Friedrich Engels
A democracia dos EUA vista por Engels em
1891 e perfeitamente actual: "A nação é impotente contra estes dois
grandes cartéis de políticos pretensamente ao seu serviço, mas que na realidade
a dominam e saqueiam"
A Comuna teve mesmo de reconhecer,
desde logo, que a classe operária, uma vez chegada à dominação, não podia
continuar a administrar com a velha máquina de Estado; que esta classe
operária, para não perder de novo a sua própria dominação, acabada de
conquistar, tinha, por um lado, de eliminar a velha maquinaria de opressão até
aí utilizada contra si própria, mas, por outro lado, de precaver-se contra os
seus próprios deputados e funcionários, ao declarar estes, sem qualquer
excepção, revogáveis a todo o momento.
Em que consistia a qualidade característica do
Estado, até então? A sociedade tinha criado originalmente os seus órgãos
próprios, por simples divisão de trabalho, para cuidar dos seus interesses
comuns. Mas estes órgãos, cuja cúpula é o poder de Estado, tinham-se
transformado com o tempo, ao serviço dos seus próprios interesses particulares,
de servidores da sociedade em senhores dela. Como se pode ver, por exemplo, não
meramente na monarquia hereditária, mas igualmente na república democrática. Em
parte alguma os «políticos» formam um destacamento da nação mais separado e
mais poderoso do que precisamente na América do Norte.
Ali, cada um dos dois grandes partidos aos
quais cabe alternadamente a dominação é ele próprio governado por pessoas que
fazem da política um negócio, que especulam com lugares nas assembleias
legislativas da União e de cada um dos Estados, ou que vivem da agitação para o
seu partido e são, após a vitória deste, recompensados com cargos. É sabido que
os americanos procuram, desde há trinta anos, sacudir este jugo tornado
insuportável e que, apesar de tudo, se atascam sempre mais fundo nesse pântano
da corrupção.
É precisamente na América que podemos ver
melhor como se processa esta autonomização do poder de Estado face à sociedade,
quando originalmente estava destinado a ser mero instrumento desta. Não existe
ali uma dinastia, uma nobreza, um exército permanente — exceptuados os poucos
homens para a vigilância dos índios — nem burocracia com emprego fixo ou
direito à reforma. E, não obstante, temos ali dois grandes bandos de
especuladores políticos que, revezando-se, tomam conta do poder de Estado e o
exploram com os meios mais corruptos para os fins mais corruptos — e a nação é
impotente contra estes dois grandes cartéis de políticos pretensamente ao seu
serviço, mas que na realidade a dominam e saqueiam.
Contra esta transformação, inevitável em todos
os Estados até agora existentes, do Estado e dos órgãos do Estado, de
servidores da sociedade em senhores da sociedade, aplicou
a Comuna dois meios infalíveis. Em primeiro lugar, ocupou todos os cargos
administrativos, judiciais, docentes, por meio de eleição por sufrágio
universal dos interessados, e mais, com revogação a todo o momento por estes
mesmos interessados. E, em segundo lugar, ela pagou por todos os serviços,
grandes e pequenos, apenas o salário que outros operários recebiam. O ordenado
mais elevado que ela pagava era de 6000 francos. Assim se fechou a porta,
eficazmente, à caça aos cargos e à ganância da promoção, mesmo sem os mandatos
imperativos que, além do mais, no caso dos delegados para corpos
representativos ainda foram acrescentados.
Esta destruição do poder de Estado até aqui
existente e a sua substituição por um novo, na verdade democrático, está
descrita em pormenor no terceiro capítulo da Guerra Civil. Mas era
necessário entrar resumidamente aqui, mais uma vez, nalguns traços daquele
porque, precisamente na Alemanha, a superstição do Estado transpôs-se da
filosofia para a consciência geral da burguesia e mesmo de muitos operários.
Segundo a representação filosófica, o Estado é
a «realização da Ideia», ou o reino de Deus na terra traduzido para o
filosófico, domínio onde se realizam ou devem realizar-se a verdade e a justiça
eternas. E daí resulta, pois, uma veneração supersticiosa do Estado e de tudo o
que com o Estado se relaciona, a qual aparece tanto mais facilmente quanto se
está habituado, desde criança, a imaginar que os assuntos e interesses comuns a
toda a sociedade não poderiam ser tratados de outra maneira do que como têm sido
até aqui, ou seja, pelo Estado e pelas suas autoridades bem providas. E crê-se
ter já dado um passo imensamente audaz quando alguém se liberta da crença na
monarquia hereditária e jura pela república democrática.
Mas, na realidade, o Estado não é outra coisa
senão uma máquina para a opressão de uma classe por uma outra e, de facto, na
república democrática não menos do que na monarquia; no melhor dos casos, um
mal que é legado ao proletariado vitorioso na luta pela dominação de classe e
cujos piores aspectos ele não poderá deixar de cortar imediatamente o mais
possível, tal como no caso da Comuna, até que uma geração crescida em
novas, livres condições sociais, se torne capaz de se desfazer de todo o lixo do
Estado.
(Introdução de Friedrich Engels à Edição de
1891 de “A Guerra Civil em França”, Karl Marx)
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