sábado, 30 de agosto de 2025

"O sionismo judaico tem a tragédia de reproduzir o pior do sionismo cristão"

Rodrigo Karmy Bolton

O professor da Universidade do Chile destaca como a Nakba, que os palestinianos sofrem desde 1948, é um padrão que se espalha pelo mundo. Um prenúncio do colapso da ordem internacional. Doutorado em filosofia, professor e investigador na Universidade do Chile, Rodrigo Karmy Bolton acaba de publicar uma série de ensaios sobre aquilo que define como "a Nakba do mundo". Sob o título Palestina Sitiada, analisa o que considera ser uma experiência imperialista em curso naquela região do Médio Oriente, mas com alcance global. Ele discutiu isso nesta conversa por Zoom com a Tiempo. (Alberto López Girondo)

–O seu argumento é que há uma espécie de Nakba eterna em curso, com focos de pobreza, de pessoas excluídas nas cidades, perseguidas e exterminadas, como os palestinianos desde 1948.

– A questão seria pensar na Palestina não como um caso isolado dos acontecimentos que se desenrolam no planeta, mas como o caso mais extremo, que, como tal, constitui uma espécie de cadinho a partir do qual podemos compreender o que se passa noutros lugares, a nível tecnológico ou político. A Nakba não é apenas o termo para designar a Catástrofe Palestiniana, mas também a catástrofe que na Palestina encontra um momento de maior intensidade.

–Seria um laboratório para o resto do mundo?

– Sim, entendendo que naquele laboratório a lógica aplicada noutros locais é intensificada. A diferença entre a Palestina e nós é apenas de grau, não de natureza. O que significa que as nossas cidades podem tornar-se Gaza a qualquer momento e por qualquer motivo.

–O objectivo, que o gabinete de Netanyahu já não esconde, é expulsar a população indígena ou simplesmente exterminá-la.

O projeto sionista, politicamente cristalizado pelo Estado de Israel desde 1948, sempre teve este objetivo; não é apenas um problema para o primeiro-ministro. Netanyahu é, pelo contrário, um sintoma de toda esta história que Israel está a construir a nível colonial e que estamos a assistir a uma tentativa de completar. Netanyahu não quer fazer concessões. Vimos, nestes dois anos de genocídio, que foi Netanyahu quem impediu a possibilidade de um cessar-fogo, e nem sequer um acordo de paz.

Netanyahu disse recentemente que cumpriu a sua promessa de impedir o estabelecimento de um Estado palestiniano, "como exigido por vários governos dos EUA". O Ministro Bezalel Smotrich acrescentou que cada novo colonato, cada bairro, cada casa construída na Cisjordânia "é mais um prego no caixão desta ideia perigosa".

– Israel nasceu com a ideia de Eretz Israel, o Grande Israel, que Netanyahu está a tentar consumar. A minha interpretação é que a Nakba não é uma exceção na história de Israel, mas sim o seu elemento mais rico. Israel está a tentar expulsar a população nativa e despojá-la completamente do seu mundo. Essa é a questão subjacente.

– O que estava a acontecer no mundo para que este projeto se tornasse agora tão flagrante? Não têm qualquer problema em dizê-lo, e também recebem apoio dos governos da Europa e dos Estados Unidos.

– É uma questão a responder a, pelo menos, três níveis. O primeiro é que Israel foi fundado sobre a transgressão do direito internacional. Em 1947, as Nações Unidas propuseram a criação de dois Estados, sendo 51% correspondentes ao Estado sionista e 48% ao Estado palestiniano, o que era já uma solução colonial idealizada pela Grã-Bretanha. Neste contexto, ocorreu uma espécie de israelização do mundo global, em que o direito internacional e a ordem internacional que emergiram desde a Segunda Guerra Mundial ruíram completamente, restando-nos apenas o reinado da força. Como chegamos a este ponto? A ordem liberal foi destruída pelos mesmos que afirmam defendê-la: Israel e os Estados Unidos. Segundo nível: este processo só pode ocorrer quando aquilo a que chamamos sionismo não é uma questão exclusiva do Estado de Israel. Existe um sionismo cristão que tem funcionado como o grande palco ideológico da empresa imperial desde o século XVIII, inicialmente pela Grã-Bretanha e, mais tarde, pelos Estados Unidos e pela Europa, até aos dias de hoje. O ideólogo sionista é comum aos Estados Unidos, à Alemanha, à França, à Grã-Bretanha e, claro, ao Estado de Israel. Poderíamos dizer, com Samir Amin, que se trata de um imperialismo colectivo, um sionismo colectivo, que rompeu sistematicamente a ordem liberal em virtude das suas próprias aspirações imperiais, das suas próprias formas de acumulação de capital.

–O que seria o sionismo cristão?

O sionismo cristão, sobre o qual está a aprender com Milei, é mais antigo do que o sionismo judaico; é o fundamento ideológico fundamental em que se baseia. Portanto, o sionismo judaico tem a tragédia de reproduzir o pior do sionismo cristão, que é a sua vocação imperial e a sua apropriação colonial e anexação de terras. Para concluir este terceiro ponto, digamos que a administração Trump está a fazer a mesma coisa que Netanyahu. O primeiro-ministro está a seguir uma política de anexacionismo, a que chamo "anexação". Trump diz: "Vamos anexar a Gronelândia". O paradigma da política reaccionária do nosso tempo é a política anexionista por excelência.

Três questões me vêm à mente. Em primeiro lugar, como surgiu o sionismo cristão? Em segundo lugar, atribui o desaparecimento da ordem fundada após a Segunda Guerra Mundial ao sionismo. Outra interpretação sugeriria que este momento ocorreu quando Vladimir Putin ordenou a Operação Militar Especial na Ucrânia. Por outro lado, muitos classificariam também a política de Putin como anexionista.

– Quanto ao primeiro ponto: o sionismo cristão não tem um autor específico, mas antes um conjunto de articulações imperiais que se desenvolveram desde o final do século XVIII até à primeira metade do século XIX e que moldam o imaginário imperial britânico. Há um grupo de evangélicos muito importantes na Grã-Bretanha que olham para o imperialismo espanhol, por um lado, e para o imperialismo francês, por outro, e dizem: "Estes são dois projectos anticristãos". O católico é anticristão porque tem como garantia institucional a Igreja Católica, e o francês é secularista, liderado por Napoleão. Estes evangélicos dizem: "Devemos ter um projecto para a segunda vinda de Cristo. Tal como os católicos perseguiram os judeus e os franceses se esqueceram de Cristo, devemos regressar ao povo judeu; devemos ser filosemitas", como se auto-intitulavam, "para restaurar os judeus à sua terra prometida, a Palestina". Na perspectiva do sionismo cristão, isto implicaria a consumação do domínio de Cristo a nível planetário e, portanto, a conversão dos judeus na Palestina ao cristianismo. Este discurso, que consideramos insano, é, na verdade, pura geopolítica num discurso teológico-político. O que significa é: "A Grã-Bretanha, uma vez que coloque os judeus na Palestina, triunfará na dominação do capital transnacional". Cristo é o capital transnacional; Cristo dominará todo o planeta. Este sionismo cristão tem uma ramificação em direção ao sionismo judaico, que interpreta uma burguesia, uma pequena burguesia austríaca e judaica britânica, enquanto começava a moldar o movimento colonial sionista na segunda metade do século XIX. O sionismo cristão emergiu desta conjuntura imperial num processo de pelo menos dois séculos, durante o qual se formou o sionismo judaico. Ambos são empreendimentos coloniais que visam dominar o Médio Oriente e têm a Palestina como sustentáculo. Este foi canalizado em 1917 com a entrada das tropas britânicas.

–Isso implica que o imperialismo anglo-americano é na realidade um imperialismo cristão-sionista?

– Sim, o imperialismo anglo-americano é um imperialismo anglo-sionista. É o herdeiro do imperialismo hispano-português do século XVI, do imperialismo franco-britânico dos séculos XVII e XVIII, e é uma fase final do imperialismo, a do capital fóssil: o petróleo, os hidrocarbonetos. Quanto à questão sobre Putin, penso que estamos a assistir a um momento de colapso deste imperialismo devido ao renascimento não só da Rússia como actor internacional, com o seu próprio aparelho ideológico muito significativo, mas também da China. Isto está a destruir completamente o poder hegemónico a que estávamos habituados na década de 1990. É por isso que penso que se pode estabelecer uma ligação entre o actual genocídio na Palestina e a guerra na Ucrânia.

–Em que sentido?

– O que liga os dois é o capital do gás, o capital dos hidrocarbonetos. O projecto israelita sempre foi dominar toda a Palestina histórica, mas nos últimos anos foi descoberto um campo de gás na costa de Gaza, e é por isso que uso sempre o termo "Gaza". Israel quer tornar-se o substituto da Rússia no fornecimento de gás à Europa. Os Estados Unidos querem impedir a Europa de receber gás da Rússia porque foi vendido a preços muito baixos, e isso criaria uma fractura geopolítica para o domínio americano sobre o continente. Obrigou a Europa a comprar-lhes gás e obrigá-la-á a comprar a Israel se Israel avançar com este projecto. É isso que está aqui em causa.

–Qual o papel da Rússia?

A Rússia de Putin está a produzir uma revolução, embora num sentido diferente do da Rússia Soviética. É uma revolução que visa a descolonização monetária e a reafirmação do carácter nacional da Rússia. De certa forma, está também a impulsionar uma revolução descolonial relativamente à sua soberania monetária, juntamente com a China, enquanto os Estados Unidos e o Império Anglo-Imperial estão em declínio fatal. O que Israel está a viver foi caracterizado pelo historiador israelita Ilan Pappé como um processo de colapso. Para mim, este colapso não é exclusivo de Israel, mas do imperialismo anglo-atlântico, ou sionismo cristão.

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