Carta de demissão da Secretária Executiva da ESCWA (Comissão Económica e Social para a Ásia Ocidental), Rima Khalaf, em resposta ao pedido formal do Secretário-Geral das Nações Unidas para que a ESCWA retirasse a publicação de um relatório que afirma que o Estado de Israel implementou uma situação de apartheid.
«Prezado Senhor
Secretário-Geral,
Analisei
cuidadosamente a sua mensagem enviada pelo Chefe da Casa Civil e garanto-lhe
que em nenhum momento questionei o seu direito de retirar a publicação do
relatório do nosso site ou o facto de todos nós, que trabalhamos para o
secretariado, estarmos sujeitos a autoridade do secretariado-geral. Tal
como não tenho dúvidas sobre o seu compromisso com os direitos humanos em geral
e a sua posição forte em relação aos direitos do povo palestiniano. Também
compreendo as vossas preocupações, especialmente nestes tempos difíceis que vos
deixam com poucas escolhas.
Não sou
indiferente aos cruéis ataques e ameaças contra as Nações Unidas e contra si
pessoalmente, vindos dos principais Estados-Membros, em resposta à divulgação
do relatório da ESCWA intitulado "As Práticas de Israel em relação aos
Palestinianos e a questão do apartheid". Não considero surpreendente que
esses Estados-Membros, que têm agora governos que pouco respeitam as normas e
valores internacionais em matéria de direitos humanos, recorram à intimidação
quando têm dificuldade em defender as suas políticas e práticas
ilícitas. É normal que os criminosos pressionem e ataquem aqueles que
defendem a causa das suas vítimas. Não posso me colocar sob tanta pressão.
Não é em virtude
da minha condição de funcionário internacional, mas em virtude da minha
condição de ser humano honesto que acredito, como você, nos valores e
princípios universais que sempre foram as diretrizes para o bem na história da
humanidade, e sobre a qual se baseia uma organização como a nossa, as Nações
Unidas. Tal como vós, considero que a discriminação contra qualquer pessoa
com base na sua religião, cor da pele, género ou origem étnica é inaceitável, e
que tal discriminação não pode ser tornada aceitável pelos cálculos do oportunismo
ou do poder político. Considero ainda que as pessoas não só deveriam ter o
direito de falar a verdade ao poder, mas também o dever de fazê-lo.
No espaço de dois
meses, pediu-me que retirasse dois relatórios produzidos pela ESCWA, não devido
a quaisquer erros cometidos nesses relatórios, e provavelmente não porque
discordasse do seu conteúdo, mas devido à pressão política exercida pelos
Estados-Membros que seriamente violam os direitos dos povos da região.
Viram que as
pessoas desta região estão a viver um período de sofrimento sem paralelo na
história moderna, e que o número considerável de catástrofes actuais resulta da
enxurrada de injustiças que foram ignoradas, encobridas ou aprovadas
abertamente por governos poderosos, tanto dentro como fora da região. São
estes mesmos governos que os pressionam para silenciar a voz da verdade e o
apelo à justiça apresentado nestes relatórios.
Tendo em conta o
que precede, só posso defender as conclusões do relatório ESCAW de que o Estado
de Israel estabeleceu um regime de apartheid que procura a dominação de um
grupo racial sobre outro. As evidências fornecidas neste relatório por
especialistas renomados são numerosas. Todos aqueles que atacaram este
relatório não tinham uma palavra para definir o seu conteúdo. Considero que
é meu dever destacar o facto legal e moralmente indefensável de que no século
XXI ainda existe um estado de apartheid, em vez de suprimir as provas. Ao
dizer isto não estou reivindicando qualquer superioridade moral ou visão
superior. A minha posição é influenciada por uma vida inteira de
experiências em que vi as consequências desastrosas para a paz quando
bloqueamos as queixas das pessoas na nossa região.
Percebo que tenho poucas escolhas. Não posso agora retirar outro caso bem investigado e bem documentado da ONU sobre graves violações dos direitos humanos, embora saiba que instruções claras do Secretário-Geral devem ser implementadas rapidamente. É um dilema que só posso resolver renunciando para permitir que outra pessoa forneça o que não posso fornecer em sã consciência. Eu sei que só tenho mais 2 semanas de trabalho; a minha demissão não visa, portanto, exercer pressão política. Isto acontece simplesmente porque acredito que é meu dever para com as pessoas que servimos, para com as Nações Unidas e para comigo mesmo, não retirar testemunhos honestos sobre um crime contínuo que está na origem de tanto sofrimento humano.
Com todo o meu
respeito,
Rima Khalaf»
22 de Março de 2017 - Fonte
MPPM condena actuação de António Guterres –
Secretário-geral da ONU capitulou diante da política de apartheid de Israel
por MPPM [*]
O MPPM encara com preocupação o papel desempenhado pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, no processo que conduziu à demissão de Rima Khalaf do posto de Secretária Executiva da Comissão Económica e Social das Nações Unidas para a Ásia Ocidental (CESAO).
A sucessão dos acontecimentos merece ser
referida brevemente. Na quarta-feira, 15 de Março, a CESAO publicou um
documento histórico em que acusa Israel de apartheid, num relatório que
concluía que "Israel estabeleceu um regime de apartheid que domina o povo
palestino como um todo".
Os autores do relatório — os estado-unidenses
Virginia Tilley e Richard Falk, ambos especialistas em Direito Internacional —
"conscientes da gravidade desta alegação […] concluem que os elementos de
prova disponíveis estabelecem além de qualquer dúvida razoável que Israel é
culpado de políticas e práticas que constituem o crime de apartheid, tal como
definido legalmente nos instrumentos do direito internacional". O
relatório "assenta no mesmo corpo de leis e princípios internacionais de
direitos humanos que rejeitam o anti-semitismo e outras ideologias racialmente
discriminatórias, incluindo a Carta das Nações Unidas (1945), a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Convenção Internacional sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965)" e
"baseia-se para a sua definição do apartheid sobretudo no artigo II da
Convenção Internacional para a Repressão e a Punição do Crime de Apartheid
(1973)". Os autores do relatório sublinham que, "embora o termo
"apartheid" tenha sido originalmente associado ao caso específico da
África do Sul, representa agora uma espécie de crime contra a humanidade
segundo o direito internacional consuetudinário e o Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional" acrescentando que "o presente relatório
reflecte o consenso dos peritos de que a proibição do apartheid é
universalmente aplicável e não foi tornada irrelevante pelo colapso do
apartheid na África do Sul e no Sudoeste da África (Namíbia)".
O relatório destacou em especial as políticas
discriminatórias de Israel no que diz respeito à terra, consagradas na Lei
Fundamental do país (o equivalente à constituição). A CESAO também refere
algumas das políticas israelenses de "engenharia demográfica": a
concessão a todos os judeus, em qualquer parte do mundo, do direito de obter a
cidadania israelense, enquanto impede a entrada de milhões de palestinos com
laços ancestrais documentados à terra em que o Estado de Israel foi criado, em
1948; o impedimento do reagrupamento familiar dos cidadãos palestinos de Israel
casados com palestinos dos territórios ocupados; a manutenção de comunidades
segregadas dentro de Israel, com uma distribuição de recursos extremamente
desigual. O relatório salienta ainda a importância fundamental dos diferentes
códigos legais israelenses que se aplicam aos palestinos dentro de Israel, em
Jerusalém Oriental ocupada, na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza cercada como
"principal método pelo qual Israel impõe um regime de apartheid".
A publicação do relatório foi de imediato alvo
de violentas críticas de Israel e dos Estados Unidos, que exortaram o
secretário-geral, António Guterres, a demarcar-se formalmente do conteúdo do
relatório, e exigindo que o mesmo fosse retirado da página oficial das Nações Unidas.
Nesse próprio dia, através de uma declaração do porta-voz do secretário-geral,
Stéphane Dujarric, António Guterres tornava público o seu distanciamento.
Segundo declarações de Rima Khalaf, António
Guterres pediu-lhe, em 16 de Março, que retirasse o relatório e, apesar da
solicitação de que reconsiderasse, Guterres terá insistido, o que a levou a
apresentar a sua demissão. E de facto, a 17 de Março, o relatório já não estava
disponível no site da CESAO. A decisão do secretário-geral foi saudada pelos embaixadores
de Israel, Danny Danon, e dos Estados Unidos, Nikki Haley, assim como pelas
organizações do lobby sionista nos EUA.
O MPPM não pode deixar de condenar a actuação
neste caso do secretário-geral da ONU, António Guterres, premiando o país que
mais vezes violou as resoluções da ONU, Israel, em detrimento do martirizado
povo palestino, para com o qual a ONU tem uma pesada e irrenunciável dívida
histórica. Não podemos esquecer que há sete décadas a ONU optou por uma
partilha do território histórico da Palestina, prometendo a criação de dois
Estados. Mas enquanto um desses Estados, Israel, existe há 68 anos, o povo
palestino continua a aguardar o cumprimento da promessa que a Assembleia Geral
da ONU lhe fez e que foi sucessivamente renovada através de inúmeras resoluções
do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral que Israel desafia diariamente.
O MPPM enaltece a posição de verticalidade
assumida por Rima Khalaf e considera a decisão de António Guterres, cedendo
perante as pressões de Israel e dos Estados Unidos da América – numa altura em
que este último país discute cortes à comparticipação financeira para o
orçamento da ONU – como gravemente atentatória do prestígio, independência e da
própria razão de ser das Nações Unidas. Nesta ocasião, vale a pena recordar
que, em Outubro de 2016, aquando da eleição de António Guterres, o embaixador
de Israel na ONU, Danny Danon expressava votos que, com o novo Secretário
Geral, a ONU abandonasse a sua "obsessão com Israel". A posição ora
assumida por António Guterres, confirmando os receios suscitados por aquela
declaração do representante de Israel, abre um grave precedente que faz temer o
pior sobre o desenrolar futuro do seu mandato.
O MPPM reitera nesta ocasião os votos que
formulou na carta que dirigiu a António Guterres por ocasião do início do seu
mandato como secretário-geral da ONU: que este seja o mandato em que as Nações
Unidas saldem a dívida histórica que têm para com o povo da Palestina. Só
revendo a atitude que desta vez assumiu e adoptando uma posição consentânea com
as resoluções da ONU, António Guterres defenderá a autoridade e prestígio da
organização que dirige, e poderá favorecer uma solução justa do drama do povo
palestino. Só assim a ONU poderá contribuir para a paz em todo o Médio Oriente,
para a paz mundial.
Lisboa, 22 de Março de 2017
A Direcção Nacional do MPPM
O texto integral do relatório censurado
encontra-se em electronicintifada.net/...
[*] Movimento pelos Direitos do Povo Palestino
e pela Paz no Médio Oriente, www.facebook.com/mppm.movimento.palestina
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