"Snap the Varnish" - Vasco Gargalo
São os jornalistas, são os opinantes
e paineleiros, é o Costa e é o Marcelo, todos são unânimes: o
pior está para vir. Contudo, todos eles se referem a uma possível
vaga da covid-19 caso o povo não respeite as regras de confinamento,
porque o abrandamento do aumento do número de infectados e de mortes
pelo coronavírus, dizem eles, pode ser enganador. Mas
verdadeiramente enganador é quem manipula os números, disseminado o
pânico, e grita que o acordo alcançado pelos ministros das Finanças
da União Europeia marca “um dia histórico da vida europeia”. O
PS engana e mente, pela voz do seu secretário-geral adjunto, quanto
ao acordo, cujos pormenores ainda estarão para ser discutidos ou já
o estando ainda são desconhecidos do grande público, e que
necessariamente se traduzirá por um maior endividamento do Estado
português, e de todos os restantes estados da União que não sejam
os 4 satélites da Alemanha, França, Holanda, Áustria e Finlândia.
O pior que ainda estará para vir será antes o que está contido no
ultimato dado a Portugal pela UE, algum tempo antes do já famigerado
“acordo”: salários dos trabalhadores da Função Pública,
pensões, despesa com a Saúde e estabilidade financeira, ainda mais
abalada pelo endividamento agora imposto, estarão sob forte pressão.
O que significa, a curto prazo, mais austeridade e em dose a dobrar
para os próximos anos, para não se dizer ad eternum.
Enquanto países com autonomia
monetária podem auto-financiar-se para fazer frente aos custos
sanitários da pandemia e às consequências mais gerais na economia
e na sociedade, os estados mais periféricos e mais pobres da UE vão
ficar ainda mais endividados com o acordo "histórico"
acertado pelo Eurogrupo, embora possam estar sujeitos, pelo menos
teoricamente, a taxas de juro mais baixas, mas que estarão sempre
nas mãos dos ditos “mercados”, ou seja, grandes grupos
financeiros prestamistas. As desigualdades económicas entre estados
irão agravar-se, como se irão agravar e fortemente as desigualdades
dentro de cada país por força do aumento rápido e descontrolado do
desemprego. As medidas de austeridade já estarão delineadas e
programadas a esta hora, e desta vez a austeridade será por décadas.
Para quem tiver dúvidas é fazer o favor de atentar às palavras do
chefe da CIP, António Saraiva, que não se fez rogado em exigir ao
Governo do Costa uma linha, no mínimo, de 20 mil milhões de euros a
fundo perdido e, perante a interrogação do jornalista/comentador
televisivo, não hesitou em dizer que será um problema para o
Governo resolver, ou com aumento da dívida pública ou com outra
gestão do Orçamento do Estado. Depois do ultimato em forma de aviso
de Bruxelas, não há dúvidas de que as partes já estão
concertadas e que a burguesia nacional faz seu o projecto europeu,
naquela perspectiva de que mais vale partilhar a exploração dos
trabalhadores portugueses com terceiros do que perder a competição,
ficando sem nada, caso se colocasse fora da carroça europeia.
O PS e o seu secretário e chefe do
Governo colocam-se de gatas perante Bruxelas/Alemanha, apesar de
quererem dar uma imagem de coragem e de firmeza perante os ditames. A
indignação verbalizada pelo Costa em reacção à provocação
proferida pelo ministro das Finanças holandês dirigida ao governo
de Espanha foi apenas para consumo interno, para ficar bem na
fotografia, porque nos actos, e vale mais um acto do que mil
palavras, segundo diz o ditado, a posição é de lacaio manso. É
bom salientar que esta posição vem no seguimento de outra
provocação semelhante, mas dirigida ao governo de Portugal e também
vomitada por outro ministro das Finanças e igualmente holandês, há
alguns anos, acusando o povo, e não exactamente a elite, de
imprevidente e de perdulário, o que significa, e outra interpretação
não se poderá fazer atendendo às circunstâncias e aos
protagonistas, que a Holanda funciona como porta-voz e cão de trela
da Alemanha, diz o que a esta não interessa dizer abertamente de
momento. A posição inicialmente ambígua da Alemanha quanto aos
coronabonds e ainda antes da reunião do Eurogrupo, deixando o cão
ladrar livremente, tornou-se clara, abrindo o jogo, logo após o
acordo “histórico”, confirma o que acabamos de dizer.
Diz a imprensa corporativa nacional,
não menos lacaia que o Governo, que o “Eurogrupo acertou termos
para uma linha de crédito do Mecanismo Europeu de Estabilidade que
vai financiar despesas directas e indirectas com o sistema de saúde”,
o que nos poderá indiciar que o sector da Saúde em Portugal irá
continuar a ser privatizado, em detrimento do SNS que acabará por
ficar completamente destruído, reduzido a uma expressão mínima
para assistência aos indigentes, como acontecia antes do 25 de
Abril, com os seus trabalhadores a auferir salários ainda mais
baixos, com as carreiras profissionais não congeladas
temporariamente como aconteceu com a intervenção da troika, mas
destruídas como o SNS, e todos eles trabalhadores remetidos a
contrato individual de trabalho, os célebres CITs, em precariedade
absoluta: o que irá acontecer caso estes trabalhadores não lutem a
fim de abortar planos tão sinistros. A imprensa também diz: “fundos
para apoio à liquidez das PME e protecção de postos de trabalho
também foram aprovados”; ora, estes fundos serão quase
exclusivamente para grandes e algumas médias empresas exportadoras,
de produtos que fiquem mais baratos sendo produzidos em Portugal e de
que o mercado europeu necessite, porque as restantes empresas, micro
e pequenas, que constituem mais de 90% do universo empresarial
nacional, serão inapelavelmente condenadas a falirem e também a
breve prazo, por não conseguirem suportar mais endividamento. É o
processo de “depuração” capitalista, que se traduz numa
concentração inaudita do capital; aliás, um processo que se
acelera em tempo de crise.
Não deixa de ser confrangedor a
reacção dos partidos da oposição: o PSD fala muito, mas não
esconde que teria a mesma posição se estivesse no Governo; o PCP
indigna-se, aponta os malefícios do monstro, mas não propõe e nem
ousa a sua destruição; o BE lamenta que as decisões resultem do já
conhecido “consenso franco-alemão”, estreitando o recurso ao MEE
(Mecanismo de Estabilidade Europeu), lamentando a não mutualização
de dívida pública e o não financiamento monetário da despesa
pública no combate à crise; em relação aos outros partidos nem
vale a pena comentar dada a trivialidade ou a vacuidade das
considerações. Todos eles ficam pela lamentação impotente dos
serventuários pela falta de solidariedade dos países mais fortes da
União com os países da periferia e do Sul, e depois de terem
passado todo o tempo a gabar as virtudes e benefícios da “Europa
dos cidadãos”, “das liberdades e direitos humanos”, uma figura
virtual que só existe nas mentes dos dirigentes oportunistas
daqueles partidos, que, afinal e a exemplo dos nossos empresários de
sucesso, também se venderam por uma cerveja e um cachorro (“prato
de lentilhas” ou “dez réis de mel coado” já são clichés mais
que estafados), em vez de exigir a saída de Portugal da União
Europeia e reconquistar, para já, a autonomia financeira e
monetária, única forma de possuir os meios eficazes para combater a
crise sem sobrecarregar a exploração dos trabalhadores e do povo.
Como já alguém disse, esta cena dos ministros das Finanças da zona
euro a bater palmas, no final da reunião do Eurogrupo, “faz
lembrar os passageiros da 1ª classe do Titanic a aplaudir a valsa
acabada de tocar pela orquestra, enquanto o navio se afundava”. A
crise do coronavírus, que mais não é que a erupção da crise
latente e profunda do sistema capitalista, marcará o princípio do
fim da União Europeia. E será preferível sair a bem (com
minimização dos prejuízos), e seria agora, do que sair mais tarde
e a mal.
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