domingo, 7 de setembro de 2025

Capitalismo Ignorante

Por Fernando Buen Abad

Estamos a viver uma crise educacional global?

Uma questão séria sobre a crise educativa global do capitalismo que vivemos não pode ser respondida superficialmente ou com números frios retirados de organizações internacionais, que são muitas vezes parte do problema. Não basta simplesmente contabilizar os alunos matriculados, as taxas de abandono, as taxas de alfabetização funcional ou os orçamentos atribuídos às universidades. Esta crise, tal como existe, deve ser entendida em toda a sua densidade histórica, política, económica, semiótica e filosófica. Deve ser considerada a partir das raízes estruturais burguesas que fazem da educação um campo mercenário de disputa, e não apenas a partir das estatísticas que cobrem o drama com uma camada de objectividade demagógica. Em rigor, o que vivemos hoje é um conjunto de crises sobrepostas e entrelaçadas que afectam a educação como sistema e como processo, e que nos obrigam a questionar a própria função das escolas, das universidades e dos projectos de sensibilização como mercadorias.

É essencial lembrar que a educação não flutua num esgar filantrópico neutro; é determinada pela lógica do modo de produção dominante e pela sua ideologia (falsa consciência). Num mundo governado pelo capitalismo globalizado, a educação está sujeita à ditadura do seu mercado. Os seus sistemas educativos são avaliados por critérios de "eficiência", "produtividade" e "competitividade", categorias emprestadas da barbárie corporativa e aplicadas mecanicamente à sua ditadura pedagógica. A educação torna-se, assim, formação comercial, e não um direito humano universal. Em vez de formar sujeitos críticos capazes de transformar a sua realidade, forma operadores dóceis para um mercado de trabalho precário. Esta é a primeira dimensão da crise: a subordinação estrutural da educação ao capital, que a corrompe no seu sentido mais profundo.

Os números confirmam esta tendência. Segundo dados da UNESCO (2023), mais de 244 milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo estão fora da escola. Ao mesmo tempo, mais de 40% dos jovens dos países de baixo rendimento não completam o ensino secundário. Estes números reflectem não só a drenagem de recursos, mas também a desigualdade estrutural do sistema global, no qual o acesso a uma educação de qualidade é impossível ao abrigo das normas e regras do capitalismo. Entretanto, o ensino superior expande-se quantitativamente, mas a sua qualidade crítica é degradada ou anulada. As universidades privadas com padrões baixos ou inexistentes, os programas de curta duração e os diplomas concebidos como produtos de consumo rápido estão a proliferar, com o único propósito de capacitar competências específicas para o mercado. Dar diplomas a ignorantes presunçosos.

A sua crise também se manifesta em termos de conteúdo. Nunca antes houve tanta informação disponível, nunca antes tantos dispositivos para aceder ao conhecimento de lixo; no entanto, nunca a ignorância foi tão funcional ao poder. A chamada "infodemia" multiplica conteúdos fragmentários, superficiais e efémeros, carentes de hierarquia epistemológica. Em vez do conhecimento profundo, fomenta-se a hiperconectividade sem reflexão. Em vez do pensamento crítico, prevalece a lógica do "clique". Esta enxurrada de informação atua como uma distração massiva que degrada a aprendizagem em sala de aula, transformando professores e alunos em repetidores presunçosos de fluxos de comunicação vazios. O capitalismo digital, com os seus algoritmos de segmentação e controlo, introduziu uma nova dimensão à crise educativa: a colonização tecnológica da consciência. Tanto lixo em tantas cabeças, e nada muda.

O problema não é apenas quantitativo ou tecnológico; a sua crise é também filosófica. Em muitos sistemas educativos, o ensino da filosofia, da história crítica, da teoria política e da arte como ferramentas de emancipação foi abandonado. São substituídos por competências instrumentais, módulos de empreendedorismo e formação em resiliência. A sua semiose na educação é uma verborreia despótica para consumidores presunçosos que mastigam linguagens supostamente técnicas de jardim de infância, para camuflar toda a ignorância burguesa dos problemas que o seu poder causa, com exploração do trabalho e injustiça social. São ensinados a adaptar-se, não a questionar. São treinados para sobreviver dentro do sistema, não para o transformar. Assim, a sua crise educativa é também uma crise de sentido; as suas escolas e universidades esqueceram-se por que razão existem. E são especialistas nisso.

Não é por acaso que os governos neoliberais de todo o mundo implementaram políticas de austeridade que desfinanciam a educação pública. Desde a década de 1980, seguindo os ditames do FMI e do Banco Mundial, promovem um modelo de "eficiência educativa" baseado em cortes, privatizações, descentralização e competição entre instituições. Na América Latina, África e Ásia, milhões de escolas carecem de infraestruturas básicas: água potável, casas de banho, eletricidade e internet. Na Europa e nos Estados Unidos, o aumento massivo da dívida estudantil transformou o ensino superior numa armadilha financeira que põe em perigo o futuro de gerações inteiras. Esta não é uma crise acidental; é o resultado de um programa deliberado que procura enfraquecer a educação pública para abrir mais mercados à educação privada.

Mas a sua crise manifesta-se também a um outro nível: o ético e comunicacional. Em muitas salas de aula, sob o disfarce do pluralismo, infiltraram-se ideologias reacionárias, discursos de ódio e camuflagens de extrema-direita, envenenando os alunos e normalizando a intolerância. O progressismo é simulado enquanto os slogans são despojados do seu conteúdo crítico. Neste sentido, a crise educativa mundial é também uma crise de hegemonia semiótica: o próprio significado de democracia, direitos humanos e igualdade é contestado na sala de aula. Os discursos autoritários avançam sob o disfarce da modernidade. A isto acresce a crise do trabalho docente. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) observa que mais de 44 milhões de professores faltam em todo o mundo para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030. Os baixos salários, o trabalho precário, a sobrecarga burocrática e a falta de reconhecimento deterioraram a profissão docente, desencorajando novas vocações. Um sistema educativo global sem professores suficientemente formados e reconhecidos está condenado a aprofundar as suas fracturas. A sua crise educativa afecta não só os alunos, mas também aqueles que leccionam em condições cada vez mais adversas.

No entanto, em muitas regiões, estão a emergir experiências pedagógicas emancipatórias, comunidades a defender escolas públicas, projectos de educação popular a resistir ao mercado e pedagogias críticas a semear consciências transformadoras. Estas iniciativas demonstram que a sua crise não é partilhada por todos, mas sim desigual e combinada. Precisamente no cerne da crise estão as sementes da renovação. Pergunta-se: que força política, que movimento social, que projeto histórico pode articular estas experiências para as transformar em políticas educativas globais?

A nossa Filosofia da Semiose procura abordar a crise educativa burguesa, que é, em última análise, uma crise económica dos signos com que pensamos e agimos. As palavras "qualidade", "eficiência" e "excelência" foram envenenadas pela lógica corporativa e despojadas do seu significado emancipatório. A tarefa é revolucioná-las, restabelecer a sua ligação com a justiça social, a verdade histórica e a dignidade humana. A nossa educação não pode ser um negócio disfarçado de serviço, nem uma simulação de inclusão digital, nem um laboratório de domesticação ideológica. A educação deve ser a práxis da liberdade, a construção coletiva do conhecimento que nos permite transformar o mundo.

Vivemos uma crise educativa global do capitalismo? Sim, mas não como uma catástrofe natural, mas como o resultado de um projecto económico e político global que procura subordinar a consciência aos interesses do capital. Trata-se de uma crise burguesa estrutural, semiótica, ética e filosófica. Revela a urgência de lutar por uma educação diferente, liberta de dogmas comerciais, baseada na verdade, na igualdade e na solidariedade. Não se trata de reparar uma máquina avariada, mas de reinventar a educação como um direito universal e sementeira de emancipação. O futuro da humanidade depende da forma como enfrentamos e combatemos esta crise de forma organizada. Se for aceite com resignação, a educação será reduzida a apenas mais uma engrenagem no sistema de exploração. Se for abordada criticamente, pode tornar-se a alavanca de uma nova civilização. O dilema está em aberto. O desafio é urgente. E a responsabilidade recai sobre todos nós que acreditamos que a educação não pode ser mais do que um avanço na revolução da consciência.

Fonte

Nenhum comentário:

Postar um comentário