sábado, 26 de março de 2022

O governo de “combate”, mas contra quem?

Mundo estranho e fascinante - Diane Arbus


O governo, diz Costa, é um governo de “combate” e com “forte núcleo político”, e é um governo “novo” e com “mais mulheres do que homens”. E antes de entrar em vigor, o actual governo ainda em funções, governando por decreto, prolongou a “situação de alerta” até 18 de Abril. Pelo histórico dos últimos dois anos, o governo foi sempre um governo de combate, menos de combate ao vírus e mais de combate às liberdades, direitos e garantias do povo português: no passado dia 18 fez dois anos em que foi instaurado o primeiro estado de excepção, foram 218 dias, que o PR Marcelo diz ter sido a “decisão mais difícil” que teve de tomar; se foi, não se notou muito. No início desta nova etapa, Costa ganha por 1-0 sobre Marcelo, tal como o corneado, este foi o último a saber os nomes propostos para o dito “novo” governo. Terá “registado” o facto, o quer dizer que a vingança não tardará – a coisa promete.

Pelos nomes dos ministros, fica-se com a ideia nítida de que este governo é mais do mesmo: as figuras de confiança absoluta do chefe ficaram, as que surgem são funcionários públicos que jamais deixarão de respeitar a hierarquia. Formam um núcleo político de fazer cumprir as ordens que venham de cima, seja do chefe directo ou seja de Bruxelas ou de outra entidade que impõe as regras no länder à beira mar plantado. A promoção do derrotado nas eleições para a Câmara de Lisboa a ministro das Finanças, não se lhe conhecendo qualquer competência específica na área, mostra bem que a figura irá simplesmente exercer as funções de escriturário ou de guarda-livros das contas nacionais segundo as regras ditadas pelo Banco Central Europeu e cuja sucursal no país é o Banco de Portugal, gerido pelo antigo “Ronaldo” das Finanças, que já disse que os salários não irão acompanhar a subida da inflação.

Outra figura, com tacho melhorado, é a funcionária pública e ex-diretora do Instituto da Defesa Nacional, a quem foi incumbida a tarefa da “defesa nacional” e que é referenciada como a primeira mulher no cargo, como tivesse alguma coisa a ver com a emancipação da mulher trabalhadora. A mulher, talvez numa de mostrar que não fica atrás de qualquer homem na manifestação da testosterona, chegara a afirmar, antes da indigitação, de que “é vital o processo de modernização das nossas forças armadas", para o país alinhar no belicismo já anunciado e posto em marcha pela União Europeia a toque de caixa da potência imperialista decadente do outro lado do Atlântico. Mais recentemente, já usando a linguagem dúplice própria da hipocrisia diplomática, fez a emenda para: a paz ″deve ser referencial último e inalienável de qualquer ação estratégica″. A guerra da Ucrânia irá substituir a pandemia para a justificação de toda e qualquer política lesiva dos interesses do povo português. Em breve, as verbas para o rearmamento duplicarão, chegando aos 2% do PIB impostos pela Nato/UE, a Saúde e a Educação irão sofrer.

Ainda se poderá falar dos ministros que ficaram e um deles, talvez o mais falado nos tempos recentes da pandemia, é a habilidosa e arrebitada ministra da Saúde que irá acabar a tarefa de que foi encarregue desde o primeiro minuto da primeira vez que assumiu o cargo: a privatização do SNS. A continuação desta comissária política, cuja cara não é de particular agrado de alguns médicos devido a arrogância manifestada, mostra bem que o lóbi da saúde privada é bem forte e continua bem representado no seio do governo. Aliás, os ajudantes da ministra parecem ser ainda piores, não vá a mulher deixar-se seduzir pelos benefícios de um forte sector público de saúde. O melhor indício de que a privatização será processo para finalizar é o facto de que no início do mandato da figura existiam 600 mil cidadãos sem médico de família e neste momento o número ter “apenas” duplicado. Mas há quem dê uma pequena ajuda: “Médicos querem continuar a apostar na telemedicina”. A covid-19 deu o mote e o vírus da gripe H3N2 já aí está, infectando toda a gente, incluindo os jovens – terão mudado o chip do teste! Dá jeito para manter o negócio e o medo.

Ainda poderíamos falar do ministro da Cultura, um serviçal que foi recompensado e por essa razão não poderá fugir da linha, ou do ministro da Educação que antes de o ser já o era, como a pescada, devido à inutilidade da triste figura que foi substituir. Em relação aos restantes, o perfil é de abanarem sempre a cabeça de cima para baixo e de alguns nem se notará a existência e, à semelhança dos que saíram, muitos portugueses nem chegarão a decorar o nome. A missão está há muito definida, Bruxelas irá dizer como é: novo "cheque" de 1,16 mil milhões foi aprovado, o guito chegará em Abril. Alguém o irá pagar e sabemos quem irá ser, os do costume e com língua de palmo.

Com a ameaça do alastramento da guerra e da continuação da pandemia, agora em baixo perfil, a política de intimidação sobre o povo português e os trabalhadores, em particular, irá manter-se e até intensificar-se. A razão é simples, a crise económica irá agravar-se de forma inaudita apesar de todos os que nos desgovernam a neguem diariamente. O endividamento da economia aumentou para 771,3 mil milhões de euros, dívida pública e privada e sem os bancos; os juros de nova dívida de Portugal duplicam com efeito BCE; o Banco de Portugal revê em baixa o crescimento económico, menos 0,9 pontos, e duplica a inflação, que irá ficar bem além dos 4% estimados. Claro que agora a guerra terá as costas largas, como se a crise não fosse bem anterior quer à guerra quer à pandemia. Os tempos que se avizinham serão sombrios; mais, serão de tempestade.

Em clima de pânico, a nossa inefável burguesia desde há muito e repetidamente que tem vindo a apresentar o caderno de encargos para a salvação: CIP quer regresso imediato do lay-off simplificado e desafia Estado a endividar-se. É transferência para o domínio público da dívida privada de muitas empresas, umas por má gestão, como aconteceu com a empresa do tão reivindicativo chefe da CIP, outras pela razão singela de que nunca conseguirão aguentar a competição com outras economias que, neste mercado aberto e sem leis (como é próprio do capitalismo), conseguem vender mais barato. E a situação irá piorar bastante atendendo somente ao facto de o gás russo ser substituído pelo americano, mais caro e produzido com custos ambientais elevadíssimos, o que não deixa de ser uma contradição neste tempo de “descarbonização” do planeta e de “transição energética”. É ver o corrupio de lóbis no acesso ao pote dos dinheiros do PRR e na chantagem do encerramento das empresas e do subsequente desemprego em massa, com a desculpa do já elevado preço da energia e dos combustíveis, não lhes passando pela cabeça o que está ainda para vir.

A nossa burguesia ou empresariado, o que lhe quiserem chamar, também não deixa de ser cauteloso, estando bem lembrado do que poderia ter acontecido no Verão de 1975: os diversos líderes associativos dos setores do comércio alertam, um garante que "não haverá rutura de produtos", não diz que a subida artificial dos preços já está a levar ao açambarcamento de alguns produtos, o outro abre a porta à "instabilidade social". E é para prevenir ou abafar, caso ela irrompa antes do tempo previsto, que o governo acentuou o discurso belicista que só na aparência é que é dirigido contra a Rússia e as ameaças contra a segurança ou a integridade dos países da União Europeia ou de toda ela no seu conjunto. A verdadeira ameaça vem dos trabalhadores e do povo e a existência de umas forças armadas mercenárias e bem equipadas será sempre uma garantia no caso do aparelho policial falhar. Aliás, a história da repressão em Portugal é a história do uso da tropa em serviço de polícia contra o povo. Há um livrinho interessante, cuja leitura aconselhamos vivamente, escrito pelo investigador universitário espanhol Diego Palacios Cerezales, “Portugal à coronhada – protesto popular e ordem pública nos séculos XIX e XX”, que bem nos relata a criação e evolução das polícias na consolidação do estado e da repressão do povo português.

Há quem conclame ao recrutamento obrigatório (conscrição) dos “nossos filhos têm de estar preparados para um dia combaterem pela UE”; o PR Marcelo, que nem sequer cumpriu o serviço militar por ser filho de uma das famílias mais poderosas da oligarquia fascista, considera que "agravamento da agressão" à Ucrânia terá "resposta correspondente da NATO”; Costa reitera que Portugal tem forças “em estado de prontidão” para intervir na força de reação rápida da NATO e que “não se defende a paz com manifestações”; militares portugueses partem para a Roménia em Abril em "missão de dissuasão"; GNR assume Comando de Força de Reserva Europeia no Kosovo; e até o Conselho de Estado condenou unanimemente a agressão da Federação Russa. Gente que se dispõe a subordinar-se ao império decadente, sob a alçada directa do general norte-americano Tod D. Wolters, o Comandante Supremo das forças da Nato. Querem fazer dos filhos do povo carne para canhão a troco da traição, dos louvores e das comissões.

O governo de maioria absoluta que já o era (de facto) antes de o ser (de jure) vai ser um governo de combate, mas contra o povo português. A resposta terá de ser a da guerra do povo contra a guerra inter-imperialista e contra os serviçais locais. 

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