terça-feira, 15 de março de 2022

“América, América, I Love You” - Jorge de Sena

Jorge de Sena

CADASTRADO

Uma vez, aos sete anos,

partiu à pedrada a lanterna da porta da igreja.


Dez anos depois, conduzindo um carro,

não parou num cruzamento de rua

onde havia um sinal de stop.


Dois anos depois, teve uma briga

num bar, e partiu a cabeça de um amigo

com uma garrafa de cerveja.


Quando se recusou a combater no Viet-Nam,

O seu cadastro provava como desde a infância,

sempre manifestara sentimentos

nitidamente de traidor à pátria.


OS PRAZERES DA JUVENTUDE

Ao fim de 24 jogos perdidos,

o time ganhou o desafio.

O público inundou o campo, desceu à cidade,

e durante horas interrompeu o trânsito, bebeu na rua,

quebrou montras, partiu mesmo os faróis dos carros

da polícia que, risonha, comungava

naquele entusiasmo regional e jovem

por um triunfo tão longamente ansiado.


Uma centena de pessoas manifesta-se na rua

(contra uma «vitória» que não se vê no Viet-Nam),

e os cacetes desabam, a prisão enche-se,

porque interromperam o trânsito, incitaram à desordem,

e resistiram malignamente à autoridade

que os mandou dispersar.


A VIDA E A MORTE COMO INVESTIMENTO SEGUNDO AS ÁREAS GEOGRÁFICAS

O menino ia de bicicleta pela rua

e de repente passou pela frente de um carro

que ia com cuidado porque o vira.


O menino caiu, e ficou caído a chorar.

O sujeito que guiava o carro correu

a uma casa fronteira para telefonar

à polícia. O dono da casa

que era estrangeiro correu entretanto

a levantar o menino.


A polícia chegou, tomou conta da ocorrência,

verificou que o homem do automóvel

não tinha culpa nenhuma. Uma ambulância

veio e levou o menino.


Como o homem do automóvel não tinha culpa

dos ferimentos e contusões que o menino aliás não tinha,

a família dele processou (25 000 dólares ) o supracitado

dono da casa pelos danos futuros

causados por acudir ao menino que

levantou sem ser médico ou polícia.


Para exercer-se a caridade,

ou mesmo só a humanidade espontânea

há que ter o seguro respectivo.

(No Viet-Nam, qualquer família de um morto por engano,

se apresentar o cadáver, tem direito a 23.41 de indemnização)..


O DIREITO SAGRADO

Com a barriga a sair das calças descaídas,

as mangas arregaçadas da camisa e os suspensórios,

exibiu na televisão a queixada de chacal

e o cabelo cortado rente como pele de hiena.

Latia curtamente, em pequeninos roncos,

olhando de viés para as lentes que seriam o público.


Dono duma vasta propriedade com

ribeiro, floresta, prados, não cultiva

– tudo o que possui é para os esquilos, os

ratos encantadores de todas as espécies,

etc., vivendo felizes à sua vigi-

lante guarda. Ama a natureza, os

animais seus irmãos.


Por isso espalhou por toda a parte en-

genhosas armadilhas (que inventou)

para crianças, caçadores, pares de na-

morados, quantos

acaso cruzem, desprevenidos, ,sem respeito

pela propriedade privada, o seu terreno.


E ele mesmo, além de binóculo com que

amorosamente espia os animais amigos,

completa o campo entrincheirado com

as suas armas automáticas

– artilharia de apoio para quando as

armadilhas falham.


Assim, já mutilou ou feriu

muita gente. E, desta vez,

– é a razão da entrevista –

matou.

«É o meu terreno. A minha propriedade.

Tenho o direito de defender-me e aos ani-

mais que nele vivem. É o meu terreno.

É meu. É meu.»

(Pelo menos em primeira instância, foi

absolvido).


(SEQUÊNCIAS da Moraes Editores, 1978)

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