quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

O Bonapartismo e o fim da democracia burguesa

A Assembleia da República tem vindo a funcionar como caixa de ressonância do primeiro-ministro Costa e do presidente Marcelo e, como não poderia deixar de ser, aprovou, mais uma vez e outras virão, a “renovação” do estado de emergência. Será até 7 de Janeiro, depois das festividades de Natal e Fim de Ano, com o pretexto de impedir a 3ª vaga pandémica, como Marcelo já anunciara. É, na prática, uma situação que se irá eternizar, acabando por ser uma formalidade a dita “renovação” quinzenal que, banalizando-se, será ad aeternum, em claro violação da tal Constituição da República, que os partidos da esquerda bem comportada gostam tanto de elogiar. Sob a falsa bandeira de defesa da saúde e da vida dos portugueses, a democracia parlamentar burguesa já deu a alma ao criador, como dizem os crentes. Agora, trata-se de oficializar a nova situação, coisa que irá acontecer no próximo dia 24 de Janeiro com a reeleição do “presidente dos afectos”, que neste mandato irá mostrar qual é a sua verdadeira afectividade. Na entrevista à televisão do sócio nº1 do PSD, Marcelo já esboçou sobre o futuro da Nação, ao admitir um governo constituído com a extrema-direita, e entreabriu um pouco a sua personalidade, admitindo não ter contactado com a viúva de cidadão ucraniano para “não abrir excepção”.

A reeleição do homem é dada como mais do que certa, não parece que venha a haver alguma desagradável surpresa com as consecutivas sondagens a dar uma confortável vitória logo à primeira volta; sondagens essas cuja principal finalidade é condicionar o comportamento do eleitorado mais indeciso, o tal eleitorado do “centro”, que mais não é que a pequena-burguesia temerosa que geralmente se decide para o lado que lhe parece ser mais forte. Pela última sondagem, o homem irá receber votos dos eleitores de todos os principais partidos, sendo o eleitorado do BES o aparentemente mais mutável. O que revela que uma crise sem fim à vista, crise económica que foi exacerbada pela artificial crise pandémica e a sem resolução em termos imediatos, faz com que grande parte desta pretensa classe média se refugie no seio da contra-revolução. E o chefe da contra-revolução não é o "amigo dos ciganos", mas o afilhado do outro que não se tem cansado de mostrar que influencia de forma indelével a actuação do governo. Costa, de certo modo, vai gerindo essa denominada ingerência em seu proveito, dando a entender, ou alguém por ele, que meteu o presidente no bolso; no entanto, ambos tentam retirar dividendos da ambiguidade e, no final, talvez a realidade venha a confirmar que será o oposto, Costa é que estará na algibeira. As palavras “venturosas” de "Deus confiou-me a difícil mas honrosa missão de transformar Portugal" soam melhor na boca do influencer-mor.

Não se deve esquecer que o que faz mexer a superfície da crosta é o vulcão oculto nas profundidades que, por enquanto, silenciosamente já entrou em trabalho de erupção. E o vulcão são os trabalhadores e o povo na sua revolta ainda larvar, esmagados pelo desemprego e pela fome, que em 2021 irão crescer enormemente. O “Ronaldo das Finanças” quer intimidar, dizendo que serão precisos “mais de três anos para recuperar emprego que a pandemia (a pretexto de) apagou”; os patrões ou recusam aumentar os salários dos trabalhadores, como acontece na Sonae que invoca a pandemia para justificar a manutenção de salários já bastante depauperados; ou avançam para o despedimento, como parece que irá acontecer em breve com o encerramento da refinaria de Matosinhos da Galp levando ao desemprego mais de 500 trabalhadores; ou o povo português que empobreceu nos últimos dez anos, com o salário mediano mais baixo de toda a União, como demonstra o Eurostat; ou o número de casais de trabalhadores com ambos os elementos inscritos nos centros de emprego que aumentou 15,9% em Novembro face ao mesmo mês de 2019; ou os bancos que continuam no assalto aos dinheiros públicos, com o Goldman Sachs e outros fundos internacionais que avançam com novas ações em tribunal contra estado português a exigir o ressarcimento de 835 milhões de dólares enfiados no BES; ou a dívida pública que só nos primeiros nove meses deste ano aumentou 17 mil milhões de euros, ou seja, de 310.466 milhões de euros está agora em 328.200 milhões (na óptica de Maastricht), que é mais do dobro do aumento (8.476 milhões de euros) que teve nos três anos anteriores. O ano de 2021 será um ano inimaginável de pobreza e fome, superando o que está finar-se.

O PR é acusado pelo sindicato dos inspetores do SEF, em campanha corporativa, de ter “extrapolado as suas competências” ao ter falado publicamente sobre a reestruturação daquela polícia, e as pressões são mais que muitas para que exerça o seu magistério de influência para a demissão do ministro da Administração Interna. A chamada ao Palácio de Belém do director-geral da polícia, a fim de se inteirar da questão da aparente disfuncionalidade de uma polícia concorrente da PSP e com o cabo de esquadra a opinar sobre a questão, foi mais do que uma desautorização do ministro ou do Costa, mas um reafirmar de uma faceta não só dele (Marcelo) como do próprio estado: o autoritarismo, que se reforça no estado de excepção. A impunidade e a continuada violação da lei pelas diferentes polícias são a outra face de que o “estado democrático e de direito” não passa de uma ficção. Com o agravamento da crise do capitalismo não há espaço para facécias, a revolta social poderá estar no virar da esquina, e o Bonaparte tem de ir já assegurando pelo menos a guarda pretoriana. O agravamento da fome dos espoliados faz soar as campainhas de alarme, e a musculação do regime vai-se sentido não só com os candidatos a Bonaparte a tomar posição, mas com os partidos a “renovarem-se”, como exige o clérigo católico, e essa renovação já se iniciou com o aparecimento de outras formações políticas, apesar de todas elas defenderem o sistema de exploração dos assalariados, embora possam dizer o contrário.

Mas não é só o aparecimento de novos partidos, os existentes, em particular os que surgiram em torno do 25 de Abril, vão-se modificando. E se o PSD está a desdobrar-se nas suas duas facções mais importantes, uma mais moderada a outra mais trauliteira, e o CDS a desfazer-se, o PS, sempre numa inclinação à direita, irá de igual modo dividir-se. Ninguém se admire que uma parte se junte ao actual PSD, num outro partido de direita liberal, coisa que, aliás, está já a acontecer com alguns dos seus autarcas e militantes no terreno a recolher assinaturas para a recandidatura de Marcelo. Se a função faz o órgão, o bloco central de interesses irá formalizar-se num só corpo. Contudo, e a propósito das presidenciais, um outro partido se está a criar: o partido do presidente. O Bonaparte também não prescinde da tropa de choque, e o partido irá surgir, agora ou depois.

Se o PS se dilui na direita, o BE, desde há algum tempo, que se posiciona para substituir o PS na governação, a exemplo do que se passou com o Syriza na Grécia e, diga-se de passagem, de triste memória para o povo grego. A abstenção na aprovação do estado de emergência marca bem o seu carácter oportunista e de subserviência ao poder; quando aí alcandorado, imitará bem o congénere grego, e não hesitará em usar o cacete sobre os trabalhadores e obedecer aos ditames de Bruxelas. O PCP reafirma, depois do congresso (cuja realização em época pandémica foi tão contestada quer à direita, quer à esquerda), a sua natureza social-democrata e pequeno-burguesa, dando razão àqueles que sempre o acusaram de nunca ter deixado de ser, desde o primeiro minuto da sua fundação, um partido burguês para operários. Marisa Matias do “sou uma social-democrata, não na mesma graduação" não está só, mas não acompanhada pelos dois que referiu, porque esses nunca estiverem naquele barco e agora cada vez menos. O PCP jamais conseguirá fugir ao acicate de ter podido realizar o congresso a troco de não reprovação do OE-2021, o que por sua vez reafirma o apoio ao governo. O resultado eleitoral do seu candidato será também uma consequência e uma confirmação da suspeição. O aparecimento de uma candidata populista de esquerda talvez seja a outra face da mesma pequena-burguesia arrivista, Ana Gomes, a justiceira do futebol. Em relação a esta excrescência do PS, falaremos mais tarde.

Portugal é um dos países que menos emprega imigrantes”. É uma realidade incontornável, apesar de ter sido sempre um país de forte emigração. Ele figura no fim da tabela entre os países da Europa dos 27 que menos emprega população estrangeira: apenas 3% da população empregada é estrangeira. Terá sido uma forma de assinalar o Dia Internacional das Migrações, que ocorreu na passada 6ª feira. Não deixa de ser o espelho de um “país” racista, racista pelas suas elites, que ainda não perderam, nem jamais conseguirão perder, as ambições coloniais, agora levadas à prática através das forças militares destacadas em países estrangeiros onde as empresas da União Europeia mantêm interesses na exploração das riquezas naturais, contando ainda recolher algumas migalhas do saque. Um “país” de cultura autoritária e de impunidade, quase diariamente constatada nas violências policiais, com o SEF a dar notícia nos últimos dias pela violência exercida sobre um cidadão cabo-verdiano, mostrando mais uma vez quais são na realidade os seus valores humanistas, e os da União Europeia onde se insere.

Só que este “país”, este Portugal entre comas, é o país de uma burguesia retrógrada, rentista e parasitária, que a toda a hora inculca os seus valores sobre os trabalhadores e o povo, sendo a pequena-burguesia a classe mais sugestionável por força da sua posição no processo produtivo. Não deixa de ser interessante ver gente que se diz de esquerda ou de extrema-esquerda nas redes sociais estigmatizar os empresários da restauração que se têm manifestado na rua de “oportunistas” e de tropa que irá engrossar as fileiras da extrema-direita. Ora, foi devido à ruína das classes médias que o povo de Paris teve condições e força para ousar uma atitude mais que heróica, a Comuna de Paris – em Março assinalam-se os 150 anos. Para que a classe operária, independentemente das características que actualmente assuma nesta economia profundamente terciarizada, possa conduzir a revolução socialista a bom termo terá de ter a seu lado, sine qua non, a grande maioria das classes intermédias irremediavelmente depauperadas.

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