terça-feira, 27 de agosto de 2024

Algumas notícias sobre a Ucrânia

 

Giorgio Agamben

Entre as mentiras que se repetem como se fossem verdades evidentes, está a de que a Rússia invadiu um Estado soberano independente, sem especificar de forma alguma que esse chamado Estado independente só era independente desde 1990, como era desde há séculos parte integrante primeiro do Império Russo (desde 1764, mas já entre os séculos XV e XVI foi incluído no Grão-Ducado de Moscovo) e depois da Rússia Soviética. O ucraniano foi, aliás, talvez o maior dos escritores de língua russa do século XIX, Gogol, que, em “As Vigílias da Fazenda Dikanka”, descreveu maravilhosamente a paisagem da região então chamada "Pequena Rússia" e os costumes das pessoas que lá viviam. Para ser mais preciso, deve acrescentar-se que, até ao final da Primeira Guerra Mundial, uma parte significativa do território que hoje chamamos de Ucrânia era, sob o nome de Galiza, a província mais distante do império Austro-Húngaro (numa cidade ucraniana, Brody, nascia Joseph Roth, um dos maiores escritores de língua alemã do século XX).

É importante não esquecer que as fronteiras daquilo a que chamamos República Ucraniana desde 1990 coincidem exactamente com as da República Socialista Soviética Ucraniana e não têm qualquer base anterior possível nos acontecimentos contínuos de divisões entre polacos, russos, austríacos e otomanos que aconteceram na região. Por paradoxal que possa parecer, a identidade do Estado ucraniano só existe, portanto, graças à República Socialista Soviética que substituiu. Quanto à população residente naquele território, tratava-se de um grupo variado constituído não só por descendentes dos cossacos, que para aí migraram em massa no século XV, mas também por polacos, russos, judeus (em algumas cidades, até ao extermínio, mais de metade da população), ciganos, romenos, Huzuli (que formaram uma república independente de curta duração entre 1918 e 1919).

É perfeitamente legítimo imaginar que, aos olhos de um russo, a proclamação da independência da Ucrânia não seja, portanto, muito diferente da possível declaração de independência da Sicília para um italiano (esta não é uma hipótese absurda, uma vez que não se deve esquecer que em 1945 o Movimento para a Independência da Sicília, liderado por Finocchiaro Aprile, defendeu a independência da ilha envolvendo-se em confrontos com os carabinieri que provocaram dezenas de mortos). Não pensar no que aconteceria se um Estado americano se declarasse independente dos Estados Unidos (aos quais pertence há muito menos tempo do que a Ucrânia fazia parte da Rússia) e firmasse uma aliança com a Rússia.

Quanto à legitimidade democrática da actual república ucraniana, todos sabem que os trinta anos da sua história foram marcados por eleições invalidadas devido a fraudes, guerras civis e golpes de Estado mais ou menos ocultos, a tal ponto que, em Março de 2016, o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, declarou que seriam necessários pelo menos 25 anos para que a Ucrânia satisfizesse os requisitos de legitimidade que permitiriam a sua entrada na União.

2 de agosto de 2024

quodlibet

Imagem: Mapa da Ucrânia, 1720

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