, tal como um vampiro, só ganha vida sugando o trabalho vivo.”

A saúde é o sangue da força de trabalho com que o capital é alimentado. Mas se a saúde dos trabalhadores é a fonte da riqueza, o capitalista não tem de cuidar dela, de cuidar dela. Tem “o exército industrial de reserva” que fornecerá sempre mão-de-obra graças, ontem, à sobrepopulação de trabalhadores, ao desemprego, hoje. O direito à saúde foi sempre uma conquista da classe trabalhadora contra o capital.

É necessário, hoje mais do que nunca, lembrar que os sistemas de Segurança Social são financiados com aquela parte dos salários extraída do capital para garantir a saúde dos trabalhadores a longo prazo e não apenas a saúde que é imediatamente útil para a produção. Não deve, por isso, surpreender ninguém que esta parte diferida do salário que permite “respirar o ar puro e desfrutar do sol” seja rebatizada de “fardo social” e vergonhosamente acusada de aumentar “o custo do trabalho”, de provocar a histeria “dos amigos do comércio.” Para estes últimos, os seus benefícios serão sempre muito mais valiosos do que a saúde dos homens e das mulheres.

A riqueza inerente à força de trabalho não é explicada através da fisiologia ou de algum misterioso princípio vital guardado secretamente pela medicina, mas através das relações sociais.

A medicina, por sua vez, permitirá que o homem social seja muito mais tido em conta naquilo que determina a saúde. 

*Psiquiatra infantil.

Fonte

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

A Democracia e o Estado

 

Friedrich Engels

A democracia dos EUA vista por Engels em 1891 e perfeitamente actual: "A nação é impotente contra estes dois grandes cartéis de políticos pretensamente ao seu serviço, mas que na realidade a dominam e saqueiam"

A Comuna teve mesmo de reconhecer, desde logo, que a classe operária, uma vez chegada à dominação, não podia continuar a administrar com a velha máquina de Estado; que esta classe operária, para não perder de novo a sua própria dominação, acabada de conquistar, tinha, por um lado, de eliminar a velha maquinaria de opressão até aí utilizada contra si própria, mas, por outro lado, de precaver-se contra os seus próprios deputados e funcionários, ao declarar estes, sem qualquer excepção, revogáveis a todo o momento.

Em que consistia a qualidade característica do Estado, até então? A sociedade tinha criado originalmente os seus órgãos próprios, por simples divisão de trabalho, para cuidar dos seus interesses comuns. Mas estes órgãos, cuja cúpula é o poder de Estado, tinham-se transformado com o tempo, ao serviço dos seus próprios interesses particulares, de servidores da sociedade em senhores dela. Como se pode ver, por exemplo, não meramente na monarquia hereditária, mas igualmente na república democrática. Em parte alguma os «políticos» formam um destacamento da nação mais separado e mais poderoso do que precisamente na América do Norte.

Ali, cada um dos dois grandes partidos aos quais cabe alternadamente a dominação é ele próprio governado por pessoas que fazem da política um negócio, que especulam com lugares nas assembleias legislativas da União e de cada um dos Estados, ou que vivem da agitação para o seu partido e são, após a vitória deste, recompensados com cargos. É sabido que os americanos procuram, desde há trinta anos, sacudir este jugo tornado insuportável e que, apesar de tudo, se atascam sempre mais fundo nesse pântano da corrupção.

É precisamente na América que podemos ver melhor como se processa esta autonomização do poder de Estado face à sociedade, quando originalmente estava destinado a ser mero instrumento desta. Não existe ali uma dinastia, uma nobreza, um exército permanente — exceptuados os poucos homens para a vigilância dos índios — nem burocracia com emprego fixo ou direito à reforma. E, não obstante, temos ali dois grandes bandos de especuladores políticos que, revezando-se, tomam conta do poder de Estado e o exploram com os meios mais corruptos para os fins mais corruptos — e a nação é impotente contra estes dois grandes cartéis de políticos pretensamente ao seu serviço, mas que na realidade a dominam e saqueiam.

Contra esta transformação, inevitável em todos os Estados até agora existentes, do Estado e dos órgãos do Estado, de servidores da sociedade em senhores da sociedade, aplicou a Comuna dois meios infalíveis. Em primeiro lugar, ocupou todos os cargos administrativos, judiciais, docentes, por meio de eleição por sufrágio universal dos interessados, e mais, com revogação a todo o momento por estes mesmos interessados. E, em segundo lugar, ela pagou por todos os serviços, grandes e pequenos, apenas o salário que outros operários recebiam. O ordenado mais elevado que ela pagava era de 6000 francos. Assim se fechou a porta, eficazmente, à caça aos cargos e à ganância da promoção, mesmo sem os mandatos imperativos que, além do mais, no caso dos delegados para corpos representativos ainda foram acrescentados.

Esta destruição do poder de Estado até aqui existente e a sua substituição por um novo, na verdade democrático, está descrita em pormenor no terceiro capítulo da Guerra Civil. Mas era necessário entrar resumidamente aqui, mais uma vez, nalguns traços daquele porque, precisamente na Alemanha, a superstição do Estado transpôs-se da filosofia para a consciência geral da burguesia e mesmo de muitos operários.

Segundo a representação filosófica, o Estado é a «realização da Ideia», ou o reino de Deus na terra traduzido para o filosófico, domínio onde se realizam ou devem realizar-se a verdade e a justiça eternas. E daí resulta, pois, uma veneração supersticiosa do Estado e de tudo o que com o Estado se relaciona, a qual aparece tanto mais facilmente quanto se está habituado, desde criança, a imaginar que os assuntos e interesses comuns a toda a sociedade não poderiam ser tratados de outra maneira do que como têm sido até aqui, ou seja, pelo Estado e pelas suas autoridades bem providas. E crê-se ter já dado um passo imensamente audaz quando alguém se liberta da crença na monarquia hereditária e jura pela república democrática.

Mas, na realidade, o Estado não é outra coisa senão uma máquina para a opressão de uma classe por uma outra e, de facto, na república democrática não menos do que na monarquia; no melhor dos casos, um mal que é legado ao proletariado vitorioso na luta pela dominação de classe e cujos piores aspectos ele não poderá deixar de cortar imediatamente o mais possível, tal como no caso da Comuna, até que uma geração crescida em novas, livres condições sociais, se torne capaz de se desfazer de todo o lixo do Estado.

(Introdução de Friedrich Engels à Edição de 1891 de “A Guerra Civil em França”, Karl Marx)