quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Nove meses depois, o secretário demitido e o deputado cleptomaníaco

 

O governo minoritário do PSD e CDS vai-se aguentando no poleiro por várias razões: não tem oposição que se veja dentro da Assembleia da República, o PS aprova as medidas mais gravosas para os interesses do cidadão comum, exemplo, alteração à Lei dos Solos, que vai exponenciar a especulação imobiliária e agravar a falta de habitação popularmente acessível, vai distribuindo algumas migalhas pelos diversos sectores da população activa e pelos aposentados. Montenegro continua a jogar em possível maioria absoluta resultante de eleições antecipadas, que infatigavelmente vem procurando. Mas antes que aquelas aconteçam, há que acautelar as eleições autárquicas que acontecerão antes do final do ano. No entrementes, o holandês secretário-geral da Nato encontrou-se com o presidente e o primeiro-ministro “sugerindo” que o governo tem de gastar mais de 3% do PIB na indústria da guerra, à custa das saúde, da educação e das pensões de reforma; o PR Marcelo convocou o seu conselho de estado, para o qual convidou o homem da alta finança (Goldman Sachs) na União Europeia, Mario Draghi, aonde irá “aconselhar” Portugal a entregar a Bruxelas 5% do PIB, para “investir” no desenvolvimento económico para a competitividade europeia.

Quanto à solidez do governo AD, deve-se dizer que a sua fragilidade advém mais da fraca qualidade de quem o integra do que propriamente de factores externos. A demissão do secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, que terá criado duas empresas para investir no imobiliário, precisamente sector em que o governo estava a legislar, mostra que este governo não difere muito do de Costa/PS quanto a esta matéria. O perfil do governante não foge ao habitual: já tinha sido presidente da câmara de Bragança, onde é acusado de algumas habilidades ainda não bem explicadas. E se, até ao momento, os estragos são menores do que os sofridos em mesmo período tempo pelo governo anterior, o facto deve-se a que não tem estado sujeito às intrigas do PR Marcelo, aos ataques cerrados da oposição ou dos media mainstream. Contudo, mais episódios de demolição se seguirão.

Enquanto o governo procura segurança e estabilidade, rebenta o caso do deputado da extrema-direita que terá andado a gamar umas malas de viagem nos aeroportos, e que a imprensa diz já ter sido do PS. De certeza que ficará para a história da criminalidade dos pilha-galinhas, eventualmente da psiquiatria, apesar dos distúrbios de personalidade não terem tratamento, e dos anais do parlamentarismo saído do 25 de Abril. Depois de conhecidas as proezas e ter saído do partido pelo próprio pé, segundo as suas palavras, a figura passou a deputado “não inscrito” vendo duplicar assim os seus proventos mensais para mais de 10 mil euros. Chamem-lhe doido! Muito dificilmente irá renunciar ao mandato, com ou sem baixa psiquiátrica. A Assembleia da República revela à evidência a natureza que sempre foi a sua desde o início, ou seja, desde a entrada em vigor da Constituição da República, 1976, um centro de nepotismo, vacuidades e corrupção. Uma casa mal frequentada.

Poderá dizer-se que será um caso raro e insólito, mas deveremos recordar que, só nestes nove meses de legislatura, já foram constituídos arguidos nove parlamentares do PS, PSD, Chega e IL, uns por corrupção, outros por zangas partidárias, o que significa disputas pelo tacho. Convêm referir que são onze os deputados do partido de extrema direita - legalizado pelo Tribunal Constitucional em aparente contradição conhecendo-se o texto da dita Lei Fundamental do República - que tiveram ou ainda têm problemas com a Justiça. Este partido e o seu chefe chegaram ao ponto de se arvorarem em agentes denunciantes, vulgo “bufos”, para alijarem o fardo incómodo de terem incluído nas fileiras um vulgar gatuno que lhes poderá fazer perder muitos votos nas próximas eleições. É que esta quase certa quebra de votos será uma condição sine qua non para que o PSD possa alcançar a tão desejada maioria absoluta.

O líder actual do PS, apresentado pelos media do regime como homem à esquerda e um radical, com o intuito de o afastar da classe média que decide eleições, resolveu, não conseguindo esconder o que lhe vai na alma e na mente, abraçar-se ao ideário ultra-liberal do montenegrino PSD. Começou pela viabilização do Orçamento de Estado de 2025, passou pela aprovação da Lei dos Solos, preparou o terreno e instrumentos para a privatização da TAP e da “reforma” da Segurança Social, recentemente anunciada pela ministra e esposa de banqueiro, a pretexto de assegurar a sua sustentabilidade, e acabando na reposição do partido quanto à questão da imigração. Mas haverá mais. Ao cabo e ao resto, assistimos à continuação do bloco central de interesses. Ambos os partidos da governação não diferem muito da extrema-direita, nacionalista e xenófoba, agora nem no discurso, todos almejam o apoio eleitoral da pretensa e medrosa classe média – estamos em ano eleitoral autárquico.

Mal o Nuninho Santos fechou a boca, as reacções dentro do partido de imediato choveram, umas de apoio e outras de aparente repúdio. Parece que estas questões não são discutidas amplamente a nível entre dirigentes e militantes, mas decididas por um restrito núcleo de caciques com o único objectivo de reconquistar o poder governativo. Este partido que, segundo dizem, surgiu no quadro da luta contra o fascismo, está rapidamente a apodrecer e por este caminho irá desaparecer ou fundir-se com o PSD, porque não será governo na década mais próxima. E com o agravamento da situação económica do país e/ou de uma possível guerra na Europa, cenário que não é de todo impossível nem disparatado, o PS, o partido do “socialismo democrático” desaparecerá de vez. E talvez seja uma coisa boa, clarificará os campos.

Ainda sobre a solidez do governo AD e da sua durabilidade intrínseca, se perdurar será graças aos apoios externos, a demissão do director executivo da SNS por razões de falta de ética pessoal, acumulando as funções oficiais com os biscates no SNS, diz bem das linhas ou das agulhas com que se cose o governo. Este órgão de direcção do SNS visa essencialmente, embora o disfarça, a privatização da Saúde através da diluição do SNS em "Sistema" de Saúde onde os interesses dos lóbis privados do sector serão reis e senhores. Relembrar que este organismo é muito semelhante ao que foi criado no Reino Unido para liquidar o Serviço Público de Saúde. Esta privatização, tal como todas as anteriores, está a ser feita em meio da maior das corrupções e dos assaltos aos dinheiros públicos. No momento, estamos a assistir a toda a sorte de discussões, debates e opiniões, vazadas em todos os órgãos de comunicação social mainstream e a toda a hora, sobre qual a melhor forma de privatizar a saúde de molde a satisfazer os apetites de todos os parasitas interessados, desde seguros de saúde e clínicas privadas a instituições sociais e grupos de médicos empresários (como a directora da urgência do Hospital de Portimão que está de baixa há sete meses mas trabalha no privado) e outros afins; a fila é imensa.

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Voltando ao parlamento português, este já se orgulha de um assaz rico curriculum, algumas dezenas de deputados perderam a imunidade parlamentar para poderem responder à justiça nos últimos anos. Entre 2016 e 2019, foram 23 deputados, todos do PS e do PSD; quase o dobro em relação ao governo de Coelho/Portas, quando 13 deputados estiveram às contas com os tribunais; o mesmo número do tempo do governo PS/Sócrates; conclui-se que o número tem vindo a acelerar ultimamente. Acontece um pouco à semelhança do que se passa no Parlamento Europeu, considerado um dos mais corruptos do mundo. Quase um quarto dos eurodeputados, que serviram durante a legislatura anterior (2019-2024), estiveram envolvidos em alguns negócios obscuros; isto é, dos cerca de 700 deputados, 163 estão envolvidos em 253 casos de ilegalidades ou crimes, incluindo o célebre Qatargate - segundo a plataforma independente de jornalismo de investigação “Follow the Money”. A corrupção medra e constitui o selo neste ocidental atlântico.

A corrupção, o compadrio, o nepotismo sem disfarce, a fraude são mais do que tiques da sociedade burguesa, são-lhe intrínsecos. Fazem parte do ADN do capitalismo, sem esses elementos este não poderia funcionar e prosperar. Contudo, andam por aí uns partidos e políticos, tipicamente pequeno-burgueses, que sonham o impossível de um capitalismo fofinho, com justiça para os trabalhadores, que, por sua vez, deveriam ficar agradecidos pela doçura da sua exploração, mas que, quando se distraem dá-lhes para enfiar a pata na poça. É o que aconteceu com o BE, dito "Bloco de Esquerda", que, não conseguindo dissimular a sua natureza de aprendiz de patrão, despediu funcionários, um deles já antigo no partido, e outros recém-mães, que se viram na rua a pretexto de diminuição das receitas devido à perda de deputados (embora, nessa altura, tivesse cerca de 700 mil euros nas contas bancárias), muito à semelhança de qualquer e vulgar empresa capitalista e contrariando completamente o seu discurso social-democrata. Como se costuma dizer, vale mais um acto do que mil palavras. O BE não deixa de ser também um espelho desta democracia parlamentar burguesa em avançado estado de decomposição. Em próximas eleições legislativas, esta organização, sem ideologia nem referências de classe, arrisca-se a ser uma mera recordação.

Não nos cansamos de salientar que a situação política do país resulta directamente das condições da sua economia, que, também relembramos, é uma economia periférica, frágil, subjugada por uma moeda forte, o euro, que impede o crescimento das exportações, bem como da economia considerada no seu todo. Uma economia aberta, sem indústria pesada, assente maioritariamente no consumo de produtos de importação, com o turismo à cabeça, e na especulação imobiliária. E cujos principais parceiros para compra e venda são os países da União Europeia, mais de 70%. Quando as principais potências económicas da União espirram, o país apanha bronco-pneumonia grave. O desemprego aumentou 5,7% em Dezembro, para 335 mil pessoas; em 2024, os despedimentos colectivos aumentaram 15,3% em relação ao ano anterior, foram 497 despedimentos, isto é, o valor mais elevado desde 2020, segundo dados da Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT); os beneficiários do CSI aumentaram 51% (70 mil) ao longo de 2024.

Ora, onde há fome e exploração há revolta e para a elite será melhor prevenir do que remediar. Daí que, e ao pretexto de se combater a criminalidade resultante do aumento da imigração, se reivindique por alguns dos políticos do regime um reforço do aparelho policial e repressivo. Mais polícias porque estes são poucos!, apesar do rácio de polícias por 100 mil habitantes ser de 450, ou seja, mais 50% acima da média europeia, que é de 300 polícias, e existindo já uma força militar (GNR) a fazer a função de policiamento. O governo AD está receptivo à ideia e limita-se a dar continuidade às políticas do PS neste campo. As instituições veneráveis do estado são assustadiças, como bem ficou comprovado com os envelopes que continham um pó branco enviados à Presidência da República, ao Parlamento e a dois ministérios, da Administração Interna e das Infra-estruturas, e que pôs os nossos corajosos políticos em pânico, tendo mobilizado PSP e GNR. No afinal, veio-se a apurar que o pó não passava de pudim instantâneo. Estariam os políticos da ordem com falta de sobremesa.

Outra dimensão da nossa democracia está no complexo judicial, que não sofreu alteração de remonta desde o 25 de Abril. Relembremos que os juízes do Tribunal Plenário do fascismo – tribunal controlado directamente pela PIDE e responsável pela condenação de muitos cidadãos anti-fascistas, puderam gozar os seus últimos dias abonados por principescas pensões. E como já referimos, por vezes vale mais um acto do que mil palavras: «O Supremo Tribunal libertou um dos traficantes de droga mais procurados de Espanha, o homem estava detido em Portugal e prestes a ser extraditado, mas a detenção foi considerada ilegal porque a Justiça não conseguiu cumprir prazos e agora pode estar fora do país» (da imprensa). Terá sido um oportuníssimo “erro burocrático”! Portugal passou a paraíso para os grandes criminosos, porque já não é o primeiro caso deste género. 

É a democracia que temos, onde a justiça possui uma rede de malha larga que deixa escapar os grandes patifes, mas de malha estreita para os pilha-galinhas ou trabalhadores, imigrantes ou não, que não aceitem as regras do establishment. A democracia liberal burguesa é uma democracia de classe, não é para todos os cidadãos, e o governo limita-se a gerir os negócios da elite enquanto ilude o eleitorado.

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sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

A saúde como negócio

 

O governo AD, pela mão da sua comissária, a farmacêutica Martins, está a concluir rapidamente o processo de transformação da Saúde em negócio, semelhante a qualquer outro. Quem tem dinheiro paga os cuidados, a que deveria aceder por direito próprio, já que este é um direito consagrado na Constituição da República, e como cidadão pagador de impostos; quem não tem dinheiro fica sem assistência quase tout court, na medida em que o acesso torna-se cada vez mais difícil, senão impossível na prática.

A notícia de que o “ceo (director executivo) terá recebido mais de 200 mil euros por acumulação de funções” de diretor do INEM do Norte (Porto) com as de médico tarefeiro nas Urgências de Faro e Portimão, a 550 quilómetros de distância e a mais de cinco horas de carro, não deixa de ser simbólica quanto à natureza da política do governo sobre a Saúde e como está, e continuará, a ser gerido o SNS, ou seja, um simples meio ao serviço de uns quantos que utilizam a doença e a necessidade da população de diversos cuidados de saúde como vulgar instrumento de enriquecimento.

A criação pelo governo do PS de uma direcção executiva do Serviço Nacional de Saúde, fora do ministério da Saúde, foi o meio encontrado, pouco original por já ter sido usado em outros países, nomeadamente no Reino Unido com o mesmo fim: liquidação formal do serviço, criado em 1979 pelo mesmo partido mas com direcção completamente diferente. Para quem não se lembre, o SNS foi criado como alternativa ao combate à corrupção que grassava na Polícia Judiciária, tarefa que, ao que parece, nunca terá sido levada a cabo. É no meio da corrupção, diga-se de passagem, que o processo de desmantelamento está a ser completado por este governo PSD/PP.

Neste Inverno, o tema na ordem do dia tem sido a dificuldade de acesso da população utente às urgências gerais dos hospitais públicos. Publicitam-se os hospitais com mais tempo de espera, empolam-se as demoras, assustam-se os cidadãos e descredibiliza-se ainda mais o SNS. A alternativa, subentende-se, será as urgências dos hospitais privados, estas estarão sempre funcionantes mesmo que os médicos e enfermeiros que aí trabalham sejam, na maioria, os mesmos dos hospitais públicos. Ironicamente, apesar da tragédia, o bastonário da Ordem dos Médicos verte algumas lágrimas de crocodilo e critica “situações desumanas” de espera nas urgências.

A farmacêutica, mantendo ar sério, nega que o plano de Inverno esteja a falhar no SNS. Contudo, a realidade não deixa de ser teimosa, este fim-de-semana, são quatro urgências de obstetrícia/ginecologia e uma pediátrica que estão fechadas, às vezes são mais, terá havido fraca melhoria. O chefe da comissária segue o mesmo guião, afirmando no Parlamento, que o governo reduziu em 20% os tempos de espera nas urgências durante o Natal. É bem possível, porque a obrigatoriedade de se telefonar primeiro para o SNS 24, que não responde em muitos casos, funcionou como meio de dissuasão. Relacionado ou não, a verdade é que a mortalidade nos idosos ficou acima do previsto, e ainda não chegamos ao pico da gripe.

Com o pretexto de disponibilizar camas para doentes afectados pela gripe, alguns hospitais resolveram adiar as cirurgias programadas, Algarve e Almada. Esta decisão de responsáveis da Saúde faz lembrar o que aconteceu com o SNS durante a pandemia covídica, fechar serviços para concentração no combate exclusivo de uma doença cujo índice de mortalidade terá andado pelos 2%, números oficiais. Por que razão a situação não foi acautelada antecipadamente, não terá sido para obrigar os cidadãos a recorrer aos serviços privados que pululam naquelas regiões do país? Relembrar que, em tempo de governo PS (Sócrates) e PSD/PP (Passos Coelho/Paulo Portas), foram encerradas mais de oito mil camas em todo o SNS.

O palco que há muito foi montado: o SNS fecha, o privado abre. As cirurgias não urgentes são suspensas, o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), funcionário público e ex-administrador de instituições privadas, afirma que é "a única solução"; o sindicato dos enfermeiros (SEP) lamenta a insistência no uso de privados para recuperar cirurgias. O Governo retomou o processo de devolução de hospitais às santas casas da misericórdia, iniciado durante o governo PSD/Coelho e entretanto suspenso pelo governo PS/Costa. As oferendas serão os hospitais de Santo Tirso e o de São João da Madeira. Relembrar que Passos Coelho foi condecorado pela Confederação Internacional das Misericórdias pelas doações oferecidas à Igreja Católica. Montenegro parece que está com inveja.

Recentemente soube-se que foi dado “novo golpe profundo” no “desmantelamento” das urgências do Hospital dos Covões. Deixou de haver especialidades hospitalares no Serviço de Urgência (a Medicina Interna foi a última), passando a haver apenas “médicos em contrato de prestação de horas, e que nem sempre decidem estar presentes” (Notícias de Coimbra, 13.01,25). Praticamente, este hospital está a funcionar para consultas externas e pouco mais. Recordar, mais uma vez, que na região de Coimbra a partir do governo do PS/Sócrates, continuado pelo de PSD/CDS/Coelho/Portas e com José Martins Nunes no CA do CHUC (ex-secretário de estado de Cavaco), foram encerradas cerca de meio milhar de camas. Agora, com este governo AD, o trabalho de liquidação será concluído.

Abre-se campo para a livre intervenção dos interesses privados na área da Saúde. O governo dá “via verde” aos privados para comprarem equipamento médico pesado em clara e aberta concorrência com os hospitais públicos. Alguns administradores hospitalares queixam-se de “concorrência desleal”, alertando para a competição que poderá existir de recursos humanos especializados. Claro que os privados disseram de imediato que esperam por mudanças que “permitam o investimento em mais meios de diagnóstico”. Este sector tem sido uma verdadeira galinha de ovos de oiro, daí grande parte dos médicos se “especializarem” em pedir exames complementares de diagnóstico por dá cá aquela palha. E já se criou a ideia em muitos utentes que médico que não requisite análise ou exame não é competente. A saúde virou bazar.

Ordem dos médicos como parte do problema do SNS e não da sua solução. Se recuarmos a 1979 quando o SNS foi instituído por lei da Assembleia da República, a ordem dos médicos veio a terreiro opor-se à medida, a par do PSD e do CDS, que votaram contra, e onde se incluía o então deputado laranja Marcelo Rebelo de Sousa. Ao tempo do médico Gentil Martins, militante do CDS, como bastonário, Cavaco Silva foi aconselhado que haveria muitos médicos e não seria necessário formar mais. Durante o consulado cavaquista poucos médicos se formaram, tendo ficado um hiato entre os médicos mais velhos, que entretanto já se reformaram ou estão no momento a fazê-lo, e os mais novos sem experiência que são já a maioria. Encontramo-nos agora no buraco.

A ordem dos médicos tem sido dirigida por militantes do CDS ou do PSD e têm utilizado a instituição como meio de militância partidária ou de promoção pessoal. O anterior bastonário é um bom exemplo, da ordem saltou para o Parlamento como deputado do PSD, teve azar não foi premiado como ministro, a farmacêutica passou-lhe a perna. Ainda como bastonário geriu, justamente com a farmacêutica Martins, uma conta privada que recolheu mais de 1,4 milhões de euros, um verdadeiro saco azul, durante a pandemia, dinheiro quase todo ele proveniente de grandes laboratórios farmacêuticos. Ainda durante a pandemia a ordem escondeu relatórios que desaconselhavam a administração da vacina covid em crianças.

Mais recentemente e já com novo bastonário, os casos da ordem não se fizeram esperar quanto à privatização do SNS. Mais de mil médicos já assinaram carta que questiona “conflito de interesses” de dirigentes da própria ordem dos médicos. Primeiro, foi o médico Eurico Castro Alves, em Dezembro, que acabou por sair da comissão criada pelo Governo para acompanhar a implementação do novo modelo das urgências de ginecologia/obstetrícia; agora, é o médico Caldas Afonso, que apresentou a reformulação dessas urgências, que é questionado. Parece que este sector é um dos mais apetecidos pelos privados. Entretanto, o Observatório de Violência Obstétrica manifestou-se contra o novo modelo de urgências de ginecologia: "a ministra da Saúde despreza o SNS". Mais do que óbvio.

Os índices de Saúde conhecidos ultimamente ilustram bem a degradação acelerada do estado de saúde e bem-estar dos cidadãos comuns. Mortalidade infantil atingiu o valor mais elevado dos últimos cinco anos, 261 mortes abaixo de um ano de idade; os ditos “especialistas” apontam muitas causas mas esquecem a degradação do SNS. Crescimento abrupto de 15% na mortalidade no grupo etário dos 15 aos 24 anos no triénio 2022-2024, facto que não parece incomodar nem autoridades de Saúde, nem o governo e nem a ordem dos Médicos. Sem serviços adequados de atendimento e agravamento das condições de vida, o resultado não pode ser outro: menos 1133 nascimento em 2024.

Em 2023, mais de 40% das IVG foram realizadas pelo sector privado mas encaminhadas por hospitais públicos. A objecção de consciência de muitos médicos vem a calhar para o negócio, questionamos: serão também objectores no privado? A realidade diz que as clínicas de Badajoz e Vigo realizaram 530 interrupções voluntárias da gravidez a mulheres residentes em Portugal. Como se pode ver, tudo serve para encher a conta bancária de quem fez da Saúde um excelente e lucrativo negócio. Pruridos de consciência!?, não brinquem, porque o assunto é demasiado sério.

Estamos em tempo de gripes e mais o que se prepara do género para breve, não deixa de ser oportuno referir um assunto bem grave: “Os portugueses que tiveram reacções adversas às vacinas covid-19 estão ao abandono”. É a manchete, não da imprensa mainstream, porque conivente com o negócio e com o crime, mas de outra mais corajosa e séria. A razão: “Portugal é dos poucos países da Europa Ocidental que recusa pagar por reacções adversas”. Ficamos a saber que mais de 2.100 pessoas assinaram a ‘Petição Por um Programa do Estado Português de Indemnização das Vítimas de Reações Adversas a Vacinas contra a Covid-19’, a autora da iniciativa é a médica cardiologista Teresa Gomes Mota. No entanto, as ditas “medidas para covid-19" custaram ao estado, dinheiros públicos, 12.688 milhões de euros. Um negócio chorudo. Agora, os incautos vacinados que se amanhem. 

A desgraça de uns, geralmente, é a felicidade de outros. Assim vai a Saúde como negócio nas mãos dos privados. E o (des)governo AD ainda não tem um ano de vida.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Trabalho e vida

Giorgio Agamben

Ouvimos frequentemente elogios à Constituição italiana porque esta colocou o trabalho como alicerce. No entanto, não só a etimologia do termo (trabalho em latim designa um castigo e sofrimento agonizantes), mas também a sua utilização como sinal dos campos de concentração ("O trabalho liberta" estava escrito no portão de Auschwitz) deveria ter colocado em consideração proteger-se contra um significado tão imprudentemente positivo. Desde as páginas do Génesis, que apresentam o trabalho como castigo pelo pecado de Adão, até à frequentemente citada passagem da Ideologia Alemã em que Marx anunciava que na sociedade comunista seria possível, em vez de trabalhar, «fazer esta coisa hoje, amanhã a outra, caçar de manhã, pescar à tarde, criar gado à noite, depois do almoço criticar como quiser", uma saudável desconfiança em relação ao trabalho é parte integrante da nossa tradição cultural.

Há, no entanto, uma razão mais séria e profunda, que deveria desaconselhar fazer do trabalho a base de uma empresa. Provém da ciência, e em particular da física, que define o trabalho através da força que deve ser aplicada a um corpo para o mover. A segunda lei da termodinâmica aplica-se necessariamente ao trabalho assim definido. Segundo este princípio, que é talvez a expressão suprema do sublime pessimismo alcançado pela verdadeira ciência, a energia tende inevitavelmente a degradar-se e a entropia, que exprime a desordem de um sistema energético, tende igualmente inevitavelmente a aumentar. Quanto mais produzirmos trabalho, mais desordem e entropia crescerão irreversivelmente no universo.

Fundar uma sociedade baseada no trabalho significa, portanto, em última análise, dedicá-la não à ordem e à vida, mas à desordem e à morte. Uma sociedade saudável deveria antes reflectir não só sobre as formas como os homens trabalham e produzem entropia, mas também sobre as formas como eles ficam ociosos e contemplam, produzindo aquela negentropia, sem a qual a vida não seria possível.

24 de dezembro de 2024

Imagem: Tropas soviéticas libertam os prisioneiros do campo de concentração nazista de Auschwitz, na Polónia, em 27 de janeiro de 1945 — Foto: Oleg Ignatovich/Sputnik via AFP

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O número de mortos

Repetidas vezes precisamos de meditar na passagem do Apocalipse (6,9-11) em que se lê: «E quando (o cordeiro) abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles cujas gargantas foram mortas porque da palavra de Deus e do testemunho que deram. E clamaram em alta voz, dizendo: “Até quando, ó santo e verdadeiro Senhor, executarás o juízo e vingarás o nosso sangue sobre aqueles que habitam na terra?” E foi dada uma túnica branca a cada um deles, e foi-lhes dito que esperariam mais um pouco, até que se completasse o número dos seus conservos e irmãos, que deviam ser mortos como eles."

A história não terminará e o juízo final não será pronunciado até que o número de justos mortos esteja completo. Será isto que está a acontecer ao nosso redor? E quantas pessoas mais justas terão de ser mortas, dado que as vemos morrer todos os dias? Claro que a história é a história de guerras, mortes e assassinatos. Mas o significado da abertura do quinto selo não é que, no tempo em que vivemos, devamos esperar inertemente que o número de mortos se complete. Mesmo que os jornais não façam mais do que contá-los todos os dias, ignoramos qual é esse número, tal como ignoramos quando o julgamento ocorrerá e se algum dia acontecerá. Vivemos num tempo intermédio e, tal como aqueles que foram degolados, devemos dar testemunho do que vemos e do que acreditamos. Nada mais é a nossa tarefa antes de se completar o número de mortos.

7 de janeiro de 2025

Imagem: O Quinto Selo do Apocalipse - El Greco, 1608

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