Jorge de Sena
CADASTRADO
Uma vez, aos sete anos,
partiu à pedrada a lanterna da porta da igreja.
Dez anos depois, conduzindo um carro,
não parou num cruzamento de rua
onde havia um sinal de stop.
Dois anos depois, teve uma briga
num bar, e partiu a cabeça de um amigo
com uma garrafa de cerveja.
Quando se recusou a combater no Viet-Nam,
O seu cadastro provava como desde a infância,
sempre manifestara sentimentos
nitidamente de traidor à pátria.
OS PRAZERES DA JUVENTUDE
Ao fim de 24 jogos perdidos,
o time ganhou o desafio.
O público inundou o campo, desceu à cidade,
e durante horas interrompeu o trânsito, bebeu na rua,
quebrou montras, partiu mesmo os faróis dos carros
da polícia que, risonha, comungava
naquele entusiasmo regional e jovem
por um triunfo tão longamente ansiado.
Uma centena de pessoas manifesta-se na rua
(contra uma «vitória» que não se vê no Viet-Nam),
e os cacetes desabam, a prisão enche-se,
porque interromperam o trânsito, incitaram à desordem,
e resistiram malignamente à autoridade
que os mandou dispersar.
A VIDA E A MORTE COMO INVESTIMENTO SEGUNDO AS ÁREAS GEOGRÁFICAS
O menino ia de bicicleta pela rua
e de repente passou pela frente de um carro
que ia com cuidado porque o vira.
O menino caiu, e ficou caído a chorar.
O sujeito que guiava o carro correu
a uma casa fronteira para telefonar
à polícia. O dono da casa
que era estrangeiro correu entretanto
a levantar o menino.
A polícia chegou, tomou conta da ocorrência,
verificou que o homem do automóvel
não tinha culpa nenhuma. Uma ambulância
veio e levou o menino.
Como o homem do automóvel não tinha culpa
dos ferimentos e contusões que o menino aliás não tinha,
a família dele processou (25 000 dólares ) o supracitado
dono da casa pelos danos futuros
causados por acudir ao menino que
levantou sem ser médico ou polícia.
Para exercer-se a caridade,
ou mesmo só a humanidade espontânea
há que ter o seguro respectivo.
(No Viet-Nam, qualquer família de um morto por engano,
se apresentar o cadáver, tem direito a 23.41 de indemnização)..
O DIREITO SAGRADO
Com a barriga a sair das calças descaídas,
as mangas arregaçadas da camisa e os suspensórios,
exibiu na televisão a queixada de chacal
e o cabelo cortado rente como pele de hiena.
Latia curtamente, em pequeninos roncos,
olhando de viés para as lentes que seriam o público.
Dono duma vasta propriedade com
ribeiro, floresta, prados, não cultiva
– tudo o que possui é para os esquilos, os
ratos encantadores de todas as espécies,
etc., vivendo felizes à sua vigi-
lante guarda. Ama a natureza, os
animais seus irmãos.
Por isso espalhou por toda a parte en-
genhosas armadilhas (que inventou)
para crianças, caçadores, pares de na-
morados, quantos
acaso cruzem, desprevenidos, ,sem respeito
pela propriedade privada, o seu terreno.
E ele mesmo, além de binóculo com que
amorosamente espia os animais amigos,
completa o campo entrincheirado com
as suas armas automáticas
– artilharia de apoio para quando as
armadilhas falham.
Assim, já mutilou ou feriu
muita gente. E, desta vez,
– é a razão da entrevista –
matou.
«É o meu terreno. A minha propriedade.
Tenho o direito de defender-me e aos ani-
mais que nele vivem. É o meu terreno.
É meu. É meu.»
(Pelo menos em primeira instância, foi
absolvido).
(SEQUÊNCIAS da Moraes Editores, 1978)
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